Acção Católica Portuguesa transformou a Igreja

Paulo Fontes é o autor da primeira obra de cariz científico sobre esta realidade eclesial no nosso país A primeira obra de cariz científico sobre a Acção Católica Portuguesa (ACP), apresentada no nosso país, tem a autoria de Paulo Fontes, membro do Centro de História Religiosa (CEHR) da Universidade Católica Portuguesa, onde desempenha funções de secretário na actual Direcção. Este especialista concluiu a sua dissertação de Doutoramento com o título “Elites Católicas na Sociedade e na Igreja em Portugal: o papel da Acção Católica Portuguesa (1940-1961)”. Como o próprio autor refere na introdução à obra, o objectivo foi “reconhecer a existência dessas elites, analisar a sua formação, inventariar as suas formas mais significativas, apreciar o seu percurso e papel na dinâmica eclesial e social do país ao longo de duas décadas, a partir da história da Acção Católica”. Estando perante um dos fenómenos que mais marcou a vida da Igreja Católica em Portugal, no século passado – apenas suplantado, em importância, por Fátima -, a história tem ainda um longo caminho a percorrer. Paulo Fontes dá um primeiro passo e admite que a ACP “ainda está envolvida por uma certa aura, que tem a ver com aquilo que foi a sua importância histórica e a marca que deixou no percurso de muitos católicos, que ainda hoje são pessoas activas na vida da sociedade e da Igreja”. “Pela experiência pessoal marcante e pela importância efectiva que a Acção Católica teve durante a sua existência como corpo orgânico, a sua história tem estado algo substraída a uma análise mais rigorosa e o mais objectiva possível”, assinala. Em entrevista à Agência ECCLESIA, este especialista fala da necessidade de perceber o que perdura “para além” da história da ACP, entre 1933 e 1974, quando a então Comissão Executiva entrega aos Bispos a responsabilidade de acompanharem uma “multiplicidade de movimentos autónomos”. “É verdade que hoje podemos observar a existência de movimentos, herdeiros de uma tradição e uma memória, mas que actuam num quadro institucional, eclesial e social completamente diferente, com um figurino também muito diferente”, refere. A marca que faz destes movimentos “herdeiros” da tradição da ACP é, segundo Paulo Fontes, “uma atenção particular à realidade social, ao concreto da vida, que vão buscar a uma metodologia de inquérito e revisão de vida do ver, julgar e agir”, para além da “valorização do papel dos leigos enquanto tal”. Unidade-União A Acção Católica pode ser definida, de forma genérica, como a forma organizada de apostolado dos leigos que, no seguimento dos movimentos católicos do séc. XIX, foi incrementada por Pio XI, alcançando grande implantação sobretudo nos países católicos latinos. Em Portugal, a Acção Católica, criada pelo Episcopado em 1933, incluía duas dezenas de “organismos” especializados por sexos, idades e meios sociais, coordenados por quatro “organizações” e por uma “Junta Central”, chegando a contar 100 mil associados na década de 50, segundo dados publicados e cartografados pelo então Pe. Manuel Falcão, hoje Bispo emérito de Beja. Segundo Paulo Fontes, há dois elementos que esmoreceram e ajudam a explicar o fim do modelo orgânico da ACP: o primeiro, “um certo entendimento da unidade, porque a Acção Católica procurava afirmar a unidade na diversidade, mas uma unidade entendida como união, que se sobrepunha ao que era a particularidade das dioceses ou as particularidades dos meios sociais”. “A Acção Católica nasceu num tempo de mobilização para um combate de recristianização da sociedade ou mesmo, na expressão dos anos 30, de reconquista cristã da sociedade. Portanto, a união era entendida como uma condição essencial até para ultrapassar muitas divisões que o mundo católico tinha conhecido”, explica. O segundo elemento é a ideia do “mandato”, numa visão de Igreja em que “o protagonismo e a iniciativa dos leigos, de algum modo, ainda estava secundarizado ao próprio apostolado hierárquico”. A ACP tinha ajudado, de facto, a propiciar a ideia de um “apostolado dos leigos”, algo que já vinha do século XIX, “mas ganha contornos novos com a Acção Católica”. Um desses contornos, segundo o membro do CEHR, é a associação dos leigos ao chamado apostolado hierárquico, “para que a Igreja chegue, como se dizia na época, onde a hierarquia não chega”. Esse “mandato” foi colocado em causa pela eclesiologia do II Concílio do Vaticano, ao reformular o lugar dos leigos e do seu apostolado. Reconhecendo uma diversidade de formas, “carismas”, no interior do apostolado dos leigos, o Concílio reconhece também a diversidade de formas organizativas, pelo que a “Acção Católica passa a ser considerada como uma forma, ao lado de outras, e assistimos, nas décadas seguintes, a uma espécie de explosão desse processo de diversificação”. No seu interior, a própria Acção Católica contribuiu para a emergência de outros movimentos eclesiais, dado que aparecia como “uma organização estruturada do topo à base, acolhendo e potenciando o aparecimento de movimentos no seu seio, pela lógica da criação de organizações nacionais”. A organização contribuiu, ainda, para a emergência das chamadas pastorais especializadas, “tentativas de ir ao encontro de novas realidades ou realidades percepcionadas como novas”, indica Paulo Fontes. Teologia Paulo Fontes procura recentrar o estudo da Acção Católica como movimento religioso (não só social), nomeadamente a partir da Teologia do Corpo Místico de Cristo. O catolicismo, afirma, tem sido normalmente estudado a partir de “grelhas de análises que vêem, sobretudo, da dinâmica da sociologia e da história política”. “Tem-se olhado pouco para a Acção Católica a partir da própria dinâmica do catolicismo e é a partir daí que ela tem de ser analisada”, afirma. Para o historiador, é importante diferenciar entre vários níveis: a Igreja, como corpo organizado e institucional; a participação de católicos, leigos ou clérigos, agindo em nome da Igreja ou em nome próprio, mas de forma individual; o catolicismo, uma realidade compósita que só se compreende na sociedade. Os católicos, “agindo e interagindo com as dinâmicas sociais”, fazem isso em função de “uma mundividência religiosa”. Para o caso específico da Acção Católica, no período em análise, a Teologia do Corpo Místico de Cristo apresenta-se como “o sustentáculo de boa parte das iniciativas”, que visavam “a restauração e o alargamento do reino social de Cristo”. Daqui, a ideia central de Cristo-Rei, a que se junta outra referência, a da “milícia” e a “mística do bom combate, do apostolado”. “Neste processo, há um reconhecimento e uma valorização da própria realidade social. A Acção Católica é expressão e veículo do processo de secularização, acompanha os movimentos de autonomização que se estão a dar na sociedade”, refere Paulo Fontes. A identidade da Acção Católica traduzia-se em símbolos como a “imprensa própria, o emblema, o estandarte, os hinos e coisas mais organizativas que eram motivadas por essa mística de conjunto, como o bilhete de identidade ou o pagamento da quota”. Com dinâmicas que iam desde a reunião do pequeno grupo local até concentrações, peregrinações e campanhas com forte expressão pública, “como os grandes congressos da Acção Católica”. Nesta escala organizativa tão variada, um dos momentos mais significativos foi o Grande Encontro da Juventude, de 1963. Elites Com orientação de Manuel Braga da Cruz, Reitor da UCP, a dissertação de Doutoramento do historiador Paulo Fontes aponta para as as questões do contexto e de institucionalização da ACP, com a qual se formou um “escol”, intervindo simultaneamente junto das “massas” populares, em ordem à “restauração católica” do país. A ACP nasceu num contexto em que o modelo era o de “uma nova Cristandade, novo ideal histórico concreto proposto por Jacques Maritain, em termos de afirmação do primado do espiritual sobre o temporal”, assente numa mundivisão determinada e nos valores do Cristianismo. Essa visão opunha-se, como refere Paulo Fontes, ao que alguns autores da época definiam como “a nova barbárie”, o lado do mundo marcado pela experiência comunista depois da II Guerra Mundial. O surgimento da Acção Católica, de facto, coincide com o momento em que, no mundo, se estavam a definir novos totalitarismos. “É nesse confronto com a afirmação totalitária dos Estados sobre a sociedade que a Acção Católica tem, também, de se compreender”, refere o historiador. A aproximação à democracia, por outro lado, “traz uma nova dinâmica, na qual a Acção Católica também vai participar, directa ou indirectamente”. Numa sociedade que começava a ser percepcionada como “sociedade de massas”, com o desaparecimento de estruturas tradicionais, pareciam não existir estruturas intermédias entre o indivíduo e a massa. Para combater essa massificação, várias instituições procuram formar o seu escol, que já não são apenas as elites tradicionais. A Acção Católica procurava, assim, “não só integrar estas elites tradicionais – da aristocracia ou das elites intelectuais formadas nas universidades -, mas também procurava responder às novas realidades sociais, as realidades do mundo urbano que está a crescer e a impor modelos de comportamento”. A mulher também começava a ganhar outro tipo de protagonismo, pelo que as organizações femininas também são “muito importantes” para integrar e acompanhar grande parte das mudanças que se estão a dar nesse mundo feminino. Paulo Fontes admite que toda esta realidade, que ia da criança ao adulto, do mundo rural ao mundo urbano, tão complexa, “só é possível tentar apreendê-la na globalidade da sua dinâmica olhando-a de sucessivos ângulos”.

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