Vidas com dignidade

Padre João Gonçalves, Diocese de Aveiro

A dignidade de uma vida humana depende da qualidade da vida; se não damos qualidade à vida, não vale pena imaginar que essa vida tenha dignidade; e, qualidade, tem de passar, necessariamente, pela satisfação das necessidades ditas primárias, aquelas que são tidas como essenciais para se viver, respirando condições de salubridade e de sociabilidade.

Andamos por aí a dizer que toda a gente tem direito a uma vida cada vez mais longa, e cada vez mais rodeada de cuidados. Escrevem-se catálogos de direitos e assinam-se tratados multilaterais que comprometam pessoas, grupos e comunidades.

Não deveria ser necessário legislar sobre coisas essenciais, sobretudo quando elas são claramente de respeito pela vida humana e a sua dignidade. Mas, como somos frágeis e corremos riscos de esquecer até mesmo o fundamental, precisamos das ajudas de leis e tratados…

Quais são as vidas que “merecem” ser tidas por dignas, e de pleno direito? Todos diríamos que …todas, e em todos os momentos e circunstâncias do seu existir.

Sabemos que nem sempre é assim.

Muitos, para poderem manipular ideologias a seu gosto, agastam-se com discussões sobre vidas de semanas ou de doenças prolongadas sem fim à vista. Outros entendem – não entre nós – que uma pessoa incómoda, porque cometeu um crime horrível, deve ser tratada com desprezo e até eliminada, com condenações a penas de morte, bem mais horríveis do que os possíveis crimes cometidos. Uma vida humana é sempre uma vida, seja ela entregue a um sábio, seja dada a um indigente de todas as pobrezas, limitações ou fracassos.

Moram na nossa cidade e ao nosso lado pessoas que nunca encontraram rumos de vida, pautados por critérios ditos “normais”; algumas roubam, cometem adultério, provocam desordens, não alimentam hábitos de higiene, são incómodas em toda a parte, ferem direitos essenciais, passam por cima de todos para crescer… e por aí fora!

Onde estão os perfeitos, que possam dizer: “eu mereço viver…mas tu e o outro, não?”. Quem tem pedras para atirar, sem que elas lhe caiam no telhado próprio?

Conheço pessoas na Prisão e na Rua. Algumas parecendo ter perdido tudo, desde o emprego, a saúde, a família, os amigos e até o nome. E há quem seja tentado a perguntar se também esta gente “merece” viver, e se a sociedade ainda tem tempo e dinheiro a perder com pessoas que nada fazem de útil, para si ou para os outros… – Mas não somos todos PESSOAS? Será ainda preciso dizer que é possível condenar o pecado, mas salvar o pecador?

As sociedades, ditas evoluídas, não querem perder nem gastar nada com quem não avança ao ritmo da produção e da rentabilidade, esperadas e programadas, ao pormenor, por peritos e sábios da economia e da finança.

Somos convidados a “ver com o coração”; com ele vê-se melhor, mais profundamente e mais ao largo; os olhos têm raios de visão curtos e muito estáticos; o coração – porque ama – confia, recria a pessoa e as personalidades, atira para dinamismos de incalculável distância, e reanima esperanças perdidas ou nunca tidas nem vistas. Este mundo, tão belo e rico, mas às vezes de tão curta-metragem para quem se fecha no seu pequeno e egoísta círculo de vida, precisa de reavaliar o que é uma vida humana, mesmo a daqueles que parecem ser apenas um estorvo e um incómodo para os sedentários da poltrona e do comodismo. Acredito na pessoa humana, e acredito que todos podem converter-se, mudar, refazer vidas, restaurar-se interiormente e voltar a sonhar e a olhar para horizontes mais alargados, sem ser preciso destruir ninguém.

É urgente criar condições para reclassificar valores, de modo a vermos toda a gente como Pessoa, darmos calor a quem há muito congelou sentimentos e futuros, e percebermos que uma vida com qualidade passa sempre por uma vida com dignidade.

Padre João Gonçalves, Diocese de  Aveiro

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