A Cruz e o desvelar do mistério

Homilia da Vigília Pascal de 2021 de D. Manuel Linda

Foto Agência ECCLESIA/LFS – Sé do Porto

Esta série de leituras, entrelaçadas com salmos, orações e cânticos bíblicos, desaguam no Evangelho como grande meta para onde converge toda a história da salvação. O ponto de chegada é a frase que vem do Sobre-humano, do mistério do Transcendente: “Não vos assusteis. Procurais a Jesus de Nazaré, o Crucificado? Ressuscitou: não está aqui”. Isto é dito às mulheres, as únicas a quem o cuidado do seu Senhor não permite descanso. E por elas, chegou a nós.

Os estudiosos da Sagrada Escritura chamam a atenção para o insólito deste Evangelho de Marcos. Antes de mais, para a forma abrupta como ele termina: “Agora ide dizer aos seus discípulos e a Pedro que Ele vai adiante de vós para a Galileia. Lá O vereis”. E nada mais se refere, como que deixando tudo em suspenso para que se reserve lugar para a abertura ao mistério. Em paralelo, ressaltam também o papel das mulheres perante um acontecimento denso e não assimilável pela razão raciocinante: “Saíram, fugindo do sepulcro, pois estavam a tremer e fora de si. E não disseram nada a ninguém, porque tinham medo”. Medo que, vencido, vai dar lugar ao anúncio.

O evangelista usa esta técnica não só para nos obrigar a descobrir um Deus totalmente outro, que não se deixa aprisionar nos nossos esquemas mentais e curiosidades mais ou menos infantis, mas também para nos conduzir à experiência do discipulado, de reencontrar este Deus misterioso na experiência da sua proximidade, de O sentir presente nas causas que lhe motivaram a atuação.

De facto, remetem-se os seus discípulos outra vez para a Galileia. Foi lá que tudo começou; é lá que tudo deve recomeçar. A Galileia não é apenas o espaço geográfico, mas é a história, a memória e o recriar do acontecido: o anúncio do reino de Deus, o apelo à conversão, a derrota do maligno, o saber ser discípulo seguindo o Mestre em tudo e sempre, os milagres que testemunham a preocupação com os outros, a afirmação inusitada de que em Jesus somos filhos de Deus, o valor da fraternidade, a cura dos homens e das mulheres feridos pela amargura da vida, enfim, o recuperar de ânimo e da esperança pela presença do reino de Deus entre nós.

Ora, as mulheres que, tal como o evangelista Marcos, num primeiro momento não dizem nada a ninguém porque o assombro dominava a sua mente, constituem o instrumento essencial e indispensável para esta pedagogia divina que nos garante que só «veremos» Jesus se decidirmos segui-l’O como discípulos; só «obteremos» provas da ressurreição caminhando com Ele e fazendo nossas as suas causas; só participaremos do seu reino acercando-nos com a chave que é a vida, as ações e as atitudes do Senhor.

É esta a mensagem desta noite santíssima. Não procuremos o corpo biológico reanimado. A ressurreição é como o encadeamento entre a semente e a árvore: são diferentes, mas em plena continuidade. O corpo da cruz é a semente; a luz da Páscoa é a árvore. Boas festas pascais.

D. Manuel Linda, Bispo do Porto

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