Discurso do presidente da CEP na abertura da Assembleia Plenária

Esta Assembleia Plenária da CEP acontece num ambiente sensível, em que se cruzam perplexidades e aproveitamentos em torno de factos ou denúncias a que os media têm dado ampla cobertura. Factos e denúncias que exigem, de todos, coragem na análise, justiça, verdade e caridade nas palavras e atitudes.

Perante a grave lesão da dignidade pessoal das vítimas dos casos de pedofilia, importa restabelecer a justiça, purificar a memória e reafirmar, humildemente, o compromisso da Igreja de fidelidade a Deus e de serviço aos homens.

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Senhor Núncio Apostólico, Senhor Cardeal-Patriarca, Senhores Arcebispos e Bispos, esta é uma hora de grande alegria, de entusiasmo e esperança, o tempo de espera da visita do Papa, sucessor de Pedro. Estamos com o Santo Padre. Prosseguimos o nosso compromisso de fidelidade e renovamos a unidade através de um trabalho colegial, que nos orientará para um projecto pastoral comum. A Mensagem do Papa Bento XVI dará a este projecto, assim o esperamos, maior consistência e visibilidade. Sentimo-nos comprometidos em dar esperança às nossas comunidades e fazemo-lo a partir de um horizonte marcado pela sabedoria, de modo a oferecer luz às complexas situações hodiernas.

Caminhar na esperança com o Santo Padre deverá consistir em sublinhar algumas ideias estruturantes da sua sábia maneira de interpretar a experiência humana, a que a última encíclica deu particular relevo. Nesta encontramos um itinerário verdadeiramente programático que ainda não fomos capazes de assumir cabalmente e que, talvez por isso, a sociedade contemporânea não ousa descortinar como novidade para estes novos tempos.

1. A necessidade de um novo pensamento

Perante a complexa transformação social que estamos a atravessar, é necessário promover uma operação cultural de regeneração do pensamento; um pensamento novo, capaz de envolver diversos saberes e culturas, e que corresponda à natureza pluridimensional do ser humano.

A globalização e a recíproca abertura cultural é, sem dúvida, um terreno privilegiado para o diálogo entre os homens de boa vontade. Aquilo que é um dom, quando não é acolhido em verdade, pode, contudo, tornar-se equívoco. Ela é, por isso, geradora de ruptura de tradições, vínculos e convicções, de modo que o relativismo impõe os seus critérios. Apesar de uma aparente proximidade, assistimos, nas palavras do Santo Padre, a um “esmorecimento da esperança, por uma certa desconfiança nas relações humanas” (1).

Ora, este novo pensamento tem um nome concreto: a Verdade. A verdade, tal como a beleza, cinge-se àquilo que é autêntico, que não é efémero nem superficial, não é acessório nem secundário mas, bem pelo contrário, liberta, comunica, sobressalta e gera pontes para um diálogo genuíno e transversal. Tão importante quanto o horizonte da Verdade absoluta, que nós identificamos com Jesus Cristo, são as legítimas aproximações à Verdade. Neste sentido, Bento XVI alerta para o facto de que surgirá uma cultura universal que nunca será monolítica (2). E nós teremos de ser capazes de estar neste meio com uma proposta original.

Outrora, as culturas eram perfeitamente definidas e podiam defender-se de qualquer tipo de homogeneização pretendida por alguns. Hoje, só uma adequada gramática do diálogo garantirá o encontro entre identidades culturais diferentes, numa relação recíproca, correcta e respeitadora. Este “êxodo” adquire traços concretos na necessária abertura à fé e na coragem de sair dos esquemas habituais para entrar no areópago das novas exigências filosóficas, políticas, sociais, económicas e artísticas.

Cabe-nos a missão de sermos intérpretes da caridade, mas esta não exclui “o saber, antes reclama-o, promove-o e anima-o” (3). O amor à verdade, preocupação permanente da Igreja, deveria chegar ao Estado e a muitas outras instâncias de decisão. Não basta o esforço individual ou a força democrática dos números. A verdade é uma aventura do compromisso com o bem de todos, e seria necessário “trazer ao processo de argumentação política a preocupação pela verdade” (4).

2. Novo compromisso na caridade

Neste amor que pensa, e neste pensamento que ama, somos conduzidos à “maravilhosa experiência do dom”, que o orgulho humano nem sempre quer reconhecer. Somos fruto do dom e, por isso, feitos para o dom, o que faz com que procuremos e proponhamos um humanismo que se exprime na gratuidade e na reciprocidade.

Na Encíclica Caritas in veritate encontramos um apelo a uma verdadeira “conversão”, não só no modo de pensar mas também no modo do agir social. O Santo Padre já havia referido, na Introdução ao Cristianismo, um princípio verdadeiramente inovador que agora inculca como novidade para o presente histórico: “O receber precede o fazer”. Na Encíclica interpela a que se transite de um cenário onde os homens são vistos como os únicos e originais reguladores e construtores da sociedade para outra realidade completamente distinta, onde se tornam humildes na escuta de um sentido que é dado e que nasce de um projecto recebido sobre a humanidade.

Daqui emerge o dever da Igreja se expressar como visibilidade do amor de Deus. A caridade e a solidariedade pertencem à sua natureza e, como consequência, o cristão, de modo individual ou através de diferentes instituições, tem de assinalar a história de hoje com este sinal distintivo. Nem todos querem reconhecer o trabalho existente e são poucos aqueles que conhecem o dinamismo da caridade. Não estamos numa exposição de vaidades, mas a sociedade necessita de (re)conhecer o que move muitas instituições.

Reconhecendo os luzeiros de amor espalhados por todo o país, teremos de intensificar esta aposta, fazendo com que o exercício da caridade não apareça “desequilibrado” perante uma aposta preferencial na catequese e na liturgia. A caridade, em muitas comunidades, parece surgir como um apêndice, quando deveria tornar-se o testemunho onde a vida cristã cresce e se fortalece (5), uma vez que a caridade pode, de igual modo, tornar-se o coração e a estrada da evangelização (6).

A título de exemplo, recordamos a necessidade de reforçar a dimensão preventiva e de proximidade, mais do que a terapêutica ou curativa; personalizar as respostas, evitando o anonimato, a burocratização; assinalar novas situações e formas de pobreza e denunciar direitos que não são respeitados; solicitar novas respostas e sugerir prioridades. Como Igreja, e em caridade criativa, teremos de descobrir, reconhecer e libertar os pobres. Sabemos que existem situações de miséria escandalosa. Precisamos de ir ao encontro daqueles que sofrem e oferecer-lhes uma dignidade superior à de um mero número estatístico (7).

3. A ousadia do dom no mundo do mercado

O presente Ano Mundial da Erradicação da Pobreza mostra que, infelizmente, não é possível descansar ou dar tréguas. A concorrência desenfreada e uma assustadora avidez do lucro para um consumismo impensado interrogam-nos se seremos capazes de propor modelos alternativos. O Santo Padre sugere a lógica do dom e da gratuidade como resposta às exigências frias do mercado. A cultura da modernidade relega a gratuidade para a esfera privada, expulsando-a, decididamente, do espaço político e, particularmente, do mundo económico onde se pretende que triunfe o contrato. Numa cultura do dar, reconhecemos que o lucro não pode ser o único fim da vida individual e, particularmente, de uma empresa.

A gratuidade necessita de entrar em todos os âmbitos da vida e exige a reciprocidade para uma concreta interpretação do humanismo cristão. Ela beneficia quem recebe mas também quem dá. Só deste modo se conseguem ultrapassar as gigantescas assimetrias que negam a possibilidade de uma vida digna para todos. Com a gratuidade e a reciprocidade compreende-se o bem comum como diferente da soma dos bens privados. O bem público só acontece quando os interesses de cada um se realizam em simultâneo, e nunca contra os outros ou prescindindo dos outros.

A conjugação da gratuidade com a reciprocidade exige uma relação entre os direitos e os deveres (8). Foi-se criando um clima de reconhecimento justo dos direitos que não acompanhou a importância de uma vivência responsável dos deveres. O futuro da sociedade está condicionado pelo contributo que cada um oferece para um clima de confiança mútua, de segurança e de tranquilidade.

4. Repartir com alegria

O Santo Padre encontrará o Santuário de Fátima a encerrar o itinerário dos mandamentos e a propor uma visão positiva – repartir com alegria – do décimo mandamento “Não cobiçar as coisas alheias”.

Não custa muito reconhecer, em algumas pessoas, um desejo desordenado pelos bens materiais. A acumulação desonesta, plasmada numa astúcia nem sempre eticamente certa e guiada por processos desumanizantes da economia, gera uma actividade sem escrúpulos e situações de corrupção ou de aproveitamento dos mais fracos.

A redescoberta de novos caminhos para a economia deve contemplar a dignidade do ser humano, num respeito por todos, a partir de uma consideração englobante das diversas dimensões da existência humana. Ora, é certo que este novo caminho está sujeito a perigos contrastantes. A vigilância deve ser, por isso, permanente, sem medo de criticar os frequentes desvios que estão a gerar situações injustas e pecaminosas, como consequência de muita apropriação indevida (9).

Nunca poderemos ser redutores ao individualizar as causas. Mas, em termos gerais, podemos afirmar que a apropriação indevida dos bens e a avidez de ganhos explicita-se na corrupção, na usura, na especulação imobiliária, na fuga aos impostos, na especulação bolsista, na falta de transparência, etc. Adora-se o “ídolo” do ter com um coração que cobiça o alheio.

Se é necessário um ordenamento jurídico onde esteja vincado o sentido de uma economia social, a mensagem cristã continua a dirigir-se ao mundo interior do ser humano. Aí, e só aí, pode acontecer a conversão, descentralizando os interesses de um “eu” para um “nós” capaz de proporcionar felicidade a todos e não apenas a alguns. A partilha, numa economia de verdadeira comunhão, e de ética social, é o testemunho que a Igreja deve proclamar e viver (10). Para isso, os caminhos da solidariedade exigem a sobriedade que parece ser alheia aos dinamismos de quem acredita na felicidade do ter e no gozo ilimitado. Viver para além das reais possibilidades engana e está a conduzir a situações dramáticas na vida das pessoas e das famílias.

 

Conclusão

São estas algumas considerações de um pensamento novo, oriundo de uma descoberta do amor como verdade. A caridade na verdade é muito mais que o título de uma encíclica. É a causa, a condição, o caminho, o processo e a realização de um verdadeiro humanismo. Nesta perspectiva, teremos de reconhecer que as tremendas anomalias que caracterizam a nossa sociedade são doenças graves que necessitam de ser encaradas com experiências corajosas e inovadoras, projectando um caminho novo a percorrer com novas regras e novas orientações. O nosso contributo, a expressar através de uma acção pastoral repensada e dominada por uma reinterpretação da consciência missionária, pode e deve ser esperança para o povo português, a que o Santo Padre virá trazer reforçadas motivações e horizontes.

D. Jorge Ortiga, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa

 

Notas:

1- Bento XVI, Discurso aos artistas, 2010

2 -Bento XVI, Encíclica Caritas in veritate (CV), 42.

3 -“A acção é cega sem o saber, e esta é estéril sem o amor”. “As exigências do amor não contradizem as da razão”. “Não aparece a inteligência e depois o amor: há o amor rico de inteligência e a inteligência cheia de amor” (CV 30).

4 – Bento XVI, Discurso para o encontro na Universidade de Roma “La Sapienza”, citando o autor Jürgen Habermas.

5 – “Para a Igreja, a mensagem social do Evangelho não deve ser considerada uma teoria, mas sobretudo um fundamento e uma motivação para a acção (…). A Igreja está consciente, hoje mais que nunca, de que a sua mensagem social encontrará credibilidade primeiro no testemunho das obras e só depois na sua coerência e lógica interna” (João Paulo II, Centesimus Annus, 57).

6 – “Se evangelizar significa encontrar os homens com o amor de Cristo, parece evidente que o serviço aos pobres é parte integrante da evangelização e não fruto dela. Aliás, é parte eminente da evangelização, porque na escolha dos últimos manifesta-se mais claramente o carácter desinteressado e gratuito da caridade” (C.E.I., Il vangelo della carità per una nuova società in Italia, 1997).

7 – “O nosso amor entre nós, o nosso amor pelos irmãos, que são todos os homens dos mais próximos aos mais longínquos; dos mais pequenos, das mais pobres, dos mais necessitados até aqueles que nos são antipáticos e inimigos. Esta é a fonte da nossa sociologia, esta é a Igreja, a sociedade do amor” (Paulo VI, Homilia na solenidade do Corpo de Deus, 1970).

8 – Bento XVI, Encíclica Caritas in veritate, 43.

9 – “A crise obriga-nos a projectar de novo o nosso caminho, a impor-nos regras novas e encontrar novas formas de empenhamento, a apostar em experiências positivas e rejeitar as negativas” (CV 21).

10 –  “O grande desafio que temos diante de nós – resultante dos problemas do desenvolvimento neste tempo de globalização, mas revestindo-se de maior exigência com a crise económico-financeira – é mostrar, a nível tanto de pensamento como de comportamentos, que não só não podem ser transmudados ou atenuados os princípios tradicionais da ética social, como a transparência, honestidade e a responsabilidade, mas também que, nas relações comerciais, o princípio de gratuidade e a lógica do dom como expressão da fraternidade podem e devem encontrar lugar dentro da actividade económica normal” (CV 36).

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Agência ECCLESIA

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