A primeira encíclica

A primeira encíclica de um novo papa tem sido habitualmente esperada como documento programático do seu pontificado. Nessa, o mundo católico procura encontrar linhas indicadoras do que será o seu ministério apostólico. Sem ter de recuar muito no tempo, na última centúria, ao compulsar esses textos, fica-se com ideia que na sua elaboração preocupação houve de apresentar linhas de orientação de pontificados que estavam a iniciar. Para além da sensibilidade humana, intelectual, doutrinal e espiritual, próprias de cada pontífice, um horizonte de propósitos orientadores se divisam em tais documentos. Essas preocupações têm-se manifestado de forma desigual. Até ao pontificado de João XXIII (1958), o ministério petrino pendia bastante para o repetitivo, com protocolos complicados e ritualizações manifestamente barrocas. Questões que se prendiam com a “questão romana” e o enquadramento europeu obrigavam, então, os papas a cumplicidades diplomáticas e a gestões delicadas de natureza política. O bom desempenho de Pio XII (1939-1958), onde a diplomacia e a política de influência se associaram a um sentido profundo pela vertente espiritual da Igreja, guindou o pontificado romano a um patamar de autoridade moral sem precedentes. Com o seu sucessor, João XXIII, inicia-se um pontificado mais exposto, mais criativo. Efectivamente, pela documentação disponível, sabemos que o papa Roncalli foi dos que mais se questionou sobre as linhas a assumir como orientadoras do seu pontificado. Após a surpresa da sua eleição, confidencia a D. Manuel Cerejeira esse tipo de preocupação – “Que iremos fazer como papa? Imitar Pio XII? Impossível para nós (…). Pio XII foi uma águia altíssima, um sol portentoso (…). Na nossa pobreza, procuraremos ser um bom pastor”(LUMEN,XXVII (1963)529). A história não desmentiu o propósito do bom papa João XXIII. Os papas que vieram depois, nas suas primeiras encíclicas, de forte incidência doutrinal e pastoral, não se afastaram do que foi a grande intuição do papa Roncalli – a assunção de um ministério mar-cadamen-te pastoral. A primeira encíclica de Bento XVI – Deus caritas est -, onde o doutrinal se articula respeitavelmente bem com propostas práticas para a Igreja e para o mundo, pode considerar-se uma encí-clica programática. As várias intervenções que fez por ocasião da morte de João Paulo II e da sua eleição papal foram momentos importantes para dar já a conhecer sensibilidades reveladoras dum pontificado que se iniciava. Discretamente, e agora com esta primeira encíclica, passamos a percepcionar um pontificado fortemente centrado em Deus e no homem. Por esse imperativo da fé, demora-se a primeira encíclica, onde amor e caridade, nas mais variadas dimensões, passam a ser o dialecto da vida cristã. Num mundo que teima em correr, grande proveito se poderá tirar dessas propostas papais; as primeiras reacções parecem não desmentir que estamos, de facto, perante orientações programáticas, respeitavelmente apelativas, a não perder. Pe. David Sampaio Barbosa, Professor de História da Igreja na UCP

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