Ano da Eucaristia na era da globalização

Carta Pastoral de D. Maurílio de Gouveia: Eucaristia, Fonte e Centro da Vida Diocesana Coroamento dum Pontificado 1.Os momentos finais do grande pontificado do Papa João Paulo II ficaram assinalados pelo relevo invulgar, atribuído ao mistério da Eucaristia. Tivemos, em primeiro lugar, a publicação da encíclica “Ecclesia de Eucharistia”, em 17 de Abril de 2003, quando a Igreja celebrava o Ano do Rosário. Já então o Papa se encontrava gravemente doente. Não era difícil descobrir naquele documento o coroar dum longo e riquíssimo magistério; e, mais ainda, o último e significativo reflexo dum testemunho luminoso de devoção eucarística. Seguiu-se, no ano seguinte, no dia 7 de Outubro de 2004, a publicação da carta apostólica “Mane nobiscum, Domine”, que instituía o Ano da Eucaristia. Este acto pontifício viria acentuar o significado profundo daquela linha pastoral e espiritual. O próprio Pontífice se encarregou de o dizer no mesmo documento: “Assim, o Ano da Eucaristia coloca-se num horizonte que se foi enriquecendo de ano para ano, embora permanecendo sempre bem assente sobre o tema de Cristo e da contemplação do seu Rosto. De certo modo, aquele apresenta-se como um ano de síntese, uma espécie de apogeu de todo o caminho percorrido” (10). João Paulo II viria a falecer a 2 de Abril de 2005, em pleno coração do Ano da Eucaristia. O seu Sucessor, o Papa Bento XVI, não tardou em afirmar solenemente que se empenhava na prossecução dos projectos relacionados com o mistério eucarístico, designadamente o próximo Sínodo dos Bispos, cujos trabalhos estão subordinados a este tema fundamental. 2. Procurando manter-se em sintonia com a Igreja universal, também a Arquidiocese de Évora decidiu promover um Congresso Eucarístico Diocesano, previsto para os dias 2 – 5 de Outubro, quando o Ano da Eucaristia chega ao seu termo. Pareceu oportuno promover aquela iniciativa pastoral e apostólica, para que a vivência do Ano da Eucaristia pudesse consolidar-se no coração dos cristãos, e se projectasse para o futuro uma Igreja diocesana solidamente alicerçada naquele mistério que foi definido como o “centro e o ápice da vida cristã”. Com a presente Carta pastoral pretendemos sublinhar o sentido da iniciativa diocesana, no presente contexto histórico e eclesial, e acentuar algumas linhas de força do que entendemos ser uma Igreja que vive da Eucaristia. No coração dos novos tempos 3. Os católicos e as comunidades eclesiais são chamados a viver a sua fé em Jesus Cristo num contexto histórico particularmente complexo e que, em muitos casos, constitui um verdadeiro desafio. A entrada na era da globalização faz com que não haja distâncias. O mundo todo entra diariamente em nossas casas, com as suas tragédias terríveis e os seus progressos espectaculares. Os desequilíbrios sociais e económicos acentuam-se, favorecendo tensões e violências. Buscam-se novas soluções políticas que ultrapassam as fronteiras nacionais para se consubstanciarem em formas diversas de cooperação, em quadros mais amplos, regionais ou continentais. Particularmente grave é o que se refere às novas ideologias relativistas e secularistas que estão a destruir os valores essenciais e a dissolver a consciência moral e a dimensão religiosa. Estes e outros factores, como os problemas morais e éticos, sentidos com o extraordinário desenvolvimento das ciências e das tecnologias da vida, têm contribuído para um declínio da fé, para um processo de descristianização em largos sectores do mundo ocidental. Podemos afirmar que a Igreja, em muitas instâncias, a começar pelo ministério dos Sucessores de Pedro e dos diversos organismos da Santa Sé, com destaque para o Sínodo dos Bispos, tem revelado uma particular atenção aos problemas actuais. Esta consciência eclesial encontrou forma concreta no grande movimento mobilizador, lançado e designado pelo Papa João Paulo II com a “Nova Evangelização”. A nova situação cultural e religiosa que está a marcar o início do novo milénio não deve ser vista apenas nas suas linhas gerais e universais, mas também nas incidências que têm os diferentes níveis em cada diocese e em cada paróquia, naturalmente dentro daquelas diferenças que comportam. Estamos perante uma profunda mutação histórica, onde a fé cristã deve ser vivida com realismo e autenticidade. Neste contexto o apelo a colocar a Eucaristia no centro da vida cristã e da vida das comunidades reveste-se de particular importância. O pão descido do Céu 4. Na missão apostólica de Jesus Cristo, o Mistério Eucarístico ocupou um posto relevante, podemos mesmo dizer, um posto central. Desta verdade nos dá conta S. João no capítulo VI do seu Evangelho. O evangelista resume a mensagem de Jesus sobre o Mistério Eucarístico que é, na expressão do Catecismo da Igreja Universal, a síntese da doutrina evangélica. Partindo do milagre da multiplicação dos pães que realizara na véspera, e apercebendo-se de que as multidões estavam mais interessadas no alimento material do que na Palavra salvadora, o Mestre convidou os ouvintes a olharem para mais alto, isto é, para “o pão que desce do céu e que dá a vida ao mundo” (Jo. 6,33). E acrescentou esta frase inaudita: “Eu sou o pão da vida; o que vem a mim jamais terá fome e o que acredita em Mim jamais terá sede” (Jo 6, 35). O primeiro ensinamento a reter é que a Eucaristia é, antes de mais, uma Pessoa: a Pessoa de Jesus Cristo. “Eu sou o pão”. Jesus dá mais um passo na revelação daquele Mistério, ao afirmar que quem se alimenta do “pão que desceu do céu”, alimenta-se do Seu Corpo e Sangue… “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia” (Jo. 6, 54). Na última Ceia, tomada com os Apóstolos e que se situava no quadro da ceia pascal dos judeus, o Filho de Deus realizou a promessa feita, instituindo a Eucaristia, como sacramento que actualiza, nos expressivos sinais do pão e do vinho, o sacrifício redentor da Cruz. “Tomou então o pão, deu graças, partiu e distribuiu-lhes dizendo: “Isto é o meu Corpo, entregue por vós. Fazei isto em memória de mim. Depois da ceia, fez o mesmo com o cálice, dizendo: “Este cálice é a nova aliança, no meu sangue, derramado por vós”. (Lc.22, 19-20). Ao afirmar “Fazei isto em memória de Mim”, Jesus deixou à sua Igreja o maior dom que lhe podia oferecer: a sua Presença real, sob os sinais do pão e do vinho, uma presença que actualiza o mistério redentor da sua morte e ressurreição, como escreveu o Papa João Paulo II: “não há dois sacrifícios; há um único sacrifício, o do Calvário, que se actualiza no momento da celebração eucarística”. Feliz pois a Igreja que pode viver em cada momento, até ao fim dos tempos e em todos os lugares da terra, aquele mistério profundo, continuamente renovado sobre o altar. Dom sublime que envolve a Igreja e a humanidade inteira, o passado, o presente e o futuro, o universo, o Céu e a Terra. 5. Catequese Eucarística Devemos sentir este apelo forte do Espírito para que demos nestes nossos tempos difíceis mas que devem ser de esperança, e de novos desafios, plena realização às palavras de Cristo na última Ceia: “Fazei isto”. É necessário sentir a realidade eucarística como verdadeiro centro da vida da Igreja. Para atingir tal objectivo, convém recordar alguns aspectos fundamentais. O primeiro aspecto diz respeito à catequese eucarística. As deficiências que têm sido possível observar neste campo do culto eucarístico ficam a dever-se certamente à falta de uma fé esclarecida. De facto, sem o conhecimento global da mensagem cristã, a Eucaristia facilmente se transforma – e assim se tem verificado em diversos sectores da comunidade cristã – num simples acto devocional ou até num elemento mais ou menos decorativo no quadro dum festa religiosa, de um casamento e de um funeral. E, como tal, com grande facilidade se abandona a sua vivência. Esta concepção redutora e distorcida encontra-se totalmente afastada do pensamento de Cristo, manifestado na última Ceia e que a Igreja tem conservado ao longo dos séculos. A catequese eucarística deverá ter início logo na infância. Deverão ser os pais cristãos pelo seu exemplo e pelas suas palavras a transmitir aos seus filhos a fé no mistério do Corpo e Sangue de Cristo. A catequese familiar encontra a sua natural continuidade na catequese paroquial, onde as crianças aprenderão a conhecer e a amar Jesus que se fez “pão” para nosso alimento. Na educação da fé dos jovens e dos adultos – uma prioridade e uma urgência da Igreja no mundo actual – a Eucaristia ocupará sempre um lugar central, iluminando não só os outros sacramentos, mas também os outros aspectos da vida da Igreja, de modo a atingir-se aquela meta definida pelo Papa João Paulo II na encíclica que tem precisamente por título “Ecclesia de Eucharistia” (“A Igreja vive da Eucaristia”). 6. A Eucaristia dominical Só através desta catequese eucarística, realizada em moldes sérios, onde a compreensão se alia à prática, a participação dos cristãos na Eucaristia dominical revela o seu sentido pleno e se apresenta como um dever e uma necessidade indiscutíveis. Não desconhecemos as dificuldades que hoje se levantam a esta actividade central da vida das comunidades, motivadas sobretudo pela diminuição do número de sacerdotes. Esta é mais uma razão para ordenar toda a vida pastoral a partir da Eucaristia e para a Eucaristia. Existem já orientações da Igreja universal sobre esta matéria as quais se encontram aplicadas na nossa Arquidiocese através de documentos oportunamente publicados. Importa pô-las em prática. No espírito das referidas normas, uma celebração eucarística, serena, sem pressas, num clima de adoração, participativa, festiva, deverá constituir a preocupação fundamental. O sacerdote não poderá fazer do domingo uma correria para celebrar grande número de Missas. É possível programar esta actividade por forma a que ele presida apenas a duas ou três celebrações, estabelecendo para alguns centros de culto um ritmo mais espaçado, quinzenal ou mensal. Nestes centros sempre que não se celebre a Missa, promover-se-á uma celebração dominical na ausência de presbítero. Desde o dia glorioso da ressurreição, os discípulos – para usar uma expressão do Papa Bento XVI proferida em Colónia na XX Jornada Mundial da Juventude – “souberam que o primeiro dia da semana, o domingo, seria o dia d’Ele, de Cristo. O dia do início da criação seria o dia da renovação da criação” Torna-se pois necessário descobrir o domingo como “o dia do Senhor”, o dia em que se faz a “memória da Morte e Ressurreição de Jesus”, em que se experimenta o sentido profundo da assembleia cristã, em que se escuta a Palavra de Deus, em que se fortifica a fé e o amor a Deus e aos irmãos, e em que se recebe novo impulso e dinamismo para servir os irmãos e em especial os mais carenciados, e para transformar o mundo. Na celebração do domingo assume particular relevância a participação das famílias enquanto tais. A assembleia eucarística dominical deve aparecer como assembleia das famílias cristãs, que nesse acto central da fé adquirem força para se transformarem em verdadeiras “Igrejas domésticas” Adoração Eucarística 7. Para além da celebração da Eucaristia, importa sublinhar outro aspecto do mistério: a Presença real de Cristo na Hóstia consagrada. Jesus continua realmente presente no pão consagrado, para além do momento da celebração da Eucaristia. É por isso que, ao longo dos séculos, foram surgindo na Igreja expressões diversas do culto a Jesus Eucarístico. São as procissões eucarísticas, a bênção do Santíssimo Sacramento, a visita ao Santíssimo e outras expressões. Na encíclica Ecclesia de Eucharistia, o Papa João Paulo II escreveu: “O culto prestado à Eucaristia fora da Missa é de um valor inestimável na vida da Igreja e está intimamente ligado com a celebração do Sacrifício eucarístico” (nº25). Neste sentido, o Ano da Eucaristia constitui um forte apelo a renovarmos a nossa devoção pessoal e comunitária a Jesus Eucarístico, presente no sacrário das nossas igrejas. Tem sido este, aliás, o luminoso testemunho deixado por grandes figuras da Igreja nos últimos séculos e também no nosso tempo, entre leigos, religiosos, missionários, bispos e sacerdotes. O diálogo silencioso com o Senhor eucarístico constitui uma eficaz escola de fé, de esperança e de amor. Fonte de solidariedade 8. Quando Jesus afirmou que se dava em alimento para oferecer a vida ao mundo revelava uma dimensão essencial do mistério: a Eucaristia deve levar os discípulos de Cristo a contribuir para uma sociedade fraterna e solidária e para transformar o mundo segundo o plano de Deus. S. João, ao referir-se, no seu evangelho, à última Ceia de Jesus, dá especial relevo ao episódio do lava-pés. (cf Jo.13,1-20). Num gesto de profunda humildade, “deitou água na bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha que atara à cintura” (Jo.13,5). Deste modo, o Mestre resumia, naquela hora derradeira, o sentido condutor de toda a sua vida e da sua paixão e morte iminentes. “Ele veio ao mundo para servir e dar a vida” (Mt.20,28). Foi um “serviço” total, heróico, sem limites. A última Ceia, oferece no lava-pés um ensinamento que esclarece o mistério e, ao mesmo tempo, interpela os cristãos a fazerem o mesmo. Na verdade – diz o Senhor – “dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também” (Jo. 15,13). A Eucaristia tornar-se-á deste modo através da vida dos cristãos fonte de renovação da sociedade dilacerada por ódios, injustiças e violências. É importante mostrar como a caridade testemunhada pelas comunidades eclesiais em numerosas e expressivas obras, instituições de solidariedade tem a sua fonte vital em Cristo morto e ressuscitado, em Cristo glorioso presente no Mistério Eucarístico. Este sentido profundo de transformações foi recentemente posto em evidência pelo Papa Bento XVI, ao afirmar, por ocasião do Encontro Mundial da Juventude, em Colónia, “fazendo do pão o Seu Corpo e do vinho o Seu Sangue, Ele antecipa a sua morte, aceita-a no mais íntimo e transforma-a numa acção de amor. O que pelo exterior é violência brutal, desde o interior se transforma num acto de amor que se entrega totalmente. Esta é a transformação substancial que se realizou no Cenáculo e que estava destinada a suscitar um processo de transformação cujo último fim é a transformação do mundo até que Deus seja tudo em todos (cf. I Cor. 15,28). Já o Papa João Paulo II escreveu: “Unindo-se a Cristo, o povo da nova aliança não se fecha em si mesmo; pelo contrário, torna-se “sacramento” para a vida eterna”. Conduzidos por Maria “a mulher eucarística” 9. Dom de Deus concedido à sua Igreja, o Ano da Eucaristia é destinado, como todas as sementes da parábola evangélica lançadas à terra, (cf. Lc 13, 18-19), a produzir abundantes frutos. Gratos por tão grande dádiva, peçamos a Deus Pai que nos deu o próprio Filho Unigénito como “pão vivo”, a graça de sermos fiéis ao seu amor misericordioso. Com a sua graça construiremos uma comunidade diocesana que “viva da Eucaristia”. Cristo eucarístico estará no centro desta Igreja particular, que encontra numa longa tradição eucarística uma das suas notas mais salientes e das suas maiores riquezas espirituais e apostólicas. Tudo deve convergir para o mistério eucarístico; tudo deve partir deste mistério. Só assim, cada cristão, cada família, cada paróquia, cada movimento laical, cada comunidade religiosa encontrará o sentido pleno da sua fé e do seu testemunho eclesial. Colocamos esta nova etapa da Igreja eborense nas mãos da Mãe de Cristo e nossa Mãe, a quem o Papa João Paulo II chamou “a mulher eucarística”. Na verdade, a virgem Maria viveu uma união íntima singular com o seu Filho, o Verbo feito homem, em toda a sua existência: antes da paixão e morte e depois da ressurreição, participando com a igreja nascente, na celebração do mistério eucarístico, lembrada de que” aquele corpo entregue em sacrifício e presente agora nas espécies sacramentais, é o mesmo corpo concebido no seu seio” (E. de E. nº55). Ponhamos em prática a magnífica síntese formulada por João Paulo II: “Ponhamo-nos sobretudo à escuta de Maria Santíssima. Porque n’Ela , como em mais ninguém, o mistério eucarístico aparece como o mistério de luz. Olhando-A, conhecemos a força transformadora que possui a Eucaristia. N’Ela vemos o mundo transformado no amor. Contemplando-A elevada ao céu em corpo e alma, vemos um pedaço do “novo céu” e da “nova terra” que se hão-de abrir diante dos nossos olhos na segunda vinda de Cristo. A Eucaristia constitui aqui na terra o seu penhor e, de algum modo, antecipação: “Veni, Domine Jesus” (“Vinde, Senhor Jesus”) (Ap. 22,20). Nesta estrada iluminada pela fé na Presença real de Cristo na Eucaristia, seremos testemunhas da esperança, construtores duma Igreja viva ao serviço duma sociedade pacífica, justa e fraterna. Évora, 8 de Setembro de 2005, Festa da Natividade da Virgem Santa Maria + Maurílio de Gouveia, Arcebispo de Évora

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