Cardeal Jean Marie Lustiger, Amigo da Comunidade Portuguesa

O Cardeal Lustiger foi um pastor que nunca deixou de lançar pontes entre os cristãos e entre os judeus, embora criando opositores que depois lhe deram razão. A comunidade portuguesa de Paris sempre foi das maiores em França, assistida por sacerdotes portugueses e franceses, que se serviam das igrejas paroquiais, criando por vezes tensões. O cardeal, descurando as opiniões contrárias, concedeu aos portugueses uma igreja em Gentilly que se tornou uma das maiores e mais frequentadas. Só a catequese, durante alguns anos orientada por uma religiosa madeirense de S. José de Cluny, tinha mil e duzentas crianças, o maior número em toda a Diocese. Posteriormente surgiu-lhe um problema com a grande basílica Notre Dame Mediatrice, voto de um cardeal por ocasião da guerra, construída junto de um grande hospital maternidade. A Câmara tentou abater o edifício que estava encerrado, embora deixando uma pequena capela. O cardeal quis salvar o edifício sacro com os portugueses que, no seu entender, tinham o sentido da maternidade e poderiam ajudar no hospital. Entendeu-se com a Conferência Episcopal Portuguesa e foi nomeado um Reitor português que em pouco tempo pôs a basílica santuário a funcionar. Foi no tempo em que eu era o Presidente da Comissão Episcopal para as Migrações. Tive vários encontros com Sua Eminência que sofreu uma forte pressão do clero diocesano e até dos capelães portugueses. Consciente de estar no caminho certo, não se interessou com o que pensavam dele. Numa peregrinação em Fátima agradeceu ao episcopado e de uma forma especial ao grande Cardeal António Ribeiro, por o ter ajudado a resolver o problema da basílica que, desde então foi chamada de Nossa Senhora Medianeira e Senhora de Fátima. Algumas vezes, encontrei-me com Sua Eminência em Paris, Lourdes e Roma e sempre me falou do Santuário e dos portugueses em Paris. 2 – Quem era o Cardeal Lustiger? Ele definiu-se como o «cardeal judeu e filho de emigrantes». Este homem percorreu uma trajectória singular até se tornar cardeal de uma das principais Dioceses da Europa. Quando entrou na Academia francesa dos imortais, tomando lugar entre os quarenta ilustres homens de França, respondeu a um seu biógrafo que lhe perguntou porque recebera tal nomeação: «É o sinal dum reconhecimento quase unânime da função da Igreja como componente da nossa cultura». Aarão Lustiger nasceu em Paris em 1926 de pais judeus, duma família vinda da Alta Silésia, na Polónia, da classe dos Lés, os servidores do Templo. «Nós éramos pobres, escreveu o Cardeal, eu não estava vestido como os outros estudantes, mas eu era muitas vezes o primeiro da escola, razão para me tornar mais conhecido». Apesar disso os colegas quando discutiam entre si diziam-lhe: «isto não te diz respeito judeu impuro». Com a idade de 11 anos conheceu o nazismo na Alemanha. Na casa onde se hospedava encontrou um rapaz da juventude hitleriana que lhe mostrou uma faca dizendo: «No solstício do verão vamos matar todos os judeus». Foi neste período que lhe caiu nas mãos ao frequentar uma biblioteca, a Bíblia, e o Novo Testamento foi visto por ele como o cumprimento do anunciado pelos profetas ao povo de Deus. Leu a bíblia com paixão, mas não o disse a ninguém. Tornou-se cristão mas os seus pais não aceitaram a sua decisão. A mãe levou-o a um rabino para o elucidar, mas por fim diz o religioso a sua mãe: «Não há nada a fazer, deixe-o seguir o seu caminho». Foi baptizado com 14 anos, escolhendo então os nomes de João e Maria que ajuntou ao de Aarão. No fim da guerra o pai pede em vão a anulação do seu baptismo. A mãe morrera no campo de concentração de Auschwitz. Como estudante na Sorbone, toma a decisão de ser padre. Com 43 anos é nomeado pároco, tendo como coadjutor o actual arcebispo de Paris Mons. André Vinght-Trois. João Paulo II nomeia-o bispo de Orléans e, no dia da ordenação, seu pai está presente numa cadeira da primeira fila. Após 15 meses é nomeado arcebispo de Paris. João Paulo II e o arcebispo Lustiger são duas almas gémeas no campo da pastoral. A sociedade ocidental está em crise porque perdeu a consciência dos fundamentos cristãos da sua moral. É preciso reencontrar o sentido da fé, afrontar o trágico da condição humana e confrontá-la com a esperança da ressurreição de Jesus Cristo. 3 – O diálogo com os judeus, foi uma das características do Cardeal Lustiger que, no princípio, o rejeitaram. Com o passar dos anos os sentimentos de desconfiança dos judeus, dão lugar a orgulho deste filho do povo escolhido. Quando o Papa João Paulo II anuncia a sua intenção de fazer um acto de penitência pelas faltas do passado contra os judeus, o que suscitou muitas controvérsias, o cardeal Lustiger apoiou-o discretamente. Ele contribuiu para a organização da viagem do Papa à Terra Santa no ano 2000. O Cardeal procurou dialogar com os judeus ortodoxos. Sabendo que era em Nova York que se formava a maioria dos rabinos, e que estes transplantavam as suas ideias para a Europa oriental e davam o tom ao judaísmo mundial, unindo a autoridade moral com os recursos financeiros, o cardeal Lustiger privilegiou os seus contactos com esta instituição, tendo-a visitado ainda em Março deste ano, já muito doente. O cardeal Lustiger foi um inovador que abateu os conformismos e precedia as evoluções da cultura e da sociedade. O Papa e o cardeal tinham a mesma apreensão do destino da Europa. Para renovar a sua Diocese, o Cardeal interessou-se pela renovação do clero, refazendo o Seminário; com a Escola da Catedral procurou a renovação do laicado, criou a Rádio Notre Dame e investiu na televisão. Para realizar a colocação da Igreja na sociedade moderna, no pensamento e na vida quotidiana, o Cardeal Lustiger, após consultar os mais diversos meios católicos e intelectuais, andava em frente, por vezes contra ventos e marés. Para comunicar o seu pensamento e convicções publicava um livro por ano, sendo o mais conhecido e mais traduzido, «Le choix de Dieu», publicado em 1987. O Cardeal Lustiger tinha a capacidade de ver longe, era um homem de esperança. Apesar de arcebispo de Paris, ele possuía uma autoridade para além da sua diocese. Tinha uma grande estima e uma verdadeira obediência ao Papa, no qual via o sucessor de São Pedro. Funchal, 12 de Agosto de 2007 †Teodoro de Faria, Bispo Emérito do Funchal

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