Uma viagem para comunicar

Não sei – mas gostava de saber – como organiza o Vaticano o roteiro das visitas papais. Como se escolheu por exemplo o destino das 104 viagens de João Paulo II? Há viagens papais com um indiscutível peso político como a de Paulo VI em 1969 ao Uganda ou a de João Paulo II à Polónia em 1979. O que se falou antes de as marcar? Com quem? O que se procurava em cada uma delas?

Este entendimento da viagem como forma de afirmação da fé e reforço de poder é indissociável das grandes religiões: do Egipto para Israel, de Meca para Medina… estamos perante gente que no destino se encontrou mais forte. Na fé e na política. Política foi também a escolha de Roma para centro do mundo do cristão: a fé nascera na Palestina mas a Igreja edificava-se em Roma, a terra dos césares.

No século XX antes de muitos dirigentes políticos terem tomado tal iniciativa os papas enfiaram-se em aviões que os levaram aos cinco continentes. Os Papas enquanto chefes de Estado e líderes religiosos tiveram uma percepção muito clara da importância da viagem. Seria sem dúvida interessantíssimo perceber o que pessoalmente concluíram em cada uma dessas viagens. Aliás viajando tanto sobretudo com João Paulo II qual é a percepção que têm dos países que visitam, do que está para lá das estradas onde as pessoas agitam os braços à sua passagem? O que se vê realmente além daquele círculo de segurança e protocolo? Infelizmente não o sabemos e provavelmente nunca saberemos porque os papas não escrevem impressões de viagem. Fazem bulas, epístolas, encíclicas, constituições dogmáticas e disciplinares, breves mas nada que relate, por exemplo, o que foi a experiência pessoal para um intelectual como era Paulo VI de confrontar-se com um santuário de Fátima onde as marcas da religiosidade popular eram evidentes em 1967 tal como o são hoje.

As viagens papais revelam ainda a capacidade do Vaticano em colocar as novas tecnologias ao serviço de ritos milenares. Tal como nos anos 60 do século XX o Vaticano apoiou os transplantes – recordo que um dos primeiros transplantados ao coração foi um sacerdote francês – também vai revelar uma aguda percepção da importância da rádio e da televisão não apenas como veículos de propagação de doutrina mas também de afirmação da figura dos papas. Creio não exagerar se escrever que os Papas foram os líderes que mais partido souberam tirar das novas tecnologias aplicadas aos meios de comunicação. Tal como passado tinham percebido a importância das artes, da pintura à música, no século XX os papas perceberam a importância da tecnologia.

Do ponto de vista comunicacional há algo de fascinante na forma de comunicar dos papas, esses homens em cujo discurso há um quase vazio da primeira pessoa do singular: falam em nome de Deus, numa mensagem que os fiéis vêem como sequências de um discurso que remonta a Pedro. Simultaneamente conseguiram não cair no dilema do dogma da palavra revelada que, noutros credos, como o muçulmano, torna difícil quando não impossível a adequação entre o discurso divino e as circunstâncias humanas. E por fim fazem-no com os meios mais modernos ao seu dispor sejam eles os frescos da capela Sistina ou celebrando missa num estádio de futebol.

Na forma de comunicar dos papas percebe-se que a frase “a César o que é de César, a Deus o que é de Deus” implica isso mesmo: quem como os papas se confronta com a necessidade de propagar a palavra que entendem divina precisa de comunicar o melhor possível com os meios existentes no mundo dos descendentes dos césares e para as circunstâncias que os césares de cada tempo colocam aos homens. Assim as viagens papais, para lá da experiência de fé que têm para os crentes, do que representam como experiência humana no sentido terreno da viagem enquanto transformação, são também uma das mais eficazes formas de comunicação de um Estado que fez da palavra a sua força e a sua razão de ser.

Helena Matos, Jornalista

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