Arte e Igreja em Beja

Património cultural, um instrumento fundamental da evangelização na diocese mais pobre, despovoada e desertificada de Portugal Tida como a diocese mais pobre, despovoada e desertificada de Portugal, Beja conserva ainda um vastíssimo conjunto patrimonial, formado por centenas de edifícios, desde os antigos mosteiros, conventos e colegiadas até às igrejas das paróquias e aos santuários rurais, ligados ao “Caminho de Santiago” e às vias de transumância que uniam o Sul ao Centro da meseta ibérica. Este tesouro permaneceu quase desconhecido até há poucos anos. Ao entrar na Diocese, em 1975, o bispo D. Manuel Falcão deparou-se com uma conjuntura assaz difícil quanto à salvaguarda do património religioso. A Igreja não tinha ainda despertado plenamente, entre nós, para a necessidade de defender os seus valores culturais, com todas as conse-quências que isso implicava. Em terras do Baixo Alentejo deveras marcadas pela revolução de Abril, a situação revelava-se ainda mais complexa. O furor revolucionário levara a demolir algumas igrejas. Muitas outras jaziam ao abandono, transformadas em palheiros, garagens ou sedes de comissões. Numa fase seguinte foi necessário reconstruir edifícios entretanto degradados. Mercê da falta de capacidade técnica, multiplicaram-se as intervenções pouco criteriosas. Diversos monumentos classificados foram desapossados de retábulos, pinturas e imagens em nome de uma suposta “actualização litúrgica”. Nas paróquias com maiores dificuldades não se hesitava, por vezes, em proceder à venda de obras de arte como fonte complementar de financiamento. Ao mesmo tempo, imagens seculares eram confiadas a “curiosos” que as pseudo-restauravam com purpurinas e tintas plásticas de cores berrantes ou partiam para “reparações” em oficinas de santeiros do Norte, voltando desfiguradas ou substituídas por réplicas. O velho problema da subtracção de peças das igrejas tornava-se também acutilante, com a presença assídua de antiquários no terreno que aliciavam tanto os sacristães a venderem como os delinquentes locais a roubarem. Proliferavam os furtos de obras de arte, o mais célebre dos quais levou ao desaparecimento da imagem gótica do santuário de Nossa Senhora da Cola (Ourique). Tudo isto suscitou o escândalo e a indignação das populações. Para fazer face aos problemas sentidos, o bispo de Beja fundou, em 1984, o Departamento do Património Histórico e Artístico. Constituído por um grupo de colaboradores voluntários mas com formação técnica, o novo organismo recebeu a incumbência de lançar as bases para um projecto global de inventariação e conservação do património religioso do Baixo Alentejo. Deu-se assim início ao “Inventário dos Bens Culturais da Diocese de Beja”. Principiado do nada, este trabalho seguiu moldes científicos, abrangendo os bens imóveis, integrados, móveis e imateriais. Hoje são mais de 200 000 os espécimes referenciados, com destaque para a pintura, a escultura e as artes decorativas. À medida que a tarefa avançou de igreja em igreja, saiu do esquecimento um extraordinário acervo de cuja relevância, na larga maioria, nem sequer se suspeitava. Muitas peças escapavam até ao conhecimento dos párocos, sendo necessário contar com a ajuda das pessoas mais idosas de cada local para identificá-las. A presença das brigadas de inventariação no terreno ofereceu igualmente um ensejo propício para sensibilizar as comunidades em relação à defesa dos valores culturais. Pouco e pouco, no entanto, verificou-se que era necessário ir mais longe, começando a mostrar em exposições de qualidade, realizadas com um enquadramento museográfico rigoroso, as obras guardadas em cofres de instituições bancárias, tesourarias de Câmaras e casas de particulares… Isto levou a elaborar um projecto sistemático que juntou ao inventário outras acções de estudo, restauro e divulgação, envolvendo as populações locais numa lógica de pedagogia patrimonial. A realização de cursos de formação, o funcionamento de rotas culturais e de uma rede museológica diocesana, a institucionalização de parcerias com institutos do Ministério da Cultura, municípios e associações e o apoio técnico às paróquias são hoje realidades bem presentes no quotidiano da diocese. O fio condutor deste projecto que está prestes a cumprir vinte e quatro anos de actividade ininterrupta consiste em encontrar uma alternativa para o futuro do património religioso do Baixo Alentejo. Um património ameaçado, sem dúvida, mas que a Diocese sente a responsabilidade de preservar, transmitir e colocar ao serviço de um desenvolvimento harmonioso da região, como uma marca de respeito pela sua identidade. Fá-lo com a certeza de que ele representa, indubitavelmente, um dos mais preciosos e mais eficazes instrumentos de evangelização para o nosso tempo. José António Falcão, Director do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja

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