Catequese do Cardeal-Patriarca no 5.º Domingo da Quaresma

A Palavra rezada Introdução 1. Toda a escuta sincera da Palavra integra-se na atitude orante, é o ponto de partida da experiência da oração. “A oração é o exercício do desejo”, afirma Bento XVI, citando Santo Agostinho[1]. E o P. Voillaume afirma: “O sentimento de insatisfação faz parte da oração: é a prova de um desejo não satisfeito que só pode crescer com amor. A oração, em vez de matar essa sede, fá-la cada vez maior”[2]. O desejo de escutar o Senhor e de entrar na sua intimidade é o dinamismo da oração e está presente quando, lendo a Sagrada Escritura, não se pretende apenas aprender, mas se deseja ardentemente escutar o Deus vivo. Quem escuta ou lê a Escritura com fé, é movido por este desejo de escutar a Palavra viva de Deus, deixando-se arrastar para a convivência íntima com Ele. A Palavra lida ou escutada assim prepara o coração para ouvir o Senhor, dilata o coração tornando-o mais capaz de escutar. O Santo Padre na sua Encíclica sobre a Esperança afirma: “O ser humano foi criado para uma realidade grande, ou seja, para o próprio Deus, para ser preenchido por Ele. Mas o seu coração é demasiado estreito para a grande realidade que lhe está destinada. Tem de ser dilatado. Assim procede Deus: diferindo a sua promessa, faz aumentar o desejo; e com o desejo, dilata a alma, tornando-a mais apta a receber os seus dons”[3]. Se o desejo é o sentimento que nos leva a procurar a Palavra viva de Deus, a palavra inspirada da Escritura, à medida que penetra em nós, realiza esse dilatar da alma. A Palavra da Escritura deve ser ouvida e relida, preparando o coração para escutar o Deus vivo. Como escutar a Escritura 2. Um dos motivos pelos quais a escuta ou leitura da Sagrada Escritura é ineficaz na vida dos cristãos e da Igreja, não produzindo o efeito de pôr em contacto com a Palavra viva, é o ser escutada de maneira imperfeita. O espírito não se preparou para essa escuta; em assembleia, a leitura é tantas vezes imperfeita, não há o silêncio interior para acolher a Palavra do Senhor. E esse primeiro momento da Palavra bem escutada é importante para que ela nos conduza ao coração de Deus. Cito-vos, a este propósito, um texto dos Padres da Igreja: “Vós que percorreis os jardins da Escritura não tendes que o fazer depressa ou com negligência. Cavai cada palavra para dela tirar o Espírito. Imitai a abelha laboriosa que de cada flor recebe o seu mel”[4]. Este saborear o texto é etapa decisiva para escutar, através dele, o Senhor. Quando se lê pessoalmente, esse momento é mais fácil, se se está devorado pelo desejo de escutar o Senhor. Quando se escuta em assembleia é mais exigente, sugere uma pedagogia para conduzir a comunidade a essa escuta, de que os momentos de silêncio, a admonição esclarecedora e motivadora, o cântico com unção, e, sobretudo, a boa proclamação da Palavra, devem fazer parte. Referindo-se à celebração litúrgica, lugar próprio para a escuta da Palavra em comunidade, o Concílio Vaticano II ensina: “para obter a sua eficácia plena é necessário que os fiéis acedam à Liturgia com as disposições de uma alma recta, que harmonizem a sua alma com a sua voz, que cooperem com a graça do alto, para não receberem esta em vão”[5]. Esta predisposição prévia é já expressão do desejo de escutar o Senhor. A Palavra torna-se oração 3. Quando a Palavra que se escutou ou se leu se torna viva e toca o coração, se torna Palavra de Deus viva para nós, ela torna-se oração, experiência de comunhão, e a oração torna-se esperança. Quando Deus nos fala renova-se totalmente o sentido da nossa vida. Bento XVI refere-se, assim, a esse momento surpreendente da escuta da Palavra do Deus vivo: “Primeiro e essencial lugar de aprendizagem da esperança é a oração. Quando já ninguém me escuta, Deus ainda me ouve. Quando já não posso falar com ninguém, nem invocar mais ninguém, posso sempre falar com Deus. Se não há mais ninguém que me possa ajudar – por tratar-se de uma necessidade ou de uma expectativa que supera a capacidade humana de esperar – Ele pode ajudar-me. Se me encontro confinado numa extrema solidão… o orante jamais está totalmente só”[6]. Neste chegar à oração enquanto convívio íntimo com o Senhor, através da Sua Palavra, a Escritura, palavra humana inspirada, funciona como um sacramento: a sua leitura ou escuta conduz-nos à intimidade, sugere-nos o que devemos responder a Deus que nos dirigiu a Sua Palavra. O que lemos ou proclamamos alarga e conduz o nosso coração. Ouçamos Bento XVI no seu livro “Jesus de Nazaré”: “Bento, na sua Regra, cunhou a fórmula «mens nostra concordet voci nostrae – o nosso espírito concorde com a nossa voz» (19,7). Normalmente o pensamento precede a palavra, procura e forma a palavra; mas, na oração dos Salmos, na oração litúrgica em geral, passa-se o contrário: a palavra, a voz precede-nos, e o nosso espírito deve adequar-se a esta voz. De facto nós, homens, sozinhos, não sabemos «o que devemos pedir em nossas orações» (Rom. 8,26); encontramo-nos demasiado longe de Deus: demasiado misterioso e grande é Ele para nós. Por isso Deus veio em nossa ajuda: Ele mesmo nos sugere as palavras de oração vindas d’Ele, concede-nos caminhar para Ele, conhecê-l’O pouco a pouco através da oração com os irmãos que nos deu, e aproximarmo-nos d’Ele”[7]. Este efeito sacramental da Palavra faz com que a nossa oração não seja, apenas, a compreensão humana da Escritura, mas um dom do Espírito de Deus, que reza em nós e suscita no nosso coração a resposta à Palavra viva do Senhor. É essa a visão de Paulo acerca da oração do cristão: “Do mesmo modo o Espírito, vem em auxílio da nossa fraqueza, pois nós não sabemos o que pedir para rezar como convém. Mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis e aquele que sonda os corações sabe qual é o desejo do Espírito e que a sua intercessão pelos santos corresponde aos desejos de Deus” (Rom. 8,26-27). A Palavra humana da Escritura torna-se, mais uma vez, instrumento do Espírito, levando-nos a rezar como Deus gosta. Como diz o Santo Padre, “o modo correcto de rezar é um processo de purificação interior que nos torna aptos para Deus e, precisamente desta forma, aptos também para os homens. Na oração o ser humano deve aprender o que verdadeiramente pode pedir a Deus, o que é digno de Deus”[8]. Oração pessoal e comunitária 4. Como já afirmámos várias vezes, nas catequeses anteriores, a Sagrada Escritura é a Palavra que Deus dirige ao Seu Povo. Quando ela se torna oração, é a Igreja que reza, mesmo no orante individual. A oração através da Sagrada Escritura leva o cristão, que reza, a sentir-se, em tudo o que é, membro da Igreja, Povo do Senhor. Escutemos, mais uma vez, a última Encíclica do Santo Padre: “Para que a oração desenvolva esta força purificadora deve, por um lado, ser muito pessoal, um confronto do meu eu com Deus, com o Deus vivo; mas, por outro, deve ser incessantemente guiada e iluminada pelas grandes orações da Igreja e dos santos, pela oração litúrgica, na qual o Senhor nos ensina continuamente a rezar de modo justo (…). Na oração deve haver sempre um entrelaçamento de oração pública e oração pessoal. Assim podemos falar a Deus, assim Deus nos fala. Deste modo, realizam-se em nós as purificações, mediante as quais nos tornamos capazes de Deus e idóneos ao serviço dos outros. Assim, tornamo-nos capazes da grande esperança e ministros da esperança para os outros: a esperança em sentido cristão é sempre esperança também para os outros”[9]. No seu livro “Jesus de Nazaré” Bento XVI descreve, de maneira muito bela, esta interpenetração do pessoal e do comunitário na oração a partir da Palavra de Deus: “A oração não deve ser uma exibição diante dos homens; exige aquela discrição que é essencial numa relação de amor. Deus dirige-Se a cada indivíduo, chamando-o com um nome próprio que ninguém mais conhece, diz-nos a Escritura (Ap. 2,17). O amor de Deus por cada indivíduo é totalmente pessoal e contém em si este mistério da unicidade que não pode ser divulgada diante dos homens. Esta discrição essencial da oração não exclui a dimensão comunitária: o próprio Pai Nosso apresenta-se como uma oração na primeira pessoa do plural, e somente entrando a fazer parte do «nós» dos filhos de Deus, é que podemos ultrapassar as fronteiras deste mundo e elevar-nos até Deus. Mas este «nós» desperta a parte mais íntima da minha pessoa; no acto de rezar, devem compenetrar-se sempre o aspecto exclusivamente pessoal e o aspecto comunitário, como havemos de ver mais em pormenor na explicação do Pai Nosso. Tal como na relação entre homem e mulher há a esfera totalmente pessoal, que precisa dum espaço protegido pela discrição, mas ao mesmo tempo a relação a dois no matrimónio e na família, incluindo, por sua natureza, também uma responsabilidade pública, o mesmo se verifica na relação com Deus: o «nós» da comunidade orante e a dimensão muito pessoal daquilo que só a Deus se pode comunicar compenetram-se reciprocamente”[10]. A oração litúrgica 5. A Liturgia é a oração da comunidade reunida para celebrar os mistérios de Cristo, Palavra eterna de Deus. A comunhão com Cristo é a maneira mais intensa e profunda de escutar a Palavra viva de Deus. É na Liturgia que a síntese entre oração pessoal e comunitária se realiza na sua forma mais expressiva, embora a dimensão comunitária deva estar presente mesmo quando o cristão reza sozinho. Se o faz adorando a Santa Eucaristia, a sua oração pessoal está em relação directa com a grande oração da comunidade, a celebração da Eucaristia. Na Liturgia, de modo especial na celebração eucarística, há uma relação directa entre a Palavra escutada e Cristo, Palavra eterna de Deus, na comunhão com Ele, na Sua Páscoa. Não se pode considerar a celebração da Eucaristia em duas partes autónomas e separadas: celebração da Palavra e celebração da Eucaristia. Toda ela é um encontro com a Palavra do Deus vivo, cuja escuta desabrocha numa intensidade de comunhão. A Palavra escutada, de modo particular a Palavra de Jesus no Evangelho, leva-nos a identificar, na Eucaristia, o Verbo eterno de Deus, e a mergulharmos, com Ele, na comunhão de vida e de amor. Nunca se escuta tanto a Palavra eterna de Deus como quando nos unimos a Ele, e por Ele, nos unimos intensamente à Igreja, que oferece, com Ele, o sacrifício de louvor. Se toda a escuta da Palavra de Deus nos conduz à adoração e à comunhão com Ele, na Eucaristia esse efeito é completo, pois a Palavra escutada leva-nos à comunhão com Cristo, unidos a Ele na oferta ao Pai do acto de amor que redimiu o mundo. A relação da escuta da Palavra e a comunhão com Deus, em Jesus Cristo, é tão total, que podemos dizer que toda a leitura orante da Palavra da Escritura tem dimensão eucarística e clama pela Eucaristia, mesmo quando é feita fora da celebração. A celebração da Eucaristia é o momento mais exigente da verdade da Igreja. Ela é mais que um rito; antes de ser acção da Igreja é acção do próprio Jesus Cristo, Palavra eterna de Deus, que comunica ao coração da Igreja a Palavra que Deus tem hoje para lhe dizer. Mas para o acolher a Ele, Palavra viva, a Igreja precisa de começar por escutar a Escritura. O modo como se cuida a proclamação da Palavra na celebração da Eucaristia, condiciona a própria comunhão eucarística. E a pobreza das nossas celebrações começam exactamente por aí, pela maneira como se proclama e acolhe a Palavra. O Concílio Vaticano II ensinou: “Na celebração da Liturgia, a Sagrada Escritura tem grande importância. É dela que são tirados os textos que se lêem e a homilia explica, bem como os Salmos que se cantam; é sob a sua inspiração e no seu élan que as orações, as súplicas e os hinos litúrgicos foram surgindo; é dela que as acções e os símbolos recebem o seu significado”[11]. A Palavra da Escritura e a oração contínua 6. A Palavra revelada é a Palavra de Deus sempre presente, à nossa disposição, que pode conduzir a Deus cada momento da nossa vida. Como diz Bento XVI, “Esta Palavra não é algo imposto ao homem de fora; ela é, na medida em que formos capazes de a receber, revelação da natureza do próprio Deus e assim explicação da verdade do nosso ser: é-nos desvendada a partitura da nossa existência, de modo a podermos lê-la e traduzi-la na vida. A vontade de Deus deriva do ser de Deus e, consequentemente, introduz-nos na verdade do nosso ser, liberta-nos da auto-destruição pela mentira”[12]. Penetrando no mais íntimo de nós mesmos, sobretudo se a sabemos de cor, a palavra garante uma união contínua da nossa vida com Deus, ajuda-nos a viver com Deus. Ouçamos, ainda, um belíssimo texto de “Jesus de Nazaré”: “O mais importante é que – para além de tais situações pontuais – a relação com Deus esteja presente no íntimo da nossa alma; para que isso aconteça, é preciso ter sempre avivada esta relação e trazer-lhe continuamente os acontecimentos diários. Rezaremos tanto melhor quanto mais presente estiver, no íntimo da nossa alma, a orientação para Deus. Quanto mais a referida orientação constituir a base de apoio de toda a nossa existência, tanto mais havemos de ser homens de paz; tanto mais seremos capazes de suportar a dor, de compreender os outros e de nos abrirmos a eles. A esta orientação que impregna toda a nossa consciência, a esta presença silenciosa de Deus na base do nosso pensar, meditar e ser, chamamos «oração contínua». E, no fundo, é também isso que entendemos quando falamos de «amor de Deus»; ao mesmo tempo é a condição mais íntima e a força motriz do amor ao próximo”[13]. O exercício da “Lectio Divina” é um bom método para esta convivência contínua com Deus através da Palavra da Escritura. Exercício pessoal que se abre à dimensão comunitária da oração, nos leva a visitar continuamente o mesmo texto, até ele ser fonte de convivência amorosa com Deus. Descobrimos que a Palavra de Deus não é fenómeno ocasional mas realidade contínua que abraça toda a nossa vida, vivida ao ritmo de Deus. Guido o cartuxo, autor medieval, exprime assim esta convivência com a Palavra: “A leitura leva à boca alimento sólido, a meditação corta-o e mastiga-o, a oração saboreia-o, a contemplação é a própria doçura que alegra e recria”[14]. A convivência com a Escritura leva-nos a conhecer o coração de Deus, como diz São Gregório Magno: “Aprende a conhecer o coração de Deus nas palavras de Deus”. E esse convívio tem a frescura e a surpresa da relação pessoal. Não é um esquema frio, que se repita em todas as circunstâncias. Tem a criatividade de uma relação única. Uma mística do nosso tempo, Madeleine Delbrêl, inspirada nas danças bíblicas, compara-a a uma dança de duas pessoas que se amam, entre o amado e a amada, a que ela chama a dança da obediência. Terminaremos esta Catequese com o seu poema. “Senhor, ensina-nos o lugar que, no eterno romance iniciado entre Ti e nós, ocupa o baile especial da nossa existência. Revela-nos a grande orquestra dos teus desígnios, na qual Tu semeias notas estranhas, na serenidade do que Tu queres. Ensina-nos a vestir todos os dias a nossa condição humana como um vestido de baile que nos fará amar por Ti todos os seus pormenores, como jóias que não podem faltar. Faz-nos viver a nossa vida, não como um jogo de xadrez, em que todos os movimentos são calculados, não como uma partida em que tudo é difícil, não como um teorema que nos faz quebrar a cabeça, mas como uma festa sem fim em que se renove o encontro contigo. Como um baile, como uma dança, entre os braços da tua graça, na música universal do amor”[15]. Sé Patriarcal, 9 de Março de 2008 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca ——————————————————————————– [1] Bento XVI, Spe Salvi, nº 33 [2] Citado em Arturo Somoza Ramos, Que é a Lectio Divina, pg. 33 [3] Bento XVI, Spe Salvi, nº 33 [4] In A. Somoza Ramos, op. cit. Pg. 27 [5] Sacrosanctum Concilium, nº 11 [6] Bento XVI, Spe Salvi, nº 32 [7] Bento XVI, Jesus de Nazaré, pp. 176-177 [8] Bento XVI, Spe Salvi, nº 33 [9] Ibidem, nº 34 [10] Bento XVI, “Jesus de Nazaré”, pp. 173-174 [11] S.C. nº 24 [12] Bento XVI, “Jesus de Nazaré”, pg. 197 [13] Ibidem, p. 175 [14] In A. Somoza Ramos, op. cit. p. 13 [15] In. Carlo Maria MARTINI, “Tocarei para ti a harpa de dez cordas”, pp. 126-127

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