Armas na rua em tempo de paz

Publicações Missionárias denunciam «perigosa e excessiva proliferação de armas ligeiras em Portugal» São cerca de 900 mil, as armas ligeiras que andam nas mãos dos portugueses. O número diz respeito, apenas, às armas legais. O fenómeno está a assumir contornos preocupantes no nosso país, onde a informação sobre o tema é bastante escassa. O governo prepara-se para lançar um novo quadro jurídico, que pretende regular, entre outras matérias, o uso e o porte de arma. Tudo isto quando se assinala, a 9 de Julho, o Dia Internacional de Destruição de Armas Ligeiras «As armas ligeiras são na realidade armas de destruição maciça». A afirmação contundente do secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, dá-nos uma ideia clara do perigo que as armas ligeiras representam nos dias que correm. O seu número ultrapassa 639 milhões em todo o mundo, o que corresponde a uma arma por cada 12 pessoas. Segundo o estudo Small Arms Survey 2001, «as armas ligeiras estão envolvidas em mais de um milhar de mortes em cada dia que passa». A situação é alarmante e no nosso país começam a surgir os primeiros sinais preocupantes. Por exemplo, o número de armas ligeiras nas mãos de cidadãos nacionais disparou nos últimos dez anos. Não existem dados precisos, mas estima-se que sejam cerca de 900 mil as armas legais, a que acresce idêntico número de ilegais. Armas de caça, pistolas e revólveres são as preferidas, num mercado muito difícil de controlar. As próprias forças de segurança revelaram recentemente ter escassez de meios para lutar contra este fenómeno. De acordo com um elemento da Polícia Judiciária (PJ), contactado pela Missãopress, «o aumento da criminalidade no nosso País, nomeadamente a violenta, está associado à proliferação de armas ligeiras, o que reflecte o aumento do mercado de armas ilícitas». Comprar uma arma nos dias que correm não é difícil. «Se alguém estiver interessado em comprar uma arma surge logo um vendedor. As feiras são locais predilectos, no entanto, qualquer “voltinha” por um dos chamados bairros problemáticos da cidade de Lisboa poderá ser bem sucedida», revela o agente P.F., da Polícia de Segurança Pública (PSP) da Amadora. A preferência por determinada arma ou calibre também não é problema para quem vende. «Há de tudo e para todos os gostos. Desde revólveres 6,35 milímetros (mm) a 180 Euros até pistolas de guerra de 9 mm», acrescenta. O fácil manuseamento destas armas é outra das vantagens. «Com um treino mínimo, até uma criança consegue empunhar uma delas. Além disso, são fáceis de esconder e de transportar. Dado que quase não exigem manutenção, podem durar décadas», esclarece o armeiro A.S. Observatório permanente Estas questões foram, durante muito tempo, ignoradas por sucessivos governos. A opinião pública parece agora mais atenta do que nunca ao fenómeno e as iniciativas começam a surgir. Um dos exemplos é a audição pública, dividida em cinco sessões, que a Comissão Nacional de Justiça e Paz (CNJP) tem vindo a realizar desde Novembro de 2005 e que visa debater e mobilizar a sociedade contra a «perigosa e excessiva proliferação de armas ligeiras em Portugal». A presidente da CNJP, Manuela Silva, fez um balanço positivo das quatro sessões já realizadas e considera que «a sociedade portuguesa começa a despertar para a necessidade de dar atenção a um problema nacional e mundial». Entre as acções da CNJP, conta-se ainda a criação, no passado mês de Novembro de 2005, de um observatório permanente sobre produção, comércio e proliferação de armas ligeiras. «O observatório quer ser um instrumento a partir do qual se possa tomar consciência da gravidade e proliferação não controlada de armas ligeiras», referiu Manuel Brandão Alves, membro da CNJP e responsável máximo por este observatório. A criação de uma base de dados permanentemente actualizada será um dos principais objectivos do organismo. Entrega voluntária Depois da sociedade civil, o governo mostra alguma sensibilidade relativamente a esta matéria. O recente lançamento de uma campanha que exortava os portugueses a entregarem, voluntariamente e sem quaisquer consequências, as armas ilegais em sua posse é um bom exemplo. A ideia foi, aliás, saudada pela maioria das organizações que trabalham nesta área. «As iniciativas que forem no sentido de acabar com o uso de armas por parte dos indivíduos, sem qualquer tipo de punição, são positivas», sublinhou a directora da secção portuguesa da Amnistia Internacional, Cláudia Pedra, que acrescentou: «Cerca de 60 por cento das armas ligeiras que existem estão na mão de particulares e não dos exércitos e das polícias». Para esta responsável, a questão das armas ligeiras surge em sintonia com a da violência doméstica: «Morrem cerca de cinco mulheres por mês devido a violência doméstica e algumas delas com o recurso a armas». Quem também aplaudiu a campanha foi o presidente do Observatório de Segurança e Criminalidade. Rui Pereira considera que esta á «uma medida positiva» e que tem «uma finalidade extremamente louvável, que é evitar que venham a ser cometidos crimes com essas armas de fogo». No entanto, chama a atenção para o facto de que «nenhuma medida é eficaz a cem por cento», daí que «não seja de esperar que todas as pessoas que detenham armas as entreguem por causa da medida». Para já, é o que parece estar a acontecer. De acordo com uma fonte do Ministério da Administração Interna, contactada pela Missãopress, «as entregas de armas estão bastante aquém das expectativas iniciais». Perigo de A a G Em paralelo com esta iniciativa, o governo aprovou o novo regime jurídico das armas e munições, que deverá entrar em vigor em Agosto próximo. Com o diploma, que alterou o quadro legislativo que remontava a 1949, foram revistas, nomeadamente, as normas aplicáveis ao uso e porte de armas, aquisição, cedência, importação, exportação e transferência das mesmas. Segundo o secretário de Estado Adjunto e da Administração Interna, José Magalhães, a nova lei das armas proporciona «condições especiais de intervenção nos meios empregues e na articulação com as magistraturas, ao regular não só o licenciamento do uso e porte de arma, como a actividade das autoridades legais». Entre as novidades contam-se uma nova classificação das armas de fogo, fruto das disposições europeias e das recomendações das nações Unidas, classificando-as de A a G, consoante o seu grau de perigosidade. A posse de armas pelos cidadãos, à luz do novo regime jurídico, fica subordinada aos princípios da responsabilidade, necessidade e controlo. Assim, todos os titulares de licença B1 (defesa pessoal) serão sujeitos a um curso de formação técnica e cívica, sob o controlo da PSP, que precederá a concessão da licença, bem como a cursos de actualização. Para além do licenciamento prévio, passam a ser exigidas «eficazes garantias de segurança» no domicílio para a guarda da arma. Foi ainda institucionalizado um seguro obrigatório de responsabilidade civil para os detentores de armas e definidas normas de conduta exigíveis a todos os titulares de licenças de uso e porte de arma. O novo diploma tipifica o estatuto e regras de actividade aplicáveis aos armeiros, associando à sua actividade «um conjunto de medidas capazes de garantir um eficaz tratamento das informações relativas aos movimentos comerciais», refere o secretário de Estado, José Magalhães. Um «símbolo de poder» Apesar das novidades apresentadas, há quem considere que o governo deve ir mais longe no combate à proliferação de armas. Isso mesmo sustenta a Procuradora-geral adjunta, Maria José Morgado: «Defendo mais poderes às polícias na identificação e revista de pessoas na via pública e poderes que permitam a realização de operações de fiscalização em larga escala». A magistrada reconheceu ainda a existência de uma relação directa entre a exclusão social e a proliferação de armas, afirmando que são «factores de marginalidade que interagem, que se potenciam mutuamente». A realidade enunciada pela Procuradora-geral adjunta vai de encontro àquilo que as forças de segurança já haviam detectado: o aumento da violência, decorrente de um maior uso de armas de fogo. Num encontro organizado pela Directoria de Lisboa da Polícia Judiciária, no início de Março, o tema do aumento da violência esteve no centro das atenções. «A arma de fogo é usada para remover obstáculos incómodos ou para fazer frente às autoridades», explica fonte da Polícia Judiciária, citada por um jornal diário. Entre os delinquentes mais novos, o uso é «indiscriminado e gratuito», e a arma encarada como «símbolo de poder». O cenário também não é muito animador, se atendermos ao número de armas apreendidas. Só no ano passado foram apreendidas, por dia, sete armas de fogo. PSP e GNR (Guarda Nacional Republicana) retiraram das ruas 2.576 pistolas, revólveres e caçadeiras. O número não corresponde, no entanto, à realidade, uma vez que a PJ ainda não revelou os seus dados relativos a 2005. Estes números vêm comprovar uma tendência: o mercado negro de armas continua a florescer. Segundo o relatório anual de Segurança Interna de 2005, «os lucros são significativos, a oferta é cada vez mais diversificada e aumentam os calibres comercializados». Lisboa, Porto, Vila Real e Braga foram as cidades onde a grande maioria das armas ilegais foram apreendidas pelas forças policiais. Sigilo estatístico O aumento do tráfico de armas provenientes do exterior para Portugal é outro dos factores que está a preocupar as autoridades. «A falta de transparência e o secretismo que tem envolvido o negócio de armas em Portugal não ajuda no combate ao tráfico. Só recentemente se tornaram públicos relatórios sobre importação e exportação de armamento referentes aos últimos cinco anos», acusava o Bloco de Esquerda (BE), num documento apresentado à Assembleia da República, em 2003. Em alguns desses relatórios tornados públicos pode ler-se que «o mercado ilegal de armas ligeiras, provenientes sobretudo de países do Leste europeu, dos Balcãs e do Sul da Europa está a aumentar em território nacional». Mais grave é o facto de existir «a possibilidade de Portugal estar a ser utilizado como país de trânsito no tráfico de armas, nomeadamente para o continente africano», revela um relatório do Serviço de Informações de Segurança, a que a Missãopress teve acesso. Um alto membro da PJ confirmava essa situação ainda há bem pouco tempo: «É altamente preocupante a forma como se traficam, compram e vendem armas no nosso país». O mesmo é denunciado pelo Bloco de Esquerda: «Através do comércio e do tráfico de armas – negócio sigiloso, rentável e pouco ético – muitos países ocidentais, entre os quais Portugal, têm contribuído para as guerras e o desrespeito pelos direitos humanos noutras partes do mundo. Portugal tem vendido armas para países que não reúnem os requisitos ditados pela União Europeia e que violam os direitos humanos». Vários relatórios a que a Missãopress teve acesso indicam isso mesmo. Países como Angola, Colômbia, Israel, Sri-Lanka, Turquia ou Argélia estão entre os clientes habituais do armamento nacional. Um dado curioso é o facto de, no nosso país, os números da produção industrial de armas de fogo estarem protegidos por segredo estatístico, tanto no que diz respeito ao número de armas fabricadas, como no que concerne à facturação. No “Inquérito Anual à Produção Industrial”, do Instituto Nacional de Estatística, é referido que Portugal fabrica armas de guerra, revólveres, pistolas e espingardas, mas quanto a valores de produção e de vendas nada é revelado. Rui Lopes, texto conjunto da MISSÃOPRESS – Publicações Missionárias de Portugal

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