A infância de Jesus

Excertos do novo livro de Joseph Ratzinger-Bento XVI

(…) Resumindo, Mateus e Lucas – cada um à sua maneira – queriam não tanto narrar «histórias», mas escrever história: história real, sucedida, embora certamente interpretada e compreendida com base na Palavra de Deus. Isto significa também que não havia a intenção de narrar de modo completo, mas de escrever aquilo que, à luz da Palavra e para a comunidade nascente da fé, se revelava importante. As narrativas da infância são história interpretada e, a partir da interpretação, escrita e condensada.

Entre a palavra de Deus e a história interpretadora há uma relação recíproca: a Palavra de Deus ensina que os eventos contêm «história da salvação», que diz respeito a todos. Mas os próprios eventos desvendam, por sua vez, a Palavra de Deus e levam a reconhecer a realidade concreta que se esconde nos diversos textos.

Há de facto, no Antigo Testamento, palavras que permanecem ainda, por assim dizer, sem titular. Por exemplo, neste contexto, Marius Reiser chama a atenção para Isaías 53. O texto podia aplicar-se a mais do que uma pessoa – por exemplo, a Jeremias –, mas o verdadeiro protagonista dos textos ainda se faz esperar. Só quando Ele aparece é que a Palavra adquire o seu significado pleno.

 

(…) Nós, cristãos, sabemos e professamos com gratidão: Sim! Deus realizou a sua promessa. O reino do Filho de David, Jesus, estende-se «de mar a mar», de continente a continente, dum século ao outro.

Naturalmente permanece sempre verdadeira também a frase que Jesus disse a Pilatos: «O meu reino não é de cá» (Jo 18, 36). Às vezes, no curso da história, os poderosos deste mundo colocam-no sob a sua alçada, mas é precisamente então que ele corre perigo: querem ligar o seu poder ao poder de Jesus, e precisamente assim deformam o seu reino, tornando-se uma ameaça para ele. Ou então é sujeito a uma persistente perseguição pelos dominadores que não toleram nenhum outro reino e desejam eliminar o rei sem poder, mas cujo poder misterioso temem.

Mas «o seu reino não terá fim»: este reino diverso não está construído sobre um poder mundano, mas funda-se apenas na fé e no amor. É a grande força da esperança, no meio dum mundo que parece, com muita frequência, estar abandonado por Deus. O reino do Filho de David, Jesus, não conhece fim, porque nele reina o próprio Deus, nele o Reino de Deus entra neste mundo. A promessa que Gabriel transmitiu à Virgem Maria é verdadeira; e realiza-se sem cessar.

 

(…) Eu não vejo como se possa aduzir, em apoio de tal teoria [nascimento de Jesus em Nazaré, ndr], fontes verdadeiras. De facto, a propósito do nascimento de Jesus, não temos outras fontes além das narrativas da infância de Mateus e Lucas. Vê-se que os dois dependem de representantes de tradições muito diferentes; são influenciados por perspetivas teológicas diferentes, e inclusive as suas informações históricas divergem parcialmente.

Parece que Mateus desconhecia que tanto José como Maria habitavam inicialmente em Nazaré. Por isso, quando voltam do Egito, a intenção primeira de José é ir para Belém, e só a notícia de que na Judeia reina um filho de Herodes é que o induz a retirar-se para a Galileia. Ao passo que, para Lucas, é claro, desde o início, que a Sagrada Família, depois dos acontecimentos do nascimento, voltou para Nazaré. As duas linhas diversas de tradição concordam na informação de que o local do nascimento de Jesus era Belém. Se nos ativermos às fontes, fica claro que Jesus nasceu em Belém e cresceu em Nazaré.

 

(…) No final deste longo capítulo [Os Magos do Oriente e a fuga para o Egito], levanta-se a questão de saber como se deve entender tudo isto. Trata-se verdadeiramente de história que aconteceu ou é apenas uma meditação teológica expressa sob a forma de histórias? A este respeito, Jean Daniélou observa com razão: «Ao contrário da narrativa da anunciação [a Maria], a adoração dos magos não toca nenhum aspeto essencial da fé. Poderia ser uma criação de Mateus, inspirada por uma ideia teológica; em tal caso, nada cairia por terra» (Les Évangiles de l’Enfance, p. 105). Mas o próprio Daniélou chega à convicção de que se trata de acontecimentos históricos cujo significado foi teologicamente interpretado pela comunidade judaico-cristã e por Mateus.

Pura e simplesmente, posso dizer: esta é também a minha convicção. Entretanto, na avaliação da historicidade, é preciso constatar que, ao longo dos últimos cinquenta anos, se verificou uma mudança de opinião, que não se baseia em novos conhecimentos históricos, mas numa atitude diversa frente à Sagrada Escritura e à mensagem cristã no seu todo. Enquanto Gerhard Delling, no quarto volume de Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament (1942), considerava a historicidade da narrativa dos magos ainda garantida de maneira convincente pela investigação histórica (cf. p. 362, nota 11), agora mesmo exegetas de clara orientação eclesial, como Ernst Nellessen ou Rudolf Pesch, são contrários à historicidade ou pelo menos deixam em aberto essa questão.

Perante esta situação, é digna de atenção a tomada de posição, cuidadosamente ponderada, de Klaus Berger, no seu comentário de 2011 a todo o Novo Testamento: «Mesmo no caso de um único testemunho […], é preciso supor – até prova em contrário – que os evangelistas não têm a intenção de enganar os seus leitores, mas querem contar factos históricos […]. Contestar por mera suspeita a historicidade desta narrativa ultrapassa toda a competência imaginável de historiadores» que se possa imaginar (p. 20).

Não posso deixar de concordar com esta afirmação. Os dois capítulos da narrativa da infância em Mateus não são uma meditação expressa sob a forma de histórias, antes pelo contrário: Mateus narra-nos verdadeira história, que foi meditada e interpretada teologicamente, e assim ajuda-nos a compreender mais profundamente o mistério de Jesus.

 

(…) Também é importante aquilo que Lucas diz acerca do crescimento de Jesus não só em idade, mas também em sabedoria. Por um lado, na resposta de Jesus com 12 anos, tornou-se evidente que Ele conhece o Pai – Deus – a partir de dentro. Só Ele conhece Deus, e não através de pessoas humanas que dão testemunho d’Ele – reconhece-O em Si mesmo. Como Filho, encontra-Se diretamente com o Pai; vive na sua presença; vê-O. João diz que Ele é o Unigénito, que «está no seio do Pai» e, por isso, pode revelá-l’O (Jo 1, 18). É precisamente isto que se torna evidente na resposta daquele adolescente de 12 anos: Jesus está com o Pai, vê as coisas e os homens na sua luz.

No entanto, é verdade também que a sua sabedoria cresce. Enquanto homem, Jesus não vive numa omnisciência abstrata, mas está enraizado numa história concreta, num lugar e num tempo, nas várias fases da vida humana, e de tudo isto toma forma concreta o seu saber. Manifesta-se aqui, de modo muito claro, que Ele pensou e aprendeu de maneira humana.

Concretamente, torna-se evidente que Jesus é verdadeiro homem e verdadeiro Deus, como exprime a fé da Igreja. A profunda ligação entre ambas as dimensões, em última análise, não podemos defini-la; permanece um mistério e, todavia, manifesta-se de forma muito concreta na breve narração sobre Jesus aos 12 anos; uma narração que desta maneira abre, ao mesmo tempo, a porta para o conjunto da sua figura que depois nos é narrada pelos Evangelhos.

Bento XVI, «Jesus de Nazaré – A infância de Jesus» (Princípia Editora, 2012).

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