A primeira fase do processo sinodal lançado pelo Papa em outubro de 2021 está a chegar ao fim. As varias dioceses portuguesas preparam uma síntese do trabalho realizado a nível local, que vão entregar à Conferência Episcopal, encerrando esta etapa inédita, desenhada por Francisco
O padre Paulo Terroso, membro da Comissão da Comunicação do Sínodo, no Vaticano, é o convidado desta semana da entrevista conjunta Renascença/Ecclesia.
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Quando tivemos a oportunidade de conversar em Roma, no último mês de outubro, em que se iniciava este processo sinodal projetava-nos o Sínodo como um processo imparável. Olhando para o que acontecia nos últimos meses, pensei que as comunidades católicas já assumiram a importância de colocar este processo em andamento?
O processo é imparável e começou mesmo antes deste Sínodo sobre a sinodalidade. A importância? Eu acho que há alguma dificuldade, em compreender o que é isto da sinodalidade, em que o Sínodo é só uma expressão.
Acho que há necessidade de reforçar imagens ou experiências muito concretas de sinodalidade, que são os nossos conselhos económicos, que são os conselhos pastorais – que nem todas as paróquias têm; as dioceses essas têm -, onde as pessoas participam e participam na organização e na vida das comunidades. Portanto, a palavra não ajuda. Cria uma certa distância, porque não é um tema tão concreto, ou seja, quando nós estamos a falar da família, nós sabemos muito bem o que é isso da família. O conceito sinodalidade em si é genérico, não é? Quando estamos a falar de jovens, sabemos o que é isso. Quando estamos a falar da ‘Laudato Si’, falamos da ecologia, sabemos muito bem a sua dimensão do cuidado com a natureza, de ecologia integral. São coisas muito claras e que estão na ordem do dia. Este Sínodo tem uma particularidade: parece muito introspetivo, parece muito uma questão de interna a Igreja, e, no entanto, este é o passo necessário para depois, em conjunto, abordarmos outras questões que são importantes e urgentes.
Deixe-me dizer assim: temos de dar este passo, ou seja, de criar uma eclesiologia forte, esta eclesiologia de comunhão com a expressão sinodal e depois também uma base canónica de aplicação na vida das Igrejas particulares, das nossas paróquias, e na Igreja Universal.
Esta fase diocesana de consulta e mobilização aconteceu em moldes inéditos. Foi a primeira vez que o Sínodo bateu à porta de cada comunidade. Como é que devemos entender este amplo movimento lançado pelo Papa Francisco?
É colocar em prática aquilo que diz o Concílio Vaticano II, que não estava a ser plenamente colocado em prática. Ou seja, que todo o povo de Deus – e no Povo de Deus incluem-se os leigos, os padres, os bispos e o próprio Papa – deve ser escutado. Aquilo que diz respeito a todos deve ser discutido por todos, falado entre todos. Portanto, é isso que está a acontecer.
Falta qualquer coisa à Igreja se o Povo de Deus, todo o Povo de Deus, não é envolvido num processo…
A verdadeira inversão da pirâmide ainda não aconteceu?
Não, não aconteceu. Uma das dimensões que foi trabalhada agora na Assembleia Plenária que aconteceu em Roma, com todas as comissões presentes, foi perceber isto, sobretudo os capítulos dois e número três da ‘Lumen Gentium’, que são justapostos, não estão bem articulados. Depois tiveram uma expressão no Direito Canónico, e essa expressão valorizou mais a dimensão da colegialidade entre os bispos, e da relação dos bispos e o Papa, ao ponto, por exemplo, de em ultima instância o bispo quase que pode governar sem consultar ninguém. Porquê? Porque o Direito Canónico é uma expressão da eclesiologia, não tem vida própria. Ele exprime aquilo que é um pensamento, uma doutrina, uma doutrina da Igreja.
A envolvência de todo o Povo de Deus é absolutamente necessária. Mais uma vez, repito, porque é isto que está em causa e este é muito do caminho que está a ser feito – e ele vai ter uma expressão concreta na vida das pessoas. Falharia redondamente este Sínodo se, no fim, não criássemos processos, metodologias e estruturas que dessem uma expressão sinodal à vida da Igreja.
Há aí uma questão que me parece relacionada, que tem a ver com aquilo que o Vaticano pedia que se fizesse na fase de diocesana, de ouvir a voz dos pobres, dos excluídos e não apenas aqueles que desempenham alguma função ou responsabilidade dentro da própria Igreja. Do conhecimento que teve, que é bastante global, houve vontade de correr riscos ou acabou se por ouvir os dentro e aqueles que se ouvem já sempre?
Nós temos muito medo! E este Sínodo tem de fazer-nos sair, mesmo internamente. Às vezes estamos entrincheirados. É triste dizê-lo, mas tenho de dizer, acho que nós temos de dar assim uma sacudidela. Nós temos medo, e por exemplo, agora vem uma newsletter que fala da comunidade de lésbicas, gays, transexuais… ou os pobres marginalizados. E já se fala também dos improváveis, não só das periferias, mas também dos improváveis. Nós temos de dialogar, nós temos de dialogar. Estamos com medo de ser confrontados? Assusta-nos aquilo que é a diferença?
Quem são os leprosos do nosso tempo? As pessoas de quem estamos afastados, nem sequer queremos tocá-los. Parece que temos medo!
Desde o início da sua missão, Jesus vai ao encontro daquilo que era considerado tabu. Esta dinâmica perdeu-se?
Concordo. Nalguns aspetos da Igreja, sim. Há quem arrisque e paga um preço bem caro de incompreensão, de condenação às vezes de difamação, até. Isso acontece, mas esse é o caminho, temos de fazer o caminho de saída, de encontro. E nesse caminho de saída, de encontro, interrogando a Escritura e iluminando com a Escritura os acontecimentos e esses encontros, o Evangelho vai ganhar aquela força e a frescura capaz de atrair. Porque quando se inicia a Missão, como lemos agora no Ato dos Apóstolos, percebemos que não há um manual. Vão acontecendo determinadas circunstâncias, determinados encontros, interrogações e há tensões evidentes. Portanto, o Concílio de Jerusalém é um momento tenso da Igreja. Mas é preciso dialogar e é preciso rezar, e é preciso perceber que caminho é que vamos fazer.
Isto para dizer uma forma de simples: temos de arriscar. E essa ideia do Papa Francisco, das periferias, das margens do diálogo é colocar em prática o Evangelho. Não é uma invenção do Papa Francisco ou, desculpe dizer assim, de Jorge Mario Bergoglio.
Ou seja, este processo tem a dizer algo a sociedade no seu todo, num período conturbado como é aquele em que vivemos?
Num tempo tão fragmentado, com pessoas tão divididas, numa sociedade tão polarizada e ao mesmo tempo, quase a criarmos novamente dois blocos, pois já falámos do Ocidente e do Oriente, que a Igreja se decida a escutar-se, a caminhar em conjunto é um sinal, evidentemente, para a humanidade. Mas ela tem de ser significativa, não é? Portanto, isso depois tem de ganhar expressão no terreno. E passa, desde logo com um diálogo com as margens, com presença nas várias dimensões da vida da sociedade.
Estamos a falar de um processo sinodal que tem um conjunto de etapas e objetivos definidos. Sente que pode haver o risco de desmobilização a nível das dioceses, assim que forem realizadas as assembleias pré-sinodais e forem entregues as respetivas sínteses, por exemplo?
Eu não acredito que quem participou neste processo e fê-lo bem que desmobilize. Porque este processo não acaba só em 2023, ele continua. Isto para dizer que quem faz esta experiência de encontro, de oração, de escuta, de diálogo, de discernimento; essa experiência permanece. Eu falo da minha experiência nos Congregados, a igreja onde eu estou e sou reitor. As pessoas que participaram não desmobilizaram. Começamos com um grupo bem maior, depois terminamos com um pequeno grupo. Não interessa. Não temos medo de ter medo da pequena semente. Não acredito que quem participa, ou quem participou, depois desmobilize.
Mas, quem coordena, digamos assim, também tem que estar atento a esses sinais e perceber como é que se começa com um grupo maior e depois ele vai decrescendo. Ou seja, não pode haver um tal definhamento?
É verdade, sim. Esses são os entusiasmos que também os próprios discípulos de Jesus Cristo viveram. Começaram com muito entusiasmo, mas depois a determinado momento afastam-se, ou entendem que não é assim tão importante. Enfim, vivemos também numa sociedade -não querendo desculpar- com tantas solicitações que hoje é mesmo difícil encontrar momentos para nos reunirmos. E, portanto, isso também passa por cada um pessoalmente. Estabelecer uma ordem de prioridades; saber aquilo que é de facto importante na sua vida. Há muita dispersão, pouca capacidade de encontro, de estar sereno num sítio, a rezar, a dialogar e sobretudo há um outro sintoma, que se manifesta neste Sínodo e que me parece que é bastante importante: uma falta de participação. E essa falta de participação é porque a comunidade ouvida na Igreja, de facto não é tão afetiva, e porque não é afetiva, também não é efetiva. Ou seja, não há de facto uma relação forte, ao ponto de dizer eu sou Igreja, sou um batizado e eu devo estar interessado por aquilo que diz respeito à minha comunidade.
Das impressões recolhidas a nível mundial, quais os maiores receios que este desafio do Sínodo suscitaram?
Eu não diria receio. Creio que a grande dificuldade é criar aqui uma verdadeira sinfonia. Temos a consciência que a Igreja tem um alcance global, portanto, uma presença em todos os continentes e uma expressão cultural diferente, evidentemente. A nível dos princípios estamos de acordo, depois quando chegamos ao concreto torna-se muito mais complexo. Para mim, a grande dificuldade vai ser, do ponto de vista teológico e canónico, o aprofundamento da eclesiologia e das tensões permanentes ainda resultantes do Concílio Vaticano II. Ou seja, há aspetos, do ponto de vista teológico, que não estão devidamente assumidos – Papa Francisco referiu-os, porque são uma expressão da vida da Igreja. A Liturgia, por exemplo, tornou-se um campo de batalha. Há um risco, não de divisão, mas estamos a viver momentos de alguma tensão.
Todos os Sínodos dos últimos anos, aliás, tiveram sempre essa marca. Há uma questão que tem sido apresentada em várias sínteses e tem a ver com a relação entre leigos e os sacerdotes. A reflexão levada a cabo pode levar a mudanças na forma de entender os cargos de liderança e o papel das mulheres nas comunidades católicas?
A ‘Praedicate Evangelium’ [nova constituição da Cúria Romana], que é também uma expressão da sinodalidade e do pontificado do Papa Francisco, da reforma da Cúria, coloca-nos no devido local: a missão é de serviço. A nossa dignidade é a dignidade batismal, eu não sou mais do que um que um leigo casado ou consagrado, ou seja, eu estou ao serviço e ao serviço da comunidade. Essa deve ser a postura. Se essa for a postura, as coisas depois são fáceis de viver, são mais fáceis de viver.
Há sempre, evidentemente, tensões. Aquilo que me preocupa são os futuros sacerdotes. Nós vivemos num tempo em que, do ponto de vista da identidade, emocional e psicológico, as pessoas são muito frágeis e tendem a reforçar – os seminaristas são fruto deste tempo e das famílias que temos, evidentemente, e de alguma forma também são afetados por isso – o autoritarismo, com sinais exteriores que definem muito bem aquilo que é a minha função. Se não estão dispostos ao diálogo… essa vai ser uma das grandes dificuldades, o diálogo, escutar, interrogar-se e duas dimensões que me parecem importantes, que foram importantes para a vida na vida monástica, sobretudo os beneditinos, mas que para nós tem que ser declinada doutra forma, ‘trabalhar e rezar’, ‘estudar e rezar’, porque os desafios que a sociedade nos coloca, as interrogações que a sociedade nos coloca, exigem da nossa parte muita humildade, muita escuta, muito estudo e muita oração. Se isso não for claro na formação dos seminaristas e não cuidarmos desta relação com Jesus Cristo, para que seja uma relação significativa que nos coloca verdadeiramente ao serviço, temos tudo para ter uma situação explosiva.
O Sínodo é apresentado, muitas vezes, como um caminho de conversão pessoal e comunitária. Sente que a Igreja está aberta às mudanças que este caminho implica?
Voltou àquela questão, é preciso superar o medo, não é? Mas o caminho está a ser feito. O caminho está a ser feito, mas ele leva sempre tempo. Ninguém espere que, em 2023, tenhamos uma igreja sinodal. É uma questão geracional e, sobretudo, de conversão.
Há uma ‘forma mentis’, o modo de pensar, de estar em Igreja que vai levar tempo. Os sinais estão aí, os diagnósticos estão feitos, todos nós já sabemos o que está a acontecer. O caminho da vida da Igreja e o seu futuro é deixar esta autorreferencialidade e passar à saída a missão, ao diálogo, digamos, àquilo que é a evangelização.
Uma outra postura pode significar igrejas desertas. A Igreja nunca vai acabar, mas ela pode desaparecer de alguns locais. O Papa Bento XVI já tinha chamado a atenção para isso, ou seja, esta ideia de que a Igreja não acaba, sim ela não acaba, mas pode desaparecer nalguns continentes, pode ser totalmente irrelevante.
Está a pensar nalguma em particular?
Estou a pensar nalguns países em que, de facto, já não é uma minoria, é uma ultraminoria. São países europeus. Agora, o Senhor entregará a sua vinha a alguém que a possa cuidar. Como alguém dizia, não creio que será propriamente Pequim a próxima Roma, mas é uma imagem para dizer que, enfim, ela pode florescer e certamente florescerá noutros espaços.
A sinodalidade tornou-se uma palavra da moda, mas não é fácil de explicar. Estamos todos a falar da mesma coisa?
Eu acho que não. Até porque se confunde Sínodo com sinodalidade, que é uma forma de ser uma disposição interior, de escuta, de encontro, de oração e de tomar decisões. Sínodo é uma expressão da sinodalidade. Conselhos económicos, conselhos paroquiais ou pastorais paroquiais com o colégio de consultores são outra expressão de sinodalidade.
O que está no centro deste Sínodo? Como é que são tomadas as decisões, como é o processo que nos leva até à tomada de decisão, o ‘decision making’ e o ‘decision taking’. Como é que é o processo? Como é que se faz para tomar uma decisão? Participamos todos nesse processo? Depois, como é que se toma essa decisão? Como é que se operacionaliza essa decisão?
E uma outra questão fundamental que está também na base deste Sínodo, que é prestar contas, transparência, ‘accountability’. São questões fundamentais. Não estamos a falar de questões de governo. Todo este processo é uma forma de desclericalização da Igreja e de nos entendermos como Povo de Deus, que em conjunto caminha. Este é o cerne do Sínodo, a questão fundamental para mim, do Sínodo. Só a partir daqui é que será possível tomar outro tipo de opções. Por isso é que digo que esta vai exige um grande trabalho do ponto de vista teológico e canónico, as duas coisas vão ter de estar bem articuladas, as duas dimensões.
Uma pergunta final, mais pessoal: o que significa esta oportunidade de colaborar mais estreitamente com o Sínodo dos Bispos, na Comissão da Comunicação?
Há dias pensava sobre isso na Assembleia Plenária: consolação espiritual. Ou seja, sentir-se bem na Assembleia, que é um momento de ver a ação do Espírito Santo na Igreja. Isso é uma confirmação da sua presença, também da minha vocação. De resto, quando estou à mesa com Pierangelo Sequeri, Piero Coda, Christoph Theobald ou outros gigantes da Teologia – não sou nada, nem sequer sou doutor em Teologia, mas participo como membro da Comissão de Comunicação – é uma graça da qual não sou minimamente merecedor. Mas, o Senhor lá sabe porque também me meteu ali no meio disto. É algo que não guardo para mim, mas levo com muita riqueza. É um prazer espiritual, muito claramente.
Sinto-me grato e espero contribuir para este trabalho que é de serviço à Igreja Universal, de serviço ao Papa, de serviço à Secretaria do Sínodo, de uma forma muito concreta.
Nós não podemos ter medo. Este é o mandamento, a exortação mais repetida na Sagrada Escritura. Não ter medo e não entrar nesta lógica de ‘como é que vamos resistir? Como é que vamos lutar?’. Não, o que é que o Espírito de Deus está a dizer à Igreja? Saber ler os sinais dos tempos, por onde é que nos está a conduzir. Parece-me que isto é fundamental.