CIBERCULTURA – De olhos vivos para “olhos de abelha”

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

A pandemia trouxe para a normalidade a possibilidade de muitas pessoas poderem “participar” em cerimónias religiosas por via digital. Um recente relatório; da Pew Research Center concluiu que nos EUA, cerca de dois terços das pessoas que optam pela via digital estão muito satisfeitas com o serviço, apesar da participação presencial continuar a ser a mais popular. Porém, com a emergência de novos produtos de realidade aumentada, como o recentemente apresentado Apple Vision Pro, o impacte desta presença digital poderá fazer-se sentir com maior intensidade e ser preocupante.

Imagem gerada pelo DALL-E com prompts de Miguel Panão

O convite do papa Francisco a sair do sofá é mais do que não termos medo de saírmos da zona de conforto. A interpretação que faço é, também, a de um convite a redescobrirmos o mundo imperfeito à nossa volta, cheio de vida física e interacções reais que geram em nós experiências sensíveis e mentais que nos transformam interiormente. Mas se colocar uns óculos especiais por não saber bem o que fazer com 3500 dólares, consigo manter-me no meu sofá, ou estar de pé na sala, e ver um mundo completamente diferente à minha volta. Não me leva a experimentar a brisa ou o odor, nem me dá acesso háptico (sensação ao toque), mas vejo o mundo à minha volta. Porém, alguém de fora vê uma pessoa isolada com a cara transformada.

A realidade aumentada adiciona uma camada de informação ao mundo que nos circunda. Porém, enquanto nenhum de nós vê a sua cara e pode através deste tipo de dispositivos ver tudo (e mais alguma coisa) à sua volta, os outros vêem-nos com uns óculos enormes que transformam a nossa cara e parecemos ter uns “olhos de abelha”. Não é um produto para o qual se dirige o nosso olhar, mas uma “plataforma” que determina o que os nossos olhos contemplam. Até uma hóstia suspensa em pleno ar poderia projectar-se no nosso campo de visão tornando a “visão” do pão transubstanciado próximo de cada pessoa, mas conseguem imaginar a visão do sacerdote diante da assembleia de cristãos reunidos? Cada um de nós com os “olhos de abelha” colocados na cabeça. Ou, por outro lado, para quê sair de casa e do sofá, se posso usar o ecrã para ter uma experiência visual imersiva, como se estivesse no meio da comunidade que celebra a eucaristia, quando, na realidade, estou só, sentado no sofá e literalmente afastado dos outros. Aliás, será que de tanta realidade aumentada conseguiremos no futuro distinguir o que é real do que é ficção?

Recentemente revi excertos do documentário “O Dilema Social” da Netflix e notei que o modo como os produtores imaginam um jovem com a sua atenção consumida pelas redes sociais que procuram manipular o seu comportamento é igual à experiência proporcionada pelo Vision Pro da Apple. A interacção com a realidade à nossa volta não se restringe à quantidade de informação que conseguimos colocar no nosso campo de visão. Por vezes, aquele olhar para o infinito enquanto pensamos, resulta na inexistente possibilidade de algo poder, digitalmente, captar a nossa atenção. Um acto contemplativo envolve uma interacção real entre o nosso corpo e o mundo físico que nos rodeia. Por isso, será que as pessoas imersas cada vez mais em mundos digitalizados perderão, gradualmente, noção do potencial experiencial do mundo real?

Do ponto de vista da produtividade, quando saiu o primeiro filme do “Homem de Ferro”, com Tony Stark a criar uma armadura usando realidade aumentada, a possibilidade ficcional do filme continua a ser fascinante e quantas vezes não desejei trabalhar a ciência que desenvolvia numa tela infinita que materializasse a minha imaginação. Porém, quando contabilizamos a percentagem de tempo que a promoção destes produtos dedica à produtividade, notamos ser marginal. O caminho da realidade aumentada que está a ser traçado é o caminho do consumo, não tanto o da produtividade (apesar da potencialidade). E quem se deixa fascinar pela tecnologia (como eu há cinco ou seis anos) começa já a poupar e preparar-se para fazer os maiores sacrifícios de modo a ter acesso à experiência da computação espacial através da realidade aumentada. É isto que nos torna livres? Se um dos desafios à psique humana era o excesso de tempo de ecrã, agora que se avizinha o tempo da multiplicação de ecrãs (não dos pães) , todo o esforço para controlar melhor esse tempo pode ficar comprometido.

Longe no fundo da Igreja onde habitualmente costumo ficar quando experiencio a Eucaristia, a hóstia quase não se vê. E se estiver sem óculos, por ser míope, preciso de acreditar que está lá porque vejo tudo desfocado. Um ecrã digital que coloca uns “olhos de abelha” na minha cara poderia corrigir digitalmente as limitações do meu corpo. É uma perspectiva positiva, mas até que ponto ver mal e pouco não fará parte da experiência eucarística? O meu caro amigo jesuíta e professor de filosofia P. Alfredo Dinis tinha uma pala no olho para recuperar de um deslocamento da retina e partilhou-me que, não podendo ver bem para fora, sentia-se convidado a olhar para dentro. Sentimos muito a necessidade de silêncio auditivo, mas creio avizinharem-se tempos em que começaremos a dar valor ao “silêncio visual” que convida a olhar o exterior des-digitalizado e real para reflectir sobre o nosso interior e aquilo que na vida tem real valor. E só conversando sobre estes assuntos poderemos não perder o controlo das nossas escolhas e evitar distrair o coração com coisas vãs e efémeras para estarmos atentos à Sua Voz que fala através da realidade à nossa volta.


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