A ética da solidariedade global nos ensinamentos de João Paulo II

Desde há um quarto de século que o cenário político internacional se confronta com uma realidade religiosa universal que é João Paulo II. A sua eleição, a 16 de Outubro de 1978, chamava à Sé de Pedro o primeiro Papa não italiano depois de 5 séculos e o primeiro eslavo, proveniente de uma nação, a Polónia, dominada por um regime comunista: foi um evento-charneira, que inaugurava no âmbito religioso uma fase de mudanças que em menos de um decénio teria esculpido uma nova figura da esfera política mundial. Não seria correcto, contudo, no plano da crítica histórica, esquecer que, já nos anos que precederam esse evento, outros factos significativos no mundo religioso tinham abalado a rigidez dos blocos geopolíticos definidos em Yalta: o Concílio Ecuménico, convocado 17 anos após o fim da II Guerra Mundial por João XXIII, tinha reunido em Roma bispos católicos e observadores ecuménicos de todos os continentes e nações, também do mundo comunista, e tinha-se pronunciado a favor da paz, da justiça internacional e da superação das divisões do mundo. Esse predecessor de João Paulo II lançou, nos dias de angústia de Outubro de 1962, um apelo concordado com a Casa Branca e o Cremlim para a solução pacífica da crise dos mísseis soviéticos em Cuba. No discurso inaugural do Concílio, a 11 de Outubro, o seu olhar projectou-se sobre os destinos do género humano e o sentido das grandes transformações civilizacionais em curso. Exortava a Igreja católica a empenhar-se com confiança nos caminhos da abertura aos homens de boa vontade, onde quer que estivessem em acção com o fim de favorecer o processo da unidade do género humano, para além de todas as barreiras. Em finais de 1965, o episcopado polaco presente no Concílio pediu e ofereceu perdão aos bispos alemães, realizando um acto comum de reconciliação que surpreendeu os governos destes dois países separados pelo Muro de Berlim. Depois, no pontificado de Paulo VI, a Santa Sé decidiu apoiar o processo de Helsínquia e participar activamente na Conferência sobre a Cooperação e a Segurança na Europa: nesse forum, a discussão sobre os direitos humanos, incluindo o direito à liberdade religiosa, começou a dar os primeiros golpes de martelo que acabariam por derrubar os regimes totalitários da Europa Central e do Leste, denunciando a fragilidade intrínseca desses sistemas. Os factos positivos conferem a melhor apologia à tese principal da encíclica do Papa Roncalli, a “Pacem in terris”(1963): “os homens do nosso tempo ganharam uma consciência mais viva da sua dignidade, de modo que, à medida que a pessoa se torna consciente dos seus direitos, germina necessariamente nela a consciência das respectivas obrigações”. Aquele Papa convidava a reconhecer o dedo de Deus no esforço em curso, rumo a “uma nova ordem de relações humanas”. Cerca de 20 anos mais tarde, quando o movimento dos direitos humanos deu origem às primeiras manifestações operárias na Polónia em nome da Solidariedade, a contradição daqueles sistemas, que pretendiam representar os interesses dos trabalhadores, deixava de poder ser controlado, tendo atingido o ponto de ruptura. As actas das sessões do Politburo soviético, após a eleição pontifícia do arcebispo de Cracóvia, demonstram que a liderança de Moscovo estava literalmente possuída pela dúvida – paradoxalmente teológica – que um homem indefeso, apenas com a força da sua autoridade moral, pudesse incutir à segunda potência nuclear do mundo o receio de não poder controlar por muito mais tempo os povos do seu império. Por outras palavras, impunha-se com absoluta evidência uma clamorosa inversão dos fundamentos nacionais da real politik: o controlo da força e da violência legal dos Estados, apesar de terem servido para a afirmação da doutrina do materialismo científico, já não era suficiente para estabilizar uma sociedade e governar de forma autoritária as suas transformações. O paradigma separatista recomendado por Machiavelli para a sabedoria de “O Príncipe”, para lhe evitar as “fraquezas” da ética e da religião, sofria uma surpreendente derrota, precisamente no terreno político. Pela primeira vez no séc. XX – o século dos grandes cemitérios das duas Guerras Mundiais, o século de Auschwitz, de Hiroshima e dos Gulag estalinianos – transformações de grande alcance político aconteciam na linha de confluência de três correntes históricas “débeis”: o movimento da não-violência (de que faz parte a greve), o progresso do direito das pessoas e dos povos, e a religião. Talvez estejamos apenas no início de uma avaliação do alcance não conjuntural desta aliança e da sua natureza geral. Em medida muito superior a quanto sucedeu na Idade Média e até com os próprios Papas teocráticos da Renascença, o enredo profundo desta vaga de transformações políticas e sociais nos últimos decénios do séc. XX evidenciava, a uma nova luz, o papel dinâmico e histórico do factor religioso nas transformações dos paradigmas geopolíticos. De facto, a queda do Muro de Berlim e o desenvolvimento de uma Europa com os seus “dois pulmões” integravam algumas aspirações, antecipações, impulsos e operações do papado, ou seja, de uma potência que, por sua vez, tinha sido reconduzida pelas convulsões da história a uma figura menos incompatível com a sua natureza exclusivamente espiritual e moral que tinha sido antes da queda do poder temporal do Estado pontifício. Numa formulação sintética, a história do poder e das guerras (que também a Igreja tinha combatido nos séculos) sofria modificações por causa da intervenção de forças “suaves, fracas”, numa situação bloqueada. Mais uma vez, o curso dos acontecimentos dava razão a uma outra tese metodológica da Pacem in terris: todas as teorias apresentam elementos de rigidez, enquanto que o movimento histórico e social que deriva de uma doutrina, mesmo que seja falsa, é susceptível de sofrer uma evolução, ou mesmo transformações profundas, até produzir efeitos positivos e merecedores de valorização ao serviço das justas aspirações da pessoa humana. Não há dúvida que a experiência histórica específica do papado romano é, por definição e constituição, universal, pois baseia-se numa missão destinada a todos os povos. Contudo, será fácil observar que a interpretação que João Paulo II conferiu ao universalismo da sua função de sucessor de Pedro na Igreja de Roma conheceu variantes inéditas. No plano metodológico, a novidade consiste no facto de, com este Papa, as viagens e os meios de comunicação se terem tornado instrumentos orgânicos do governo da Igreja e das suas relações com o mundo; o papado conquistou uma cidadania no reino da visibilidade pública, interrompendo o assédio de uma lenta marginalização no âmbito do culto e do foro interno que tinha sido decretada pela cidade secular, em nome de uma visão combativa do princípio liberal da separação entre Igreja e Estado. À inovação metodológica está ligada a inovação no plano da visão da história que esteve na base das orientações fundamentais deste pontificado e que desenvolveu linhas doutrinais e uma praxe diplomática da Santa Sé fortemente orientadas para o aprofundamento das relações entre o fermento espiritual do cristianismo e a sociedade, entre a história religiosa e a história política, numa fase de transformações radicais do mundo. O Papa interveio sistematicamente nas fronteiras críticas da modernidade e ofereceu o seu incitamento para que fossem assumidos os desafios sociais e espirituais do novo Milénio. São sobejamente conhecidas neste campo as suas convicções, que apresentaram um agregado de futurismo e tradicionalismo doutrinal, suscitando discussões e, por vezes, discordâncias, mais ou menos declaradas, por amplos sectores do mundo católico, de modo especial quanto às proibições persistentes no campo da ética sexual e familiar, uma área estratégica para as políticas demográficas globais assim como para a luta contra a Sida. É impressionante a dimensão internacional deste pontificado, a intensidade dos seus apelos a favor da paz, dos direitos humanos, da justiça internacional, da ética médica e dos gestos inéditos em direcção ao Judaísmo a ao Islão, que assumem todo o seu sentido nas convulsões religiosas e políticas de hoje. Por outro lado, não é possível ignorar o receio, formulado por observadores imparciais e mesmo por membros da hierarquia católica, de que este Líder generoso transmita à História mais a imagem de um Papa de viagens e de gestos simbólicos do que de reformas institucionais. Aliás, ele próprio sentiu a necessidade de recuperar uma leitura menos redutora e desorgânica das resoluções do Concílio Vaticano II. De facto, na Carta Apostólica Novo Millennio ineunte recomendou o retorno, com um novo vigor, ao modelo de uma “Igreja de comunhão”, a fim de superar uma certa esclerose burocrática da vida eclesial, o retorno a formas de clericalismo e de introversão, o vazio cultural que rodeia o vértice, o afastamento da prática religiosa e do ministério sacerdotal e a anemia da produção intelectual das elites: trata-se de indicadores de uma crise da Igreja que as grandes manifestações de massa e a vertigem dos sucessos mediáticos ameaçam obscurecer. Quanto a certas leituras celebrativas ocasionais, são admiráveis a generosidade e a sinceridade que geralmente as caracterizam, mas provavelmente mais úteis e interessantes se conseguissem evitar o uso selectivo do magistério pontifício em benefício de visões auto-referenciais, nem sempre isentas de riscos nacionalistas, certamente alheias à dignidade do acontecimento e inconcludentes do ponto de vista cognitivo. Mesmo no campo religioso, não se deve renunciar a priori ao dever intelectual não só de ver claramente, mas de ver mais claramente do que antes se via, para além das cortinas de incenso. Apesar da dificuldade objectiva de reduzir a formas de coerência e continuidade aspectos tão diferentes do pontificado, não parece ser vantajoso para a discussão resignar-se a um recenseamento notarial dos dados aparentes ou a uma chuva de recordes estatísticos. Uma exaltação alimentada por refrães do bizantinismo áulico só serviria para ocultar, e mal, um vazio cultural. Não é preciso recordar que uma figura como a deste Papa, em muitos terrenos críticos para a Igreja católica e para a sociedade internacional, continua a ser mais aplaudida do que ouvida. É preciso dizer que este Papa merece mais o exercício do verdadeiro racionalismo, aconselhado por Karl Popper, do que o enaltecimento acrítico ou um consenso superficial dos sectores interessados em remover a sua mensagem dos acontecimentos do mundo real, histórico. Celebrar não custa muito, o mais difícil é mudar! Giancarlo Zizola, escritor e vaticanista do jornal “Il Sole–24 Ore”

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