A História só pode ser «luz» para a humanidade se for contada sem «apologética» – José Mattoso (c/vídeo)

Historiador distinguido com o «Prémio Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes», da Igreja Católica, manifesta surpresa pelo galardão, diz que é tímido e que nunca foi «pessoa de palco»

Foto Agência ECCLESIA/PR

A entrega do ‘Prémio Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes, por parte do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, da Igreja Católica, em parceria com o Grupo Renascença Multimédia, a José Mattoso, é uma ocasião para revisitar o percurso deste historiador português, de 86 anos, que começou por querer ser missionário, depois monge contemplativo, até afirmar-se como um dos mais proeminentes investigadores do panorama nacional.

“O prémio surpreendeu-me, porque eu nunca fui uma pessoa de palco, sinto-me sempre muito intimidado quando sou o centro das atenções. Sei que não tenho o dom da palavra. Uma vez na Academia de História disse eu sei escrever, mas não sei falar, isso foi sempre uma dificuldade nas minhas aulas. (…) Mas procurei sempre objetivos claros, simples e ao meu alcance, quanto às funções que desempenhei na Universidade, na investigação e na Igreja, fiquei sempre à espera que me dissessem o que queriam de mim. Nunca pedi nada, nunca ambicionei nada e essa posição obrigava-me a fazer o melhor possível aquelas tarefas e aquelas incumbências que tinha aceitado”.

“O prémio surpreendeu-me porque nunca fui pessoa de palco”, salienta José Mattoso, que se define como uma pessoa “tímida”, que sempre gostou mais de “escrever” do que “falar”.

Natural de Leiria, onde nasceu a 22 de janeiro de 1933, José João da Conceição Gonçalves Mattoso foi educado desde cedo para o gosto pela busca do conhecimento e pela cultura, sendo filho de um professor de liceu, António Gonçalves Mattoso, e sobrinho do pintor Lino António.

 

Mas a primeira inclinação de que se recorda, tinha uns “quatro ou cinco anos”, foi a vontade de se entregar a Deus.

“A consciencialização dessa presença de Deus é que conduz na vida”, realça o historiador, que em menino começou por sonhar ser missionário.

“Nessa altura havia umas missionárias franciscanas que vinham a casa para vender uns bordados, e a minha mãe recebia-as muito contente. Elas tinham uma publicação chamada ‘O Pretinho’, e eu pensei quando for grande quero ser missionário. Mas depois li o livro ‘As Florinhas de São Francisco de Assis’ e fiquei fascinado com São Francisco”.

Esse enamoramento pela vida missionária e de pregação “durou até aos 17 anos”, altura em que tomou contacto, através do autor francês Édouard Schneider (1880 – 1960), com o carisma contemplativo dos monges beneditinos.

 “Eu pensei, sou tão tímido, não vou andar por aí na pastoral, a fazer sermões, mas sou capaz de rezar. Encantou-me a vida de permanente louvor a Deus dos monges beneditinos e por isso fui parar a Singeverga”.

Durante duas décadas, entre 1950 e 1970, José Mattoso assumiu o hábito de monge da Ordem de São Bento, na Abadia de Singeverga, em Roriz, no Concelho de Santo Tirso, usando o nome de Frei José de Santa Escolástica.

No entanto algumas divergências quanto ao modo de vida da comunidade levaram-no a regressar à vida laical.

Licenciado em História na Universidade Católica de Louvain, instituição onde também tirou o doutoramento em História Medieval, com uma tese dedicada aos mosteiros beneditinos da Diocese do Porto, José Mattoso deu continuidade, depois de deixar a vida religiosa, à sua carreira académica.

A possibilidade de ser assistente convidado na Faculdade de Letras de Lisboa lançou-o para a investigação.

“Nas funções que desempenhei, na Universidade, na investigação e na Igreja fiquei sempre à espera que me dissessem o que queriam de mim. Nunca pedi nada, nunca ambicionei nada”.

A partir deste período, foi consolidando a sua marca no setor do ensino e da cultura, chegando a professor catedrático e diretor do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, e a vice-reitor desta instituição, entre 1991 e 1995.

Foi também investigador no Instituto de Alta Cultura, no Centro de Estudos Históricos da Universidade de Lisboa, e fundou na Universidade Nova de Lisboa o Instituto de Estudos Medievais.

Entre 2010 e 2011 presidiu ao Conselho Científico das Ciências Sociais e Humanidades da Fundação para a Ciência e Tecnologia.

“Procurei sempre viver o dia-a-dia, porque é o presente que nos coloca diante de Deus, do Deus eterno”.

Sobre o seu trabalho inicial, José Mattoso destaca a importância dos arquivos, onde sempre colocou “um grande empenho”, com a convicção de “que a História só se pode fazer com documentações completas, recolhendo tudo aquilo que resta de determinada instituição para poder fazer a história dessa instituição”.

“Os arquivos em Portugal estavam muito abandonados, muito inferiorizados, os diretores dos arquivos eram considerados uma espécie de maníacos, colecionadores de papeis velhos”.

“É preciso fazer séries completas, documentos que iluminem o todo de forma a que se possa verificar se existem coisas que deveriam estar e não estão. Há silêncios, há ausências, há buracos e a arquivística permite detetar o significado dessas ausências”.

José Mattoso exerceria, entre 1988 e 1990, o cargo de presidente do Instituto Português de Arquivos, e entre 1996 e 1998 a função de diretor da Torre do Tombo, onde protagonizou um trabalho aprofundado de reorganização de todo o acervo histórico e documental daquele organismo.

Em 1999, em parceria com o Arquivo Mário Soares, empenhou-se na preservação do Arquivo Nacional e do Arquivo da Resistência de Timor-Leste.

“Aquele nico no meio do mar consegue a atenção dos políticos, e persuadir a população a lutar pela independência. E isto fascinou-me pelo contraste entre o pequeno e o grande”

O investigador passou mesmo um período da sua vida neste país lusófono, dando inclusivamente aulas no Seminário Maior de Díli.

A partir desta experiência, escreveu em 2005 o livro ‘A dignidade. Konis Santana e a resistência timorense’.

 

Na bibliografia que foi escrevendo ao longo dos anos, destacam-se variadas obras ligadas à História Medieval Portuguesa: ‘A Nobreza Medieval Portuguesa’, ‘Poderes Invisíveis’, ‘Naquele tempo’, Ricos-Homens Infanções e Cavaleiros’, ‘Fragmentos de Uma Composição Medieval’, ‘Reino dos mortos na Idade Média’, ‘D. Afonso Henriques’ e ‘Identificação de Um País’.

O seu trabalho inclui a coordenação de uma edição de oito volumes da História de Portugal (1993-1995) e também projetos sobre a ‘História da vida privada em Portugal’ e o ‘Património de origem portuguesa no mundo’.

Este esforço, ligado ao património, nomeadamente através do projeto ‘Património de Origem Portuguesa no Mundo: Arquitetura e Urbanismo. Património de influência Portuguesa’, valeu-lhe a receção do ‘Prémio Nuno Viegas Nascimento’, em 2012.

As distinções e o reconhecimento do trabalho são uma marca bastante presente ao longo da sua vida.

Em 1985, José Mattoso foi agraciado com o prémio de História Alfredo Pimenta, pela Fundação Calouste Gulbenkian.

Dois anos depois foi distinguido com o Prémio Pessoa, em 1991 com o Prémio Internacional de Genealogia Bohüs Szögyeny e em 2007 com o Troféu Latino, contando ainda no seu percurso com o título de Grande Oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada.

Em 2012 a Fundação para a Ciência e Tecnologia promoveu, em honra da vida e obra de José Mattoso, o lançamento de um programa de Bolsas de Investigação batizado com o nome do historiador português.

Um projeto orientado para alunos de mestrado e de doutoramento que tem como objetivo dinamizar e incentivar o estudo de áreas de investigação histórica que contribuam para o desenvolvimento da Ciência em Portugal.

O ‘Prémio Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes’, agora atribuído pelo Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, em parceria com o grupo Renascença Multimédia, a José Mattoso, quer destacar o legado deste “grande historiador medievalista” e “pensador original da construção da identidade nacional”.

Sobre o seu percurso pessoal, José Mattoso sublinha a preocupação que sempre teve em “seguir um caminho onde pudesse viver, onde pudesse fazer qualquer coisa que fosse útil às pessoas e à Igreja”.

 

E esse horizonte, dentro da investigação e como historiador, levou-o a buscar sobretudo a verdade dos factos, com a noção de que a História só pode ser “luz” para a humanidade se for feita com “realismo” e for “uma resposta à conjuntura” do tempo em que está, algo que “vai na linha do Evangelho”.

“A verdade acima de tudo”, mesmo que por vezes essa verdade fosse ocultada ou sonegada, como aconteceu por exemplo com “a historiografia do Estado Novo”, mas também em certos períodos com a Igreja, realça o investigador.

Quanto à relação atual da Igreja Católica com a Cultura, José Mattoso frisa que “a Igreja tem ainda um papel a desempenhar”, mas para isso tem de estar presente e atenta aos problemas de uma humanidade que “anseia por algo mais do que a subsistência”.

“Se a Igreja não ocupar o seu lugar neste problema vai perder cada vez mais fiéis e vai escorregar pela desertificação das Igrejas”

A entrega do ‘Prémio Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes’ está marcada para este sábado, em Fátima, e é com boa disposição que José Mattoso diz que o texto do seu discurso está quase pronto, sem esconder algum nervosismo pelo momento.

“Revi o meu texto para aí 50 vezes, fui cortando as frases, fui tentando ser mais claro, mais explícito, mais simples. Fiz esse esforço e continuo a fazer, como um menino da escola. Mas realmente está escrito, quase tudo. Umas frases que eu já tinha considerado completas, mas esta manhã comecei a pensar que posso dizer isto de uma maneira mais clara, uma forma de dizer menos complicada”.

(Entrevista a José Mattoso foi realizada pela Agência ECCLESIA, Renascença e Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura)

PR/JCP

 

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