Homilia do Bispo do Porto na solenidade de Cristo-Rei

Amados irmãos e irmãs, especialmente vós, membros do laicado militante da Diocese do Porto; e também vós, os que hoje dais um passo importante e eclesialmente reconhecido para o diaconado permanente:

Sendo Domingo, muita gente aproveita para justamente repousar, conviver ou simplesmente fazer o que o dia a dia não permite. Vós, especificamente, organizastes a vossa vida para estardes aqui, na nossa Igreja catedral, para renovar compromissos apostólicos, segundo o caso e a missão de cada um.

Acolho-vos com muita alegria e estima, confirmando-vos em tais propósitos, e agradeço a Deus a disponibilidade que alargou nos vossos corações, para mais intensamente vos incluirdes na vida da Igreja, ao serviço de todos.

Serviço particularmente requerido nestes tempos socialmente complexos e difíceis, em que os discípulos de Cristo têm oportunidade e responsabilidade reforçadas para serem “luz do mundo e sal da terra”, iluminando e condimentando as mais diversas situações – da família ao trabalho, da solidariedade à justiça, da cultura à política – com o esclarecimento e o bom sabor que o Evangelho lhes pode oferecer, encontrando quem o faça. Aliás, virtude do sal é também impedir a corrupção dos alimentos; e assim mesmo deve fazer qualquer cristão, esteja onde estiver, para impedir que as situações se deteriorem e agudizem, por violência, injustiça ou descaso.

Onde houver cristãos, deve haver futuro. Futuro pela presença consciente e activa, futuro pela atitude reconciliadora e promotora, futuro pela profecia viva da bondade, verdade e beleza de Cristo, continuadas na vida dos que recebem o seu Espírito e manifestam que, realmente, as suas palavras não passarão, antes se incarnam em cada geração de crentes, para a salvação do mundo.

E isto mesmo é o seu Reino, hoje universalmente celebrado, na grande e feliz solenidade de “Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo”. Grande e feliz, repito, mas necessariamente autêntica, deixai-me precisar.

Sim, irmãos e irmãs, podem estas naves ser magníficas e evocadoras, podem os cânticos e a música ressoar com grande envolvimento e sugestão, podem os ritos e as palavras suceder-se na melhor sequência litúrgica… Tudo isto pode e deve suceder, e assim o agradecemos a Deus, lembrando até quantos cristãos não têm a oportunidade – e nalguns casos a liberdade – de se reunirem como nós, para festejar tão grande dia. Mas se, com tudo isto, esquecêssemos o motivo e o cerne da solenidade celebrada, a sua autenticidade perigaria e o seu proveito espiritual e prático diminuiria muito.

Reparemos então no título – Cristo Rei -, para compreendermos melhor o sentido. Não esqueçamos que, pela encarnação do Verbo, dogma central do cristianismo, o que Deus tem para nos dizer o diz finalmente no homem Jesus, seu Filho eterno e nosso Senhor para sempre. Constatemos até como um texto das primeiras gerações cristãs conseguiu resumir em apenas dois versículos quase toda a nossa teologia, ou mesmo toda no essencial: “Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por meio de quem fez o mundo” (Hb 1, 1-2). Deixai-me adiantar que, quando percebermos e assimilarmos tudo o que estas inspiradas linhas nos disseram, saberemos quanto dois mil anos de teologia cristã nos oferecem de essencial, quer na dimensão intelectual, quer na piedade dos crentes.

Mas este foi também o risco que Deus quis correr, para se dizer humanamente. Constamo-lo em cada página evangélica: Jesus admirava muitos, mas confundia outros tantos, sendo repetidamente “sinal de contradição” (cf. Lc 2, 34). Aclamavam-no agora para o acusarem a seguir, quando não ao mesmo tempo, tanto pelo que fazia, como pelo que deixava de fazer. Palavras sagradas como “Sábado”, “Templo” ou “Terra”, ganhavam na sua boca um sentido novo, que os deixava atónitos e, por vezes, indignados.

Na verdade, não negava a profecia antiga, mas vinha dar-lhe “pleno cumprimento”, indo muito além do reforço das seguranças religiosas ou sociais, sempre apetecidas. O risco de Deus é este: superar as nossas palavras com a sua Palavra, abrir as nossas vidas com a sua Vida, mesmo que para isso tenhamos de nascer de novo e não apenas prolongar o que já somos, o que ainda somos, demoradamente somos…

Assim o disse a Nicodemos e o repete agora a cada um de nós: “Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer do Alto, não pode ver o reino de Deus”. Para explicar, pouco depois: “Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus” (cf. Jo 3, 3-5).

Caríssimos irmãos e irmãs, baptizados no Espírito de Cristo, pela água que o significa: Vós bem sabeis o que tais palavras traduzem, pois que se soletram intimamente nos vossos corações, para se repercutirem concretamente nas vossas vidas, no acontecer familiar, eclesial e social do dia a dia. Vós bem sentis o apelo e o impulso do Espírito, para serdes cada vez mais orantes e dialogantes, mais generosos e solidários, mais justos e comprometidos no bem de todos, sobretudo em relação aos mais frágeis e desprotegidos. Isto sabeis e ides sabendo cada vez melhor, na resolução positiva da “contradição” evangélica, que constantemente vos leva a escolher a verdade, a bondade e a beleza de Cristo, rejeitando a mentira, o egoísmo e a sedução do que não vale nem presta, nem para os outros nem para vós mesmos.

E assim entrais no Reino, que insistentemente pedis ao Pai e se realiza em Cristo: “Venha a nós o vosso Reino!”. O Reino de Deus no mundo é a verdade de Cristo, reconhecida e aceite. Isso mesmo o explicou ele, em contradição absoluta com o maior reino que o mundo já vira e Pôncio Pilatos representava.

Lembrais-vos certamente da passagem, como a descreve São João: “Disse-lhe Pilatos: ‘Logo, tu és rei!’. Respondeu-lhe Jesus: ‘É como dizes: Eu sou rei! Para isto nasci, para isto vim ao mundo: para dar testemunho da Verdade. Todo aquele que vive da Verdade escuta a minha voz’” (Jo 18, 37). Lembramos também como Pilatos replicou: “Que é a verdade?”. Mas sobretudo responderemos, com firme convicção de sentimento e prática: “A verdade é Cristo, a vida verdadeira é o Evangelho, reinando ambos na existência crente, assinalada na Igreja e oferecida ao mundo!”.

Realeza de Cristo e salvação do homem tornam-se uma coisa só, pois reinar é expandir a vontade e a vida no mundo em redor, e a vontade de Cristo não é senão essa. Em repetido contraste com tantas contrafacções imperantes de ontem e hoje, que “roubam” a esperança e o futuro de muita gente: “O ladrão não vem senão para roubar, matar e destruir. Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10).

Realeza de Cristo, pois, mas tão paradoxalmente manifestada, como ainda há pouco, no Evangelho proclamado: “Por cima d’Ele [de Jesus crucificado] havia um letreiro: ‘Este é o rei dos judeus’”. – Estranha proclamação e estranhíssimo trono! É apresentado como rei e o seu trono é uma cruz… Reina quando dá a vida e dá-a “até ao extremo” (cf. Jo 13, 1), identificando-se com a atrocidade do fim dos mais lesados pelos baldões da vida e pela (in)justiça dos homens.

Havia mais crucificados no Calvário, classificados como “malfeitores”. Disse-lhe um: “Não és tu o Messias? Salva-te a ti mesmo e a nós também”. Ao que o outro retorquiu, repreendendo-o: “Não temes a Deus, tu que sofres o mesmo suplício? Quanto a nós, fez-se justiça, pois recebemos o castigo das nossas más acções. Mas Ele nada praticou de condenável”. E, voltando-se para Jesus, levado por uma última esperança: “Jesus, lembra-te de mim, quando vieres com a tua realeza!” Para ouvir a mais consoladora resposta que nos possa ser oferecida: “Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso”.

Caríssimos irmãos e irmãs, caríssimo laicado militante da Diocese do Porto e especialmente vós, estimados irmãos que vos dispondes ao diaconado permanente: – Concentremo-nos todos na realeza de Cristo, evangelicamente manifestada e só assim aceite e cumprida em cada um de nós e, por nós, no mundo!

Reconheçamos, como o segundo “malfeitor” – pois também aqui os últimos serão os primeiros -, a inocência de Cristo, ou seja a sua absoluta bondade, que é também a sua verdade e beleza. Abandonemo-nos à sua misericórdia, como Jesus se abandonou na de Deus Pai, que inteiramente compartilha no Espírito.

E permaneçamos com ele no “paraíso” duma comunhão que nada abale, nem a vida nem a morte. “Paraíso” que é tudo menos enlevo solitário, pois está preenchido pela caridade total e o compromisso certo pelo bem de todos e a feliz realização do mundo. Por isso queria Santa Teresa do Menino Jesus “passar o seu céu a fazer o bem na terra”. Por isso a Carta aos Hebreus nos apresentou Cristo com estas palavras de pleno envolvimento e sacerdócio eterno: “Ele pode salvar de um modo definitivo, os que por meio dele se aproximam de Deus, pois Ele está vivo para sempre, a fim de interceder por eles” (Hb 7, 25).

Participemos então na realeza “sacerdotal” de Cristo, intercedendo por todos, no céu de Deus e na terra dos homens, que Deus não abandona e sempre assinala na caridade de Cristo, compartilhada pelos cristãos em  universal benefício. Este é o Reino e esta a missão da Igreja que, inteiramente queremos integrar.

– Não seremos nós a defraudar os sonhos de Deus, não seremos nós a esquecer o seu propósito. Estenderemos os braços da Cruz até onde tiverem de chegar, onde importa que cheguem e precisamente agora!

Sé do Porto, 21 de Novembro de 2010

+ Manuel Clemente

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