JMJ: da Alfândega de alguns para a Igreja de todos, será desta?

Vasco Gonçalves, Diocese de Setúbal

“Que Homem extraordinário que é este Papa Francisco”; “Que Jornada espetacular!”; “Parabéns pela estrondosa organização!”; “Que momentos únicos e inesquecíveis que vivemos”. Poderia aqui continuar a citar o clímax de sentimentos, partilhas, experiências, mensagens e opiniões que fui lendo e recebendo nas últimas semanas de diversas pessoas, mais ou menos próximas, mais ou menos crentes, sendo que todas elas partilham do mesmo denominador comum, o de que ninguém ficou indiferente à Jornada Mundial da Juventude (JMJ) Lisboa 2023. Foi a primeira e única que aconteceu em Portugal, e, por isso, foi, é e será para sempre a melhor e a mais maravilhosa de todas, porque afinal foi a “nossa” e primeira JMJ, em território luso. Mesmo que venhamos a receber outra JMJ daqui a várias décadas ou só no século XXII, já não será novidade na sua plenitude. Só por isso o coração falará sempre mais alto que a razão no que à JMJ Lisboa 2023 diz respeito.

Os não crentes descobriram que, afinal, o maior evento do mundo não é o mundial de futebol nem os jogos olímpicos. É mesmo a JMJ, e não é balela. Mesmo que distantes fisicamente e desinteressados pelo que aconteceu entre 1 e 6 de agosto em Lisboa, o poder da comunicação digital e da sociedade global da informação encarregou-se de fazer chegar através dos ecrãs durante vários dias, imagens, vídeos e relatos de mais de um milhão de pessoas oriundas de mais de 200 países, todas juntas em Portugal, numa moldura humana como até então não havia memória. Mesmo que depois ignorassem, viram, ouviram ou leram. Já os crentes, como é natural, estão ainda anestesiados por toda esta atmosfera, a viver ainda o apogeu deste tempo de graça que tem sido a JMJ, como se tivessem subido ao Céu e caminhassem no Éden e por lá quisessem ficar eternamente.

A Igreja como lugar para todos foi o legado desta JMJ, mas esta mensagem do Papa foi muito além da juventude que a protagonizou. Francisco esteve na Universidade Católica, Alfândega-mor da Igreja, onde todos (os privilegiados) têm lugar, desde que paguem para isso, para dizer diante das elites que por lá reinam que “À universidade que se comprometeu a formar as novas gerações, seria um desperdício pensá-la apenas para perpetuar o atual sistema elitista e desigual do mundo com o ensino superior que continua a ser um privilégio de poucos.” Francisco mais não fez que ser como Jesus, denunciado as desigualdades e dizendo o que muitos sabem, mas não tem coragem de dizer, que a Doutrina Social da Igreja e que a Economia de Francisco não bastam ser ensinadas na teoria, é preciso ser concretizadas na prática. E o exemplo tem de partir de quem lidera, ensina e forma as novas gerações. A prioridade de uma Universidade que é católica tem de ser servir a Deus e não ao dinheiro, entenda-se, tem de ser servir as pessoas e não os rankings elitistas.

A Igreja como lugar para todos, foi também pedra angular no encontro do Papa com os bispos, sacerdotes, seminaristas, consagrados(as) e agentes da pastoral. E o retrato que Francisco fez da realidade eclesial e pastoral em Portugal foi claro e contundente.  Desanimada, Cansada e Resignada. O Papa alerta mesmo para o perigo que é termos uma igreja e uma pastoral mergulhadas nesta apatia e neste desânimo, e não deixa mesmo de expressar a sua tristeza, pois ao baixarmos os braços e afundarmo-nos na desilusão “«aposentamo-nos» do zelo apostólico, perdemo-lo pouco a pouco e tornamo-nos «funcionários do sagrado». É muito triste quando uma pessoa que consagrou a sua vida a Deus se torna «funcionário», mero administrador das coisas. É muito triste.”. É, pois, esta pastoral bafienta e cabisbaixa de sexta-feira santa, que vai esvaziando de futuro e juventude, acumulando pó, mofo e saudosismos do passado nas paróquias de norte a sul de Portugal em nome de uma Igreja de Cristo Morto, que urge mudar e transformar profunda e drasticamente.  Precisamos de uma pastoral de Sábado Aleluia, e de uma igreja de Cristo Vivo, protagonizada por uma Juventude irreverente, inconformada, inquieta e agitadora, que se recuse a  dizer apenas e só «amén» a tudo o que se ouve nos altares e nos púlpitos das missas, mas antes que nunca se canse de questionar e interpelar os cabeções, as batinas, os solidéus e as mitras, que nos contagie com a sua alegria, com o seu novo entusiasmo,  e que nos mostre, através da  sua criatividade, a riqueza das diferenças e do envolvimento ativo dos leigos nesta Igreja Sinodal. Mas teremos razões para temer esta mudança para uma pastoral mais alegremente participada e transformador, a bem da Igreja e da Humanidade?  Uma vez mais, o Papa Francisco, de forma direta e sem rodeios, deixou bem claro que além de isto não ser uma piada, mas um programa, “não temos que escapar deste tempo, só porque nos mete medo, para nos refugiarmos em formas e estilos do passado. Não!”.  Pelo contrário, “somos chamados a mergulhar as nossas redes no tempo em que vivemos, a dialogar com todos a tornar compreensível o Evangelho, mesmo que para isso tenhamos de correr o risco dalguma tempestade”. Porque, afinal, o caminho é seguir e ser fiel ao exemplo de Cristo, fazendo-nos ao Largo, sem medo! aventurando-nos “no mar da evangelização e da missão”. Saindo do lugar sagrado como Jesus para começar “a pregar a Palavra no meio da gente, pelas estradas onde labutam dia a dia as mulheres e os homens do seu tempo. Cristo está interessado em fazer sentir a proximidade de Deus, precisamente nos lugares e situações onde as pessoas vivem, lutam, esperam, às vezes colecionando nas suas mãos fracassos e insucessos (…)”.

Em suma, só poderemos ser uma igreja de e para todos se formos ao encontro das diferenças de cada um, se lhes abrirmos as portas e se os convidarmos a entrar e a dialogar abertamente, sem preconceitos nem juízos prévios, sem impor condições nem uma forma única e exclusiva a de ser Igreja. E as diferenças não estão apenas fora do contexto eclesial. Basta vermos como é bem diferente a realidade de vida dos jovens de Lisboa ou Cascais, da realidade de vida dos Jovens de Setúbal ou de Santarém, não obstante estarem separados por pouco mais de 50km e de serem de dioceses e geografias vizinhas, e ainda mais diferente é a realidade dos jovens do interior do país. Achar que todos eles, apesar de crentes, têm de partilhar exatamente da mesma forma de professar a fé, é tão somente não ser capaz de compreender o espírito da JMJ, nem o mais básico princípio da Igreja sinodal e aberta a todos para que o Papa nos convoca, e que reside na riqueza da diversidade, das diferenças e no diálogo aberto entre elas.  É, aliás, desta cultura dialogante entre diferenças que se geram naturais e saudáveis tensões, onde os leigos não se limitam mais a dizer apenas ámen, que seremos capazes de abrir novas portas na Igreja, até então fechadas por uma visão eclesial monolítica e monocolor.

“Procurai Escancarar as portas a Cristo”, foi uma das frases que marcaram o início do pontificado do Papa São João Paulo II, fundador das JMJ, a que se seguiu também a já célebre “Não tenhais medo!”.   Ora, escancarar as portas a Cristo, mais não é do que escancarar as portas da Igreja a Todos, como o Papa Francisco nos veio dizer.  As palavras do Papa nesta JMJ foram claras e fortes e a sua mensagem foi muito objetiva. Uma igreja fiel a Cristo Vivo é uma Igreja sinodal sem “ses“, nem “mas”, não é uma alfândega, e em que não basta ficarmos no adro à espera que apenas alguns desses todos por lá apareçam. Pelo contrário, é preciso sairmos das quatro paredes para irmos ao encontro de cada um no seu meio e na sua realidade e convida-los para entrar, só assim poderemos ser verdadeiramente uma Igreja de todos, com todos e para todos.

Jesus foi um provocador ao longo de toda a sua vida. Não se fez de morto, não assobiou para o lado, nem desviou o olhar só para evitar ter problemas ou não gerar novas tensões. Pelo contrário, enfrentou interesses e poderes instalados, denunciou escândalos, transgrediu regras, quebrou paradigmas e gerou tensões. Jesus veio ao Mundo para (nos) salvar, mas o caminho da salvação é um caminho que (nos) incomoda, que (nos) desinstala, que (nos) inquieta. Mas não percorreu esse caminho apenas com bonitas palavras. Fê-lo também, e sobretudo, com gestos e ações concretas, e desafiou todos a seguirem-nos e a serem seus discípulos.

Nos últimos quatro anos a Igreja portuguesa e, em particular, os jovens das paróquias, vigararias, arciprestados e dioceses de norte a sul, do continente às ilhas, mobilizaram-se para fazer acontecer esta JMJ. Não basta, e de pouco ou nada servirá se acreditamos que o dia 6 de agosto de 2023 foi o culminar de um sonho e o fim de uma missão cumprida. É o mesmo que acreditar que tudo terminou quando Cristo expirou e morreu na Cruz e que não ressuscitou.   E agora?  Vamos ficar apenas a reler as tocantes palavras do Papa e a recordar com saudade a semana de êxtase que vivemos e as fotos e selfies que tirámos? O Papa Francisco deixou-nos meia dúzia de palavras-chaves para abrir as portas da Igreja a todos. Queremos voltar a ficar fechados dentro das quatro paredes com medo e/ou sem vontade de as abrir, quais jovens alfandegários, amestrados, fofinhos e quietinhos que não partem um prato? Ou perderemos, finalmente, o medo de ser Igreja em saída para evangelizar e escancarar todas as portas a todos? De sermos, tal como Jesus, “Jovens transgressores” e missionários, como nos desafiou o Papa na mensagem do último dia mundial da juventude, protagonistas da mudança profunda na realidade eclesial (e em particular na igreja portuguesa), em nome de uma Igreja de todos, com todos e para todos.

Vasco Gonçalves
Comité Organizador Diocesano (COD) Setúbal

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