Ajudar a reconstruir vidas

No Dia Mundial da Luta Contra a Droga, o «Projecto Homem» há 16 anos, em Braga, aposta na integração progressiva na sociedade Em Dia Mundial da Luta Contra a Droga lembram-se casos de sucesso e insucesso. Mas também pessoas que se envolvem na luta pela vida dos outros, por novas estruturas psicológicas e sociais que a dependência fez esquecer. O Padre José Veloso é o homem que dirige o Projecto Homem – Programa Terapêutico de Reabilitação e Reinserção Social de Toxicodependentes, no Centro de Solidariedade de Braga. Uma iniciativa que nasceu em Itália em 1979, inspirado na metodologia do Daytop Village, Estados Unidos da América, onde surgiu a primeira comunidade terapêutica baseada nos princípios da auto-ajuda. Hoje está largamente experimentado em vários países, principalmente Itália e Espanha, com resultados muito positivos e percentagens de recuperação que causam a admiração de quantos estão envolvidos nas questões da toxicodependência. Em Portugal, o primeiro centro nasceu precisamente em Braga, em 1991, sob a orientação da Arquidiocese e com a aprovação do Arcebispo de Braga, na altura, D. Eurico. Foi denominado Centro de Solidariedade de Braga/Projecto Homem. Existem em funcionamento no nosso país mais três centros, Almada (1993), Abrantes (1997) e Vila Real (1998). A igreja diocesana lançou este projecto no início dos anos 90, com o surgimento da toxicodependência e porque “as respostas que haviam na altura, não eram profissionais e as técnicas eram muito caras”, aponta à Agência ECCLESIA o director técnico do Projecto Homem. Integração faseada O Projecto Homem baseia-se em três fases. O Centro de Dia faz o acompanhamento aos toxicodependentes que têm uma estrutura familiar e social que permita que durante o dia, entre as 9 h e as 17 h 30, estejam em terapia com actividades ocupacionais. No final do dia e nos fins de semana, os utentes são acompanhados pela família, pois “a rede social é um ponto importante”, destaca o Pe. Veloso. O Centro faz também um acompanhamento das questões jurídicas e médicas, que se relacionam com a organização de vida do toxicodependente e é também o espaço que se faz o diagnóstico com vista a um acompanhamento mais específico – ao nível da psicoterapia ou um acompanhamento mais psico-social. O grande objectivo do Centro é “afastar a pessoa do consumo da droga e criar uma estrutura capaz de o proteger desses meios”. Se tiver condições para o fazer na família, fica no Centro de dia, caso contrário vai para a Comunidade Terapêutica, que corresponde à segunda fase. Esta comunidade destina-se a quem não tem uma base familiar ou apoio social. Normalmente são “toxicodependentes bastante desestruturados e precisam de estar num espaço fechado porque são pessoas cujo auto controle e o controle de estímulos está ausente ou é mínimo”, explica o director técnico. Naquele espaço re organizam a sua personalidade. Como não têm retaguarda familiar precisam de criar uma estrutura interna para, posteriormente se inserirem na sociedade em todo o seu trabalho a nível social e laboral. “Aqui as pessoas dão conta da sua realidade”, conhecem-se com as capacidades, defeitos e limitações, aprendem a encontrar soluções para os problemas do dia a dia, para depois na sociedade, encontrarem meios próprios de resolução e não se refugiarem em substâncias. “Procuramos que eles comecem a definir um projecto de vida, dentro daquilo que são e da sua realidade, aquilo que gostariam de fazer, delineando perspectivas futuras”. Quando se percebe que as pessoas já têm uma capacidade para a resolução de problemas e que perspectivam uma vida real baseada nas suas capacidades, passam a uma terceira fase. A Reinserção Social é o retomar da vida laboral ou antes, a procura de um novo trabalho. Corresponde também a um desligar progressivo do apoio do Projecto Homem. “Com o tempo eles torna-se autónomos, mas o voltar à vida real e ao mundo, muitas vezes levanta problemas”. Voltar ao trabalho pode significar dificuldades subjectivas, “às vezes porque se sentem observados, porque sentem que os colegas não os aceitam, mas podem não passar de sensações que têm”, porque às inseguranças sentidas acrescentam-se factos e dificuldades reais que fazem com que os seus objectivos se tornem mais difíceis de alcançar. Mas o apoio prestado não cessa. As duas primeiras fases não se excluem, “podem muitas vezes complementar-se”, acrescenta, “tudo depende do grau de desestruturação e do diagnóstico da pessoa”. Aliado à toxicodependência podem surgir problemas de esquizofrenia, neuroses, ou outra doença psiquiátrica associada. Nestes casos “não há condições para entrar na comunidade terapêutica, e nesse caso segue para outras estruturas e outro tipo de acompanhamento”. Fenómeno Nacional A toxicodependência em Braga coincide com a realidade espelhada a nível nacional. Lisboa e Porto, “podem ser os meios mais problemáticos, onde nos bairros sociais a toxicodependência aliada a uma marginalidade e a um estilo de vida, é mais emergente mas também porque os bairros sociais são maiores”. Em Braga, esses bairros sociais também existe, claramente. Sendo mais pequeno, em termos percentuais, “o fenómeno diminui, mas a realidade acaba por ser a mesma”, pois são fenómenos transversais a uma sociedade e em Braga, a zona do Vale do Ave ajuda a caracterizar esta situação. Trata-se de uma zona têxtil do país que nos anos 80 e 90 era dotada de um grande poder económico, factor que lhe conferia à população a possibilidade de “experimentar tudo o que as pessoas desejassem”, onde se inclui o consumo de drogas. Por consequência, com a crise dos têxteis e a crise económica na mesma zona, o desemprego, a falta de competências para ocupar o tempo livre, levou ao consumo de drogas. O pequeno tráfico surge também como meio de subsistência. O raio de acção do Projecto Homem a partir do Centro de Solidariedade de Braga estende-se até à zona do Porto, “todo o norte do rio Douro sofre com este problema”. Quando se fala no porquê de consumir drogas, o Pe. José Veloso apelida de «jogo do azar». “Não há quem diga «estou mal e vou-me drogar»”. A experiência que acumula em 13 anos de trabalho neste projecto, diz-lhe que o grupo de amigos, a curiosidade, o desafio à autoridade, o querer experimentar se é ou não verdade o que dizem sobre a experiência, a influência de meios, são tudo motivos que ditam “as primeiras experiências”, tal como acontece com o primeiro cigarro ou bebida alcoólica. “São experiências em grupo, mas por detrás destas acções está uma personalidade com algumas características e debilidades – o não conseguir dizer «não», deixar-se influenciar, o querer ser igual aos outros”. Ponto sem retorno A primeira experiência não significa “que no dia seguinte estão a arrumar carros, nem são seropositivos ou hepáticos”, mas o acumular de experiências que “à partida não têm resultados imediatos, leva à incidência”. A dependência surge na altura em que a pessoa “está cansada e quer desistir do consumo da droga, mas é nessa altura que descobre que está dependente e toma consciência da sua situação”. Nessa altura começa a procurar droga porque precisa e porque “pensa que a droga lhe traz algum benefício”. O toxicodependente não tem, “muitas vezes, consciência da sua realidade. O problema é dos outros. São os outros que não o compreendem, não lhe dão oportunidades, por isso sentem-se injustiçados”. Há factores que podem ser causa e consequência. Se eles crescem num ambiente familiar desestruturado ou sem uma educação com o propósito de formar uma personalidade correcta, pode ser uma causa. São tudo factores que ajudam, “não quer dizer que a culpa incida na família”, sustenta o Pe. José Veloso. As drogas, independentemente do contexto legal, sendo livres ou não, têm efeitos sobre a pessoa, no seu sistema central, “inegáveis, pois vão alterando a personalidade, provocando lesões cerebrais e neurológicas e que, como consequência, levam à alteração de comportamentos, e o que vemos são desajustamentos e reacções anti sociais”. Enfrentar a realidade da vida é das maiores dificuldades com que um ex-toxicodependente se confronta. “Ao nível de emprego, diria que cerca de 95% dos nossos utentes – mais de 2000 que chegaram ao fim do tratamento – estão empregados”. Mas, adverte o Pe. José Veloso, “eles têm de procurar um trabalho de acordo com as suas competências”. Procurar a autonomia A economia é a primeira autonomia, só depois “tem lugar a formação e as melhores condições de vida”. Actualmente a taxa de desemprego é alta, “e qualquer pessoa tem dificuldades, não será ao final de pouco tempo que vai desistir”. Sendo igual a todas as pessoas “o ex-toxicodependente tem de perceber que o que acontece com os outros, também acontece com ele”. A parte afectiva e emocional deve também estar estabilizada, porque se pretende que “aprendam a viver novamente em sociedade e nos espaços de diversão sem estarem alterados”. Um toxicodependente está na realidade da vida “mas sob o efeito de drogas”. Estando lúcido tem de aprender novamente a estar e sublinha o Pe. José Veloso a “ir para a sociedade como um membro em igualdade de circunstâncias”, ou seja, não se sentir diferente dos outros, e como acontece com todos “lutar pela vida”. Em 13 anos o envolvimento também faz parte do trabalho, porque se estabelecem relações humanas “num nível de tu a tu, aceitando a pessoa como ela é, porque também devem sentir que nós acreditamos neles”, explica. “Estamos ali porque queremos e desejamos a sua recuperação enquanto pessoa, não como utente que nos vai dar a ganhar o salário no final do mês”. Mas apesar do nível de proximidade, não se “poder confundir o trabalho”. Há um envolvimento “muito grande com os utentes, pois estamos muito tempo com eles” e quando não se conseguem integrar e organizar a vida, “pessoalmente é desgastante”. Uma resposta eclesial não doutrinal No Centro de Solidariedade de Braga, apesar de ser uma instituição da Igreja, “não falamos de religião”, opta-se sim por uma atitude humanista, “de ir ao encontro dos outros, aceitá-los como eles são e ajudá-los”. O contacto com os utentes corresponde a uma área social muito desgastante. “Estamos a falar de uma doença de difícil tratamento”, onde a taxa de sucesso é baixa. A diocese acompanha todas as actividades que o Centro promove. “A Igreja está desperta para esta questão, assim como para outros problemas sociais”. Como consciência, “o princípio existe”, mas pela dificuldade que há em tratar esta população, o Pe, José Veloso explica que “há diversas reacções”. Mas muitos utentes chegam através dos próprios párocos, “alguns até ajudam a nível económico”. De uma realidade onde cerca dos 6000 que procuram ajuda, apenas 2000 chegam ao fim do tratamento, fizeram um processo e se integraram na sociedade, o desafio é uma constante a que Pe. José Veloso não se nega. Apesar da taxa de baixo sucesso, este é um projecto entusiasmante, até porque “é subjectivo falar de taxas e percentagem”, pois as vidas humanas não cabem em critérios numéricos. O director técnico não esquece os cerca de 70% de utentes que desistem, mas também relembra os “muitos que terminam o processo, que estão reabilitados, estão bem e inseridos” e pensar neles, “é gratificante”. Nas relações onde não se medem os afectos, os laços também não desaparecem. “Quando um utente deixa de nos visitar, deixa de participar nos convívios organizados pelo Centro, achamos que algo está mal e procuramos informações”. Por isso, apesar da alta terapêutica, não há «alta relacional». Outra norma instituída é de no final de cinco anos de alguém ter iniciado o processo de abstinência, “chamamos e fazemos uma avaliação para perceber a sua reestruturação de vida”. E acrescenta “para surpresa nossa, há muitos que estão bem”.

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