SABER APRENDER – A resistir aos “Likes”

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

«O like é o amém digital. Quando clicamos no like, submetemo-nos ao botão do domínio.» (Byung-Chul Han, “Não-Coisas – Transformações no Mundo em Que Vivemos”, Relógio D’Água, 2021)

Inicialmente, a intenção do botão Like ? era a de estimular as pessoas a deixarem comentários mais profundos em vez de reacções. Resultou? Em parte sim. E quando o Facebook (agora Meta) adquiriu o WhatsApp, na altura recordo de sentir que muitas das mensagens das pessoas eram reaccionárias e que ter esta opção de usar um emoji para reagir aumentaria a possibilidade de evidenciar as mensagens com mais conteúdo, em vez que ficarem esquecidas no rol de reacções. Essa funcionalidade já está implementada. Porém, fico a pensar se não estaremos a incrementar ainda mais o número de “améns digitais”, de tal modo que, também as mensagens nos grupos de WhatsApp, começarão a tornar-se instrumentos de validação pessoal e “botões de domínio” da nossa atenção. Se isso acontecer, penso que devemos resistir.

Foto Greg Bulla em Unsplash

Os Movimentos de Resistência existiram sempre em momentos da história humana que exigiam uma mudança no nosso estilo de vida. Esses movimentos consistiam em esforços organizados para defender um ideal comum contra uma autoridade constituída. No caso dos Likes, a “autoridade constituída” não tem qualquer rosto humano. É uma criação algorítmica humana que alguns humanos usam para dominar a atenções de muitos humanos. É uma autoridade desincorporada e sempre presente quando implementada nas Apps que dominam a atenção de milhares de milhões de seres humanos neste planeta. Como diz Byung-Chul Han no livro supracitado — «O sujeito submetido nem sequer toma consciência da sua submissão. Imagina-se em liberdade. O capitalismo acabado é o capitalismo do like. Devido à sua permissividade não tem de recear nenhuma resistência, nenhuma revolução.»

A capacidade de emitir uma opinião ou partilhar algo mais profundo com um grupo de pessoas é demasiado fácil por estar isento de fricção. Mas como escrever num pequeno ecrã dá mais trabalho se quisermos sair da superficialidade, penso que se torna cada vez mais difícil sustentar uma onda cultural que promova a autêntica comunhão de experiências através dos meios digitais. Uma boa parte das partilhas feitas em grupos não contempla quem está do outro lado. Por vezes pode chegar mesmo à insensibilidade de colocar um Like diante de alguém que partilha a morte de um grande amigo. E isto deve-se muito ao uso sem controlo do smartphone que se tem revelado ao longo dos últimos anos como um objecto que não promove uma relação saudável com o outro. Aliás, diz Han, «com o smartphone, pelo contrário, temos uma relação narcisista. Apresenta muitas semelhanças com os chamados “objectos autistas”. (…) Aos objectos autistas falta a dimensão do outro. Não estimulam a imaginação. O contacto com eles é repetitivo e não criativo. O repetitivo, o compulsivo, também caracteriza a relação com o smartphone.» E tudo isto experimenta-se através dos Likes. Quais as consequências mais profundas?

Se o outro desaparece do meu horizonte relacional corporalizado, e só me faz sentir que existo mediante as reacções dos Likes, o resultado final será o sentimento de solidão e vazio. Sou enquanto me ”likam”. A falta de resistência/fricção das comunicações reactivas leva a uma interacção compulsiva e excessiva com o smartphone. Basta tomarmos consciência da quantidades de pings que podem dominar a nossa atenção se tivermos ligadas as notificações e fizermos parte de muitos grupos WhatsApp ou tivermos uma vivência intensa nas redes sociais. Os Likes subtilmente tornam-se irresistíveis aos nossos dedos, mas vale a pena resistir-lhes? O que ganharíamos com saber aprender a resistir aos “likes”?

Antigamente, quando o nível de vida das pessoas aumentou, sobretudo com a estabilidade política e económica dos países, houve um crescente desejo de consumir coisas. E como as coisas custam dinheiro, ou sob o receio de podermos vir a precisar delas mais tarde, muitas pessoas não as deitavam fora e as casas enchiam-se de coisas. Nessa altura recordo de reflectirmos nos grupos de jovens sobre a diferença entre o ter e o ser. Recordo ainda como se estimulava ao desapego das coisas, pelo que podíamos partilhar com os outros o que tínhamos a mais, como roupa ou levar os nossos livros para uma biblioteca. Mas a cultura mudou.

Com a digitalização do conhecimento, deixou de valer a pena ter enciclopédias, e mesmo o número de livros começou a reduzir-se. A roupa que se estraga não se arranja. Descarta-se e compra-se nova. E o contacto físico com as coisas que nos oferecia um certo sentido de presença desaparece. Diante do relacionamento com uma coisa, o materialismo converte-se, hoje, numa oportunidade de alteridade. Basta pensar numa fotografia e na teoria da fotografia de Roland Barthes.

A fotografia analógica, por oposição à digital, segundo Barthes, está condenada à morte e pode tornar-se num meio de ressurreição ao possibilitar uma experiência de presença. Diz Barthes, — «O que me interessa numa fotografia é, única e exclusivamente, que me mostre algo que existe (…).» — ao passo que a foto digital que suscita muitos “likes” elimina o referente ao poder ser visualizada de diversas formas, e alterar, também, a temporalidade da imagem captada. Uma fotografia digital é efémera. Uma fotografia analógica possui profundidade temporal tornando-se numa fotografia perene impregnada de morte (porque contém coisas que poderão ter deixado de existir) e ressurreição (porque a sua imagem que tocamos e contemplamos pode torná-las, de novo, presentes e criam impacto em nós).

Saber aprender a resistir aos “likes” não implica um apego às coisas que podemos tocar, mas um re-pensamento do seu valor. Quem se lembra daquilo a que fez “like” no dia de ontem? Mas lembram-se da última vez que viram um album de fotografias? O que mais me lembro é de sorrir e de sentir o coração palpitar com as memórias contidas nas fotografias que as tornaram intemporais. Assim, talvez um passo simples (de entre muitos outros) a dar para saber aprender a resistir aos “likes” é fazer menos “likes” e voltar a criar mais álbuns de fotografias. Assim, oferecemos às futuras gerações uma memória mais sustentável.


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