Silêncio, projecto inovador na música sacra

Ecumenismo e cultura contemporânea em foco no Alentejo

Um dos aliados do esforço que está a ser feito para defender as igrejas históricas na Diocese de Beja é, por estranho que isso possa parecer, a música. De facto, o Festival “Terras sem Sombra” de Música Sacra, uma iniciativa realizada em parceria com a Arte das Musas, a Direcção-Geral das Artes do Ministério da Cultura e os municípios, já vai na sua sexta edição e tem-se imposto por uma programação rigorosa e qualificada.

O Festival, hoje uma referência no panorama cultural do país (e da vizinha Andaluzia), visita regularmente os principais monumentos religiosos e, além de assumir uma componente pedagógica de base – cada edição constitui um novo capítulo de uma informal “História da Música” –, dá a conhecer, através de palestras, visitas guiadas e exposições, a arte sacra dos concelhos percorridos. Tendo em conta a grande paixão dos alentejanos pela música, isto significou uma pequena revolução para o património mais esquecido ou negligenciado.

Nos últimos anos, a atenção da Diocese tem vindo a orientar-se para a arte contemporânea. Esta aproximação, segundo José António Falcão, director do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja (DPHA), vai ao encontro de uma lacuna há muito sentida: “existe um longo divórcio entre a Igreja e os criadores contemporâneos, mas é urgente abrir o património religioso aos testemunhos da vida dos nossos dias”.

As colecções dos museus diocesanos de Beja contam hoje com obras de pintores como Joana Villaverde ou escultores como Joana Vasconcelos. A própria equipa do Património Histórico integra, entre os seus elementos, artistas plásticos, entre eles o pintor António Paizana, o escultor Nuno Afonso e o fotógrafo Francisco Borba.

“A arte pode ajudar a devolver aos monumentos a voz de que eles precisam”, salienta Falcão. E acrescenta: “Eis uma reconciliação indispensável, mas que exige vistas largas e um trabalho de fundo.” Num momento em que não se revela fácil o diálogo entre a Igreja e os criadores artísticos, o Departamento acredita na importância de estender pontes e criar espaços de reflexão, o que corresponde, de acordo com os seus responsáveis, a uma tradição enraizada no Alentejo.

Silêncio

Para assinalar o quarto de século de actividade, algo pouco vulgar num meio em que florescem muitas iniciativas destinadas a uma vida breve, o DPHA levou a cabo o projecto Silêncio, que parte da música de matriz cristã para uma aproximação ecuménica, destinada a reunir católicos, ortodoxos e protestantes.

Concebida por Sara Fonseca e Filipe Faria e interpretada pelo agrupamento Sete Lágrimas, a iniciativa assenta na encomenda de seis obras a três compositores contemporâneos: Ivan Moody (n. 1964), Andrew Smith (n. 1970) e João Madureira (n. 1971).

O desafio lançado a estes mestres residiu na composição de duas obras tendo por base a proveniência cultural de cada um deles: uma peça de maior fôlego e outra de carácter mais popular para instrumentos “antigos”.

As obras, de carácter sacro e em seis idiomas diferentes, do latim ao russo, assentam em textos do Antigo e do Novo Testamento (Génesis, Lamentações e Paixão) e, complementarmente, de origem popular das distintas proveniências dos compositores. Trata-se de um olhar contemporâneo, em clave ecuménica, sobre as tradições ortodoxa, protestante e católica.

Sete Lágrimas, um consort especializado em música antiga e contemporânea, é, desde 2006, o grupo residente do Festival Terras sem Sombra de Música Sacra do Baixo Alentejo, tendo sido considerado um dos mais relevantes agrupamentos da actualidade nacional pela crítica. Surgido em 2001, conta já com uma discografia assinalável: “Lachrimæ #1” (2007), “Kleine Musik” (2008) e “Diaspora.pt” (2008).

Para a interpretação das obras de Moody, Smith e Madureira, associou ao seu dispositivo a soprano húngara Zsuzsi Toth, uma voz reconhecida, pela surpreendente beleza e pela performance clara, mas cheia de cor, no meio da música contemporânea europeia.

Silêncio terá a ante-estreia em Beja, na igreja de Santa Maria da Feira, neste Sábado, 14 de Novembro, pelas 21.30 horas. A estreia realizar-se-á no Centro Cultural de Belém, a 15 de Novembro, pelas 18.00 horas. Este concerto será precedido (17h00) por uma conversa, moderada pelo jornalista António Marujo (do Público), com Ivan Moody, Andrew Smith, João Madureira e o Pe. José Tolentino Mendonça.

Nas mesmas ocasiões proceder-se-á ao lançamento do CD do projecto, gravado pela Sony na Áustria e editado sob a chancela da MU Records. A iniciativa conta com o apoio da Direcção-Geral das Artes/Ministério da Cultura, do Turismo do Alentejo e da Câmara Municipal de Beja.

Homenagem

Este projecto presta homenagem D. Manuel Franco Falcão (n. 1922), figura marcante da Igreja Portuguesa na segunda metade do século XX. Engenheiro de formação e detentor de ampla cultura humanística, em boa medida adquirida no contacto com um tio, Cónego José Falcão – helenista e notável perito no campo dos estudos bíblicos –, foi ordenado padre em 1951.

No Patriarcado de Lisboa destacou-se como professor do Seminário dos Olivais, como cientista social e como inovador na área da pastoral, sendo ordenado bispo auxiliar em 1967. Cultivou com paixão o jornalismo e a divulgação científica. A sua abertura aos problemas sociais, patente em momentos decisivos da vida nacional, tornou-o a escolha mais acertada para suceder, na cátedra episcopal de Beja, ao arcebispo D. Manuel dos Santos Rocha. Bispo coadjutor em 1974, passou em 1980 a residencial.

O Alentejo deve-lhe contributos importantes para o seu desenvolvimento, entre os quais uma aposta na valorização da identidade cultural da região, que o DPHA tem vindo a promover com afinco, dentro e fora de portas. Após a resignação, em 1999, D. Manuel Falcão continuou a viver em Beja, na companhia do actual bispo, D. António Vitalino Dantas.

DPHA

O património cultural debate-se hoje, num mundo globalizado e em rápida mutação, com grandes problemas. No que toca a Portugal, esta situação afecta, com particular intensidade, o património religioso, que corresponde a uma parcela esmagadora do nosso universo patrimonial – quase três quartos. A Igreja vê-se hoje a braços com enormes dificuldades para fazer frente a uma situação que, do ponto de vista financeiro e técnico, ultrapassa as suas possibilidades.

O Estado, por seu turno, dispõe cada vez de menos recursos para conservar e manter abertos os monumentos, alijando responsabilidades nos municípios, também eles sobrecarregados de encargos. Face ao descalabro que se adivinha para muitos monumentos e obras de arte sacra, a única esperança consiste na mobilização da sociedade civil. Hoje, mais do que nunca, o futuro do património depende da mobilização das comunidades locais. Algo que não se faz com uma varinha mágica.

Foram estas as preocupações que estiveram na origem do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja. Fundado em 1984 pelo então bispo de Beja, D. Manuel Franco Falcão, este serviço, constituído essencialmente por voluntários, inclui um “núcleo duro”, de marcado carácter técnico-científico, com 12 membros, e conta com cerca de duas centenas de colaboradores dispersos pelo vasto território do Baixo Alentejo – Beja é a segunda maior diocese do país em área, mas também a mais despovoada.

A luta pela salvaguarda do património faz-se aqui em condições desiguais, uma vez que a desertificação crescente do interior abre a porta a situações de abandono, furto e vandalismo, especialmente em zonas rurais onde já há poucos habitantes. Mesmo assim, tem sido possível recuperar e dar nova vida a muitos monumentos e obras de arte em risco.

Ana Santos

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