A voz que clama no deserto

Catequese do Cardeal-Patriarca no 1º Domingo da Quaresma 1. Quando João Baptista inicia a sua pregação profética, anunciando que o Messias está a chegar, o seu discurso surpreende e choca. Os fariseus e as autoridades religiosas enviam uma delegação a perguntar-lhe quem é e o que pretende. E ele apresenta-se, aplicando a si mesmo um oráculo de Isaías: “Eu sou uma voz que clama no deserto: endireitai o caminho do Senhor” (Jo. 1,23). João dirige-se a um povo crente, com uma forte estrutura religiosa, com uma espiritualidade, a da Aliança, com uma esperança, a do reino messiânico, com templo e liturgia, sobretudo com uma lei, a Lei de Deus. É este povo, em que a sociedade se identifica com a religião, que ele considera um deserto, incapaz de acolher a surpresa da sua mensagem: o Messias está perto, preparai-lhe o caminho, abri-lhe o vosso coração. Porque é que o Baptista, tantos anos depois do êxodo, se considera a pregar no deserto? Trata-se de uma simbologia importante para a compreensão da mensagem da salvação. A travessia do deserto é um período da vida do povo em que ele depende completamente de Deus: é Ele que o alimenta, que o protege dos inimigos, que o conduz pela Sua Palavra, onde as desconfianças e infidelidades do Povo ficam a nu com toda a sua gravidade, são uma questão de vida ou de morte, porque sem a acção poderosa de Deus o povo não subsiste. Ao contrário, quando Israel se estabelece na Palestina e cria uma civilização de abundância, esquece facilmente que depende de Deus, cai na idolatria, contenta-se com os bens da terra, a Lei torna-se apenas uma regra de costumes. Toda a mensagem dos profetas, antes e depois do exílio, é um esforço de fazer Israel voltar ao deserto, isto é, à consciência de que depende de Deus, que sem Ele não subsiste. A sua mensagem, como a de João, choca e escandaliza, porque é a denúncia de um presente acomodado à vida deste mundo, esquecendo que a verdadeira terra prometida é escatológica, obra de Deus. A simbologia do deserto define a situação da Igreja no mundo e na história. A viver no mundo, sem ser do mundo, pode perder-se nas realidades deste mundo e esquecer a sua dependência radical do Espírito de Deus. Se se horizontaliza, perdida nos critérios do mundo, a Igreja deixa de ser capaz de ouvir a Palavra de Cristo, seu Senhor, ou a reduz a uma simples palavra humana, culturalmente integrada. Porque está no deserto, ela vive guiada pela Palavra de Deus e alimentada pelo Pão do Céu, sabendo que a travessia do deserto só acabará na eternidade, na Casa do Pai. 2. Escolhi esta imagem bíblica para introduzir as Catequeses Quaresmais deste ano, porque penso que a missão da Igreja na sociedade em que vivemos se realiza na tensão de amar o mundo, sem se identificar com ele, e que a mensagem de que a Igreja é portadora tem de ter a capacidade de surpreender, rasgando caminhos para a surpresa da fé e da esperança. Mas este “deserto” onde é preciso rasgar caminhos novos, não se reduz à sociedade, no seu carácter profano, aparentemente cada vez mais indiferente às exigências espirituais do Reino de Deus, anunciado por Jesus. Aplica-se também à Igreja, povo de baptizados, onde uma religiosidade tradicional não exprime a exigência inovadora da Páscoa de Cristo, onde o abandono progressivo da prática religiosa, o divórcio entre fé e moral, isto é, a falta de coerência para se viver segundo a fé que se professa, a pobreza de uma autêntica cultura religiosa, exigem uma pastoral profética que rasgue caminhos para um seguimento de Cristo, transformador da vida. Isto exige aos cristãos que aprofundem as razões da sua fé. Esta não é, apenas, um sentimento ou uma tradição; é adesão da inteligência e do coração e encontra fundamento e apoio na razão. Aprofundar as razões do nosso acreditar é o tema que tratarei nesta Quaresma. O “deserto” da sociedade em que vivemos 3. Na sua missão evangelizadora, a Igreja precisa de conhecer, com realismo, as principais coordenadas culturais da sociedade a que se dirige. Apesar de ter muitas reminiscências cristãs na sua cultura, a nossa sociedade não se abre facilmente à verdade do Evangelho, com tendência a isolar a fé cristã da racionalidade humana, relegando-a para o campo da subjectividade individual. Não há convergência espontânea entre a visão da vida veiculada pela fé cristã e a que é proposta pela sociedade em que vivemos, o que exige da Igreja “um remar contra a corrente”, na expressão de João Paulo II. Enumeramos, a seguir, alguns traços da cultura vigente que maiores dificuldades apresentam ao acolhimento da Palavra de Deus. * O naturalismo na interpretação da vida e na busca do seu sentido, objectivo primordial na busca da verdade. Esta atitude exclui a relação com Deus, fonte da dimensão transcendente da vida. Mesmo que não se negue a sua existência, Ele fica de fora da vida e da história; vive-se como se Deus não existisse. É já comum chamar-se a esta atitude ateísmo prático. Vive-se ao ritmo dos instintos da natureza, físicos ou espirituais. Acentua-se a dimensão individual da liberdade e altera-se o horizonte da felicidade como objectivo a alcançar, reduzindo-a à realização de instintos e desejos, situados no presente e no futuro imediato. Esta atitude altera profundamente o sentido ético da existência, alicerce da profundidade de uma cultura. Dilui-se o sentido do pecado, que só se sente quando a vida é vivida numa relação de fidelidade a Deus. Resta, apenas, a infracção legal. Ora Deus é a realidade mais séria e exigente que acontece na nossa vida. Ele apresenta-se como realidade insofismável, “Aquele que é” (cf. Ex. 3,14) e aceitá-l’O é mudar radicalmente o sentido da nossa vida. A Sua Palavra e a palavra que O anuncia, têm de abrir caminhos no deserto para serem ouvidas. * O racionalismo, atitude que se acentuou, nos últimos dois séculos, no pensamento europeu e que tende a fazer da razão o único critério de verdade. Perante a fé, enquanto acolhimento de Deus e da Sua palavra, o racionalismo gerou movimentos que vão desde a aceitação do Deus da razão até ao ateísmo teórico. Esta tendência para reduzir a compreensão da verdade ao horizonte explícito da razão, chegou a influenciar o pensamento cristão e correntes de opinião dentro da própria Igreja, a seu tempo denunciados pelo Magistério. O progresso das ciências exactas, um dos maiores triunfos da razão humana, acentuou a atitude racionalista, chegando-se a alimentar um conflito inevitável entre a razão e a fé. Curiosamente este culto da razão acabou por diminuir a sua dignidade e grandeza e reduzir o âmbito das suas potencialidades. A invasão da vida quotidiana pelos frutos da ciência e da técnica, deu origem a uma racionalidade básica, limitada ao imediato da existência e incapaz de atrair o homem para a busca da verdade. A filosofia, ciência vocacionada para a compreensão profunda da realidade e para a busca exigente da verdade, deu lugar à análise dos fenómenos, a uma sabedoria prática sem asas para voar. O individualismo do pensamento e da liberdade conduziram à anulação da cultura, substituída pelo imponderável dos sentimentos e da opinião, principal dogma da apregoada “nova idade”. O racionalismo levou a uma autêntica crise da racionalidade. Mas sobretudo esqueceu-se a capacidade da razão humana de procurar Deus, de integrar a Sua Palavra e de ser a base de uma verdadeira racionalidade da fé. E, no entanto, é nessa sua vocação de transcendência e de absoluto que reside a grandeza e a dignidade da razão humana. A firmeza da fé, com capacidade de exprimir as razões do nosso acreditar, supõe o aprofundamento da sua racionalidade, o que exige estudo e cultura. Como escreveu João Paulo II, “a fé e a razão constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de o conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio”1. * O individualismo: o culto do indivíduo em detrimento da dimensão comunitária, acentuou uma visão da pessoa humana que dá primazia aos interesses e direitos individuais de cada um, relativizando a responsabilidade social. As expressões mais graves deste individualismo concretizaram-se na concepção da liberdade, no conceito de verdade, na definição da consciência moral. No exercício da liberdade, relativiza-se o sentido da corresponsabilidade para com os outros, em comunidade: cada um passa a ter direito à própria verdade e a decidir individualmente o que é bem e mal. O individualismo altera profundamente o universo ético da cultura. A mensagem cristã dá prioridade ao amor, que põe os outros no centro da nossa liberdade e à comunidade sobre o indivíduo, sendo o contexto da definição e transmissão da verdade. Esta recebe-se e herda-se, não se inventa a partir de cada liberdade individual. Aos direitos correspondem sempre deveres e o dom de si mesmo é mais importante do que a procura dos próprios interesses. Neste quadro individualista dilui-se, progressivamente, o conceito de “bem comum”. Cai-se na prevalência do egoísmo sobre a generosidade. * A permissividade. A nossa sociedade é, cada vez mais, permissiva, porque se foi perdendo a dimensão comunitária dos valores e da verdade. Qualquer magistério tem o valor da opinião, tolerado na medida em que não questione a liberdade individual. A esta permissividade está ligado o conceito de tolerância, concebida como aceitação de que cada um pode agir como lhe parecer melhor. Neste contexto, as próprias leis, que deveriam exprimir os valores culturais de uma comunidade, limitam-se a gerir conflitos entre indivíduos, tornando-se pragmáticas e não propostas de cultura e de civilização. A conflitualidade social agravou-se neste quadro cultural. O “deserto” dentro da Igreja 4. A própria Igreja, na sua complexa realidade, pode constituir, também ela, esse “deserto” onde é preciso rasgar caminhos para a Palavra do Senhor. A Igreja faz parte da sociedade e pode deixar-se influenciar pela deriva cultural que referi atrás. Como sabemos é muito grande o número de cristãos baptizados que, ou perderam a fé ou não a praticam. Muitos limitam a sua referência à Igreja a actos particularmente simbólicos, como é o nascimento, o casamento, a morte. E mesmo os praticantes, separam cada vez mais a fé da sua exigência moral. Celebram a fé, mas vivem com o espírito do mundo, desconhecendo o princípio bíblico de que é na prática dos mandamentos que se conhece e ama a Deus. Muitos relativizam o Magistério, deixando de escutar a Igreja como mestra da verdade. Um cristianismo de tradição não tem a força para fazer frente ao espírito do mundo, e a Igreja enfraquece a sua capacidade profética de ser testemunho de uma outra visão da vida. Para muitos cristãos a fé é pouco profunda, solidificada pela cultura. E quando a fé não se solidifica numa verdadeira racionalidade crente, cai-se, facilmente, em expressões da fé baseadas na afectividade, no misticismo dos sentimentos, a que os Santos Padres chamaram “fideísmo”. O Papa João Paulo II refere-se-lhe assim: “não faltam também perigosas recaídas no fideísmo, que não reconhece a importância do conhecimento racional e do discurso filosófico para a compreensão da fé, melhor, para a própria possibilidade de acreditar em Deus”2. Está em questão todo o ritmo da formação cristã, em que o aprofundamento cultural deve acompanhar a celebração da fé e a experiência da oração. Só a racionalidade crente possibilita um discernimento completo, por parte dos cristãos, das realidades da sociedade em que estão inseridos. No debate cultural eles tornam-se incapazes de dar as razões profundas das suas opções de fé. É um esforço que tem de começar na catequese, sobretudo a de adultos, valorizar a presença na escola, sobretudo na escola católica, aproveitar todos os meios disponíveis, tão ampliados pelas novas tecnologias, para promover um debate contínuo sobre a fé e o homem e a sociedade, vistos à luz da fé. Formar cristãos é ensiná-los a celebrar e a rezar, mas é também ensiná-los a pensar. Oxalá a Igreja seja o espaço onde se mantenha e, porventura, se salve um verdadeiro pensamento filosófico. As razões do nosso acreditar 5. A vida da Igreja nas nossas sociedades ocidentais não é fácil. Não tem inimigos frontais e declarados, como noutras fases da sua história, embora haja forças organizadas que visam relativizar a importância dos valores cristãos na sociedade. Há modelos de sociedade que só triunfarão, alterando as coordenadas culturais. Mas a principal ameaça para a Igreja vem-lhe de dentro: é o desgaste da convivência da sociedade, é a usura do tempo, na incapacidade de afirmar a solidez racional da sua proposta. É preciso mostrar que há razões para acreditar, que a fé não violenta a razão e que esta, no seu dinamismo profundo, é uma abertura a Deus e à Sua Palavra. A cultura contemporânea minimizou a razão. Todos os ateísmos e agnosticismos são limitativos das capacidades da razão. É preciso recuperar o debate sobre a verdade e repor a dignidade da liberdade. A Igreja faz parte da sociedade, e tudo o que é humano lhe interessa e diz respeito. É-lhe enviada com uma proposta que continua a chocar e a surpreender. A Igreja abraça a humanidade, sabendo que lhe é enviada em missão. Essa é a mensagem do Concílio Vaticano II, na “Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo do nosso tempo”, cuja actualidade é flagrante: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens do nosso tempo, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo, e não há nada de verdadeiramente humano que não encontre eco no seu coração”3. Amar os homens do nosso tempo não significa deixar-se arrastar pela deriva cultural das sociedades contemporâneas. Como enviada em missão, a Igreja tem de ser capaz de afirmar a diferença, de ler nos anseios e problemas da sociedade sinais para a sua missão, e poder propor com convicção aquilo em que acredita. Sé Patriarcal, 25 de Fevereiro de 2007 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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