As Portas do Património

O Alentejo constitui uma notável síntese do Atlântico e do Mediterrânico que encerra em si o melhor destes dois mundos. Se o primeiro marca essencialmente a geografia, contribuindo para moldar a fisionomia do território, em particular na sua fachada ocidental, o segundo pauta a matriz histórica e assume decisivo peso na definição da cultura e das mentalidades. As influências tanto do Norte e do Sul como do Este e do Oeste afluem aqui desde os primórdios, transformando as cidades e os campos numa verdadeira encruzilhada de gentes, culturas e civilizações. Visto de dentro, este Alentejo “baixo” e “litoral” pode afigurar-se, pelo menos na aparência, uma periferia atlântica. Porém, a análise mais atenta do seu vasto e diversificado património revela quão ilusória pode ser a noção de afastamento do centro. A Europa cristã, que fora antes pagã, continuou entre nós um processo civilizacional herdado de uma romanização intensa, consumando a globalização já iniciada com o avanço dos colonizadores púnicos e gregos. Embora sem perder o pendor atlântico que lhe é intrínseco, a região tornou-se fortemente tributária, a partir da Antiguidade Tardia, dos valores mediterrânicos. A presença das comunidades judaicas contribuiu para exaltar tal herança, depois ampliada, numa escala transcontinental, pelo impacto do Islão. Foi o Cristianismo, porém, que lhe afeiçoou de maneira mais penetrante a fisionomia espiritual. Ponderadas pelos geógrafos, intuídas pelos historiadores, sopesadas pelos etnólogos, defendidas pelos sociólogos, as características que fazem do espaço alentejano uma espécie de “ponte” a unir o mundo atlântico ao atlântico interessaram menos os investigadores do património artístico, assaz preocupados com o sondar e o exaltar de tópicos regionais e, acima de tudo, nacionais. Não foi sem surpresa que, com o avanço da inventariação dos bens culturais da Diocese de Beja, a partir de 1984, traduzido na redescoberta de boa parte da identidade religiosa do Baixo Alentejo, se tornou patente a consciência de que o nosso território representou, também do ponto de vista da herança cultural preservada pela Igreja, um foco privilegiado de mediação intercultural. À semelhança do que sucedera em épocas precedentes, os contributos das Três Religiões do Livro – Judaísmo, Cristianismo e Islão – reflectiram nele, com particular vigor, a capacidade de estabelecerem uma síntese das tendências globais e globalizadoras com a idiossincrasia das populações locais. Campo de encontro de gentes e ideais muito diversos, o Sul de Portugal foi um grande cadinho de contactos entre as esferas de influência da Mediterræ e do mar Oceano, como chamavam os nossos antepassados ao Atlântico. Brotou daqui, além de uma identidade deveras peculiar, um excepcional conjunto de valores culturais. A consciência de tão acutilantes realidades, nem sempre bem entendidas, tem sido um poderoso acicate para a Diocese de Beja aprofundar, sob a orientação do Departamento do Património Histórico e Artístico, o levantamento sistemático dos diferentes patrimónios que tutela. É significativo que este trabalho, de certo modo pioneiro, tenha partido de uma diocese frequentemente considerada, pela óptica de quem vem do Centro ou do Norte – óptica nem sempre isenta de preconceitos –, como terra de missão, quase “pagã”. Iniciada numa conjuntura particularmente difícil, em pleno rescaldo do movimento revolucionário de 25 de Abril de 1974, a actividade do Departamento acabou por consubstanciar uma aventura científica cujos efeitos se encontram bem presentes no quotidiano do Baixo Alentejo, pondo a descoberto uma das mais ricas manchas patrimoniais do país e levando as populações locais a olharem com redobrado empenho os seus tesouros artísticos, de que foram sempre, aliás, as maiores defensoras. Tais efeitos repercutiram-se mesmo num âmbito mais vasto e, ao colocarem em xeque algumas meias-verdades, acabaram por perturbar o recato cómodo de algumas consciências de bonzos, dentro e fora do âmbito eclesial. Afinal, a arte sacra alentejana não só existia como continuava a interessar um grande número dos nossos cidadãos e dos nossos visitantes. E, se Beja, dita a mais pobre e a mais rarefeita das dioceses portuguesas, tinha conseguido dar provas de vitalidade, porque não acontecia isso também noutras áreas? Registar com o maior escrúpulo a multiplicidade e a variedade dos conjuntos patrimoniais sob a égide da Igreja constituiu (e constitui ainda) o primeiro, indispensável passo da longa caminhada empreendida por um punhado de voluntários a quem o bispo D. Manuel Franco Falcão confiou, em 1984, a salvaguarda do património cultural da diocese a cujo destino passara a presidir, quatro anos antes, por determinação do papa João Paulo II. Atrás desse passo viriam muitos outros, como a recuperação dos monumentos em risco e dos seus acervos de bens móveis e integrados, incorporando-os em percursos qualificados e abrindo-os a um público alargado; a defesa de valores culturais seriamente ameaçados, entre eles os fundos de bibliotecas, arquivos e colecções arqueológicas; a criação de uma rede de museus; o apoio técnico às paróquias e às irmandades; a promoção e a difusão cultural, incluindo exposições, congressos, publicações; a presença nos meios de comunicação social; o fomento o diálogo com os artistas e pensadores contemporâneos… De facto, a emergência, nos inícios do século XXI, de modelos sociais distintos coloca desafios enormes à preservação do património religioso e exige uma capacidade de adaptação às linguagens de hoje para que a sua mensagem de fundo possa continuar, adaptada a outras circunstâncias, a estar presente. Trata-se de um conjunto de valores patrimoniais que permanece ainda, em inúmeros aspectos, vivo. Importa que assim possa continuar, não por intuitos meramente utilitários ou proselitistas, mas porque essa vida interior corresponde a uma das suas principais características, representando o melhor garante de continuidade entre gerações – e de transmissão aos vindouros. O Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja tem feito da mobilização dos bens culturais in situ, no seio das comunidades a que pertencem, o esteio da sua acção. Trata-se de um princípio indeclinável, só passível de outros enquadramentos, em termos científicos, de gestão e até de eficácia pastoral, quando as estruturas locais já não conseguem desempenhar as funções que lhes competem, o que ocorre infelizmente em vários pontos do nosso território, mercê da rarefacção humana, prenúncio de um fenómeno de desertificação mais amplo. As igrejas históricas (e tudo o que elas contêm e significam) só podem perdurar se o Baixo Alentejo conseguir alcançar os seus próprios rumos de sustentabilidade. Cabe também aqui um papel de realce ao património cultural, como factor de base para um desenvolvimento equilibrado. Um dos maiores desafios que se colocam aos serviços patrimoniais, como o da Diocese de Beja, é o de conseguirem fazer com que os bens culturais sob a sua tutela deixem de representar apenas um ónus, hoje demasiado pesado, em muitos casos, para os recursos existentes, e se transformem em mais-valias, capazes de gerarem desenvolvimento, riqueza, inclusão, emprego, qualidade de vida, protecção do ambiente… Isto implica, entre muitas outras coisas, a revitalização de monumentos de notável interesse, mas pouco acessíveis, cuja manutenção se torna cada vez mais árdua. A existência de uma programação cultural de qualidade pode assumir reflexos importantes neste âmbito, tendo na música – e em particular na música sacra e religiosa – um dos seus veículos de eleição. Atravessamos uma fase paradoxal da vida do país em que a Igreja sente crescente dificuldade em preservar os bens culturais de que é proprietária ou administradora mas não consegue articular ainda uma estratégia nacional para fazer face aos inúmeros problemas que daí decorrem, alguns deles com dramáticas consequências. As hesitações do Estado e dos municípios em articularem os seus próprios dispositivos e em assumirem as suas próprias responsabilidades, num momento de aperto das contas públicas, agravam ainda mais a situação, apesar do patrocínio garantido pela Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa aos bens classificados (ou em vias de classificação). Face aos embaraços que afectam as instituições eclesiásticas e oficiais, já se percebeu que só a capacidade de mobilização da sociedade civil, enraizada no coração das comunidades, poderá evitar a degradação ou a perda de muitos valores, mormente de índole religiosa. A Igreja, porém, encontra-se dividida entre o acantonamento e a abertura. O debate sobre a realização de concertos em igrejas, à luz das novas orientações dimanadas da hierarquia, é um sinal angustiante do impasse em que nos encontramos. Muitas foram as portas que se fecharam à interpretação de peças musicais, mesmo as de carácter sagrado ou religioso, em contextos propícios à interacção com outros sectores e que deviam ser aproveitados para uma aproximação deveras necessária. A questão está longe de ser inócua, já que se encontra sobre a mesa não só a fidelidade ao passado, embora em moldes diferentes, mais culturais do que cultuais, mas também a necessidade de diálogo franco com a sociedade, sabendo acolher e valorizar, no momento oportuno, a diferença. Recuar para a sacristia é um erro estratégico que sairá caro a muitos níveis. Para grande parte do património cultural religioso poderá vir a revelar-se, até, fatal. Olhando o mundo a partir deste pequeno-grande território de Beja, sentimos que o momento não pode continuar a ser de egoísmo ou de nostalgia. Pelo contrário, os sinais dos tempos mostram que a partilha e a concertação de esforços se impõem cada vez mais na estratégia de salvaguarda de um património afinal comum, a cujo destino ninguém pode ser indiferente. Esta é a tradição de que nos orgulhamos. A música, com ênfase para a música sacra e religiosa, assume um papel importante neste âmbito, constituindo um poderoso instrumento de mobilização da sociedade, de comunicação intercultural, de respeito pelos outros. Quando em algumas partes do país há festivais de temática sacro-religiosa que foram obrigados a findar por não ser autorizada a utilização de igrejas para os seus concertos, o rumo iniciado com o Festival Terras sem Sombra, no ano de 2002, através da parceria entre o Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja e a Arte das Musas, no âmbito de uma sólida colaboração com o Ministério da Cultura e vários municípios, atinge a quarta edição. Para o Baixo Alentejo, esta iniciativa constitui a oportunidade de trazer outro alento, de forma itinerante, a um conjunto de monumentos históricos da maior relevância patrimonial, alvos de obras de recuperação, o que vai ao encontro de uma prioridade diocesana e regional. Mas não podemos deixar de sublinhar a deliberada escolha de um repertório que, ao enfatizar o peso do Mediterrâneo, exalta as raízes da tolerância e a confiança no futuro. Quando em outras regiões de Portugal há portas que se fecham, desejamos ardentemente que as do Baixo Alentejo permaneçam abertas. Ao não irrisório de alguns, opomos um sim caloroso. Fazemo-lo com a firme convicção de que, sob o impulso do Espírito, a beleza transfigura o mundo, tornando-o mais solidário, mais acolhedor, mais humano. Esta é, também, a nossa bandeira. José António Falcão, Director do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja

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