O Reino que nasce da Cruz

D. Manuel Clemente, na celebração da adoração da cruz PAIXÃO DO SENHOR Sé do Porto, 6 de Abril de 2007, 15 horas Amados irmãos e irmãs, se há celebração onde qualquer palavra de comentário só pode ser proferida com muita singeleza e modéstia, é certamente esta da Paixão do Senhor. Ouvimos a sua narração, nas palavras tão meditadas e quase catequéticas do Evangelho segundo São João. Cabe-nos agora uma despojada e simples meditação. Detenho-me no interrogatório de Pilatos, precisamente quanto à realeza de Jesus. Sabemos como, para a autoridade romana que ocupava Israel, este era o ponto mais sensível, receosa que estava de sublevações e motins. E justamente o estaria, mas não com Jesus de Nazaré. Mas os seus inimigos insistiram nisso mesmo, deturpando-lhe a intenção e pressionando Pilatos, que, ainda assim, hesitava: “Se o libertares, não és amigo de César: todo aquele que se faz rei é contra César!”. Levaram a melhor, tocando num ponto melindroso para o governador romano, que acabou por lhes entregar Jesus, para ser crucificado. E no alto da cruz lá ficou o letreiro, com a pretensa causa da condenação: “Jesus, o Nazareno, Rei dos Judeus”… Mas fixemo-nos neste passo do diálogo entre o romano e Cristo: “Disse-lhe Pilatos: ‘Então, tu és rei?’. Jesus respondeu-lhe: ‘É como dizes: sou rei. Para isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz’. Disse-lhe Pilatos: ‘Que é a verdade?’. Não terminaram, de facto, nem a resposta de Cristo, com a definição da sua realeza, nem a última pergunta de Pilatos, que persiste em muito cepticismo ambiente. Realeza era domínio, geralmente externo, dum senhor sobre os seus súbditos. Assim era a do imperador de Roma, em toda a roda do Mar Mediterrâneo, essa mesma que Pilatos representava na Judeia. Assentava numa estrutura administrativa e militar como nunca se vira até ai, criara um direito de que ainda hoje somos herdeiros, como normatividade geral para povos diversos, e procedimentos unificados para os cidadãos. Era sem dúvida um grande ganho para a história da civilização. Mas distinguia os cidadãos livres duma grande massa de escravos e canalizava para Roma riquezas de todo o lado. Significativamente, para o fim desse século I da nossa era, já o livro do Apocalipse lhe referia as riquezas, mas também lhe profetizava o fim, que chegaria três séculos depois: “Chorarão também por ela e se lamentarão os comerciantes da terra, porque ninguém mais comprará as suas mercadorias: ‘Os objectos de ouro e prata, de pedras preciosas e de pérolas; […] vinho, azeite, flor de farinha e trigo, bois e ovelhas, cavalos e carros, escravos e prisioneiros. […] Ai da grande cidade! […] Porque bastou um momento para devastar tão grande riqueza!” (Ap 18, 11-17). Este era o reino que Pilatos representava em tal momento. Na enumeração que ouvimos, somam-se indistintamente mercadorias e escravos, coisas e pessoas, ou seja, pessoas coisificadas. Era habitual então. E o que mais ressalta é que foi o outro “Rei”, tão diferente e inesperado, que Pilatos tinha realmente diante de si, quem trouxe um novo entendimento de cada ser humano, onde tal indistinção entre coisas e pessoas não seria mais possível. Neste preciso ponto, o direito e a civilização evoluíram, sobre bases indiscutivelmente evangélicas, naquelas regiões onde o Cristianismo se implantou, com o tempo e o martírio de muitos. Cumpre aqui lembrá-lo, quando ainda há quem se questione sobre as “raízes cristãs” da Europa… O melhor do que somos neste Velho Continente, que tarda tanto em rejuvenescer, como liberdade e dignidade pessoais, nasce também daqui, do comportamento e da palavra de Cristo, diante da opressão que sofria. Mas voltemos ao pretório. Diante de Pilatos, o homem de Roma, está agora Jesus, o “homem das dores”, já esbofeteado e humilhado. E a pergunta ressoa, entre o sarcasmo e a curiosidade: “Então, tu és rei?”. Para escutar de seguida a confirmação mais inaudita: “É como dizes: sou rei. Para isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz”. Sucederam-se reinos e impérios, domínios vários sobre a face da terra. Alguns prometiam durar mil anos, outros pareciam sustentar-se bem. Mas não é preciso ser muito idoso, para ter assistido já ao esboroamento de regimes e sistemas que ainda há poucas décadas prometiam ficar… Já temos história que chegue para concluirmos que os reinos deste mundo, mesmo os que se distinguiram realmente por méritos e realizações positivas, partilham todos da caducidade própria das realidades temporais. Aparecem, desaparecem, dão lugar a outros… E o que deles perdura é exactamente o que os ultrapassa e tem necessariamente a ver com a humanidade subjacente, como base e projecto de longo termo. Aqui mesmo avulta a resposta de Jesus, definindo a sua realeza. Jesus reina como “testemunho da verdade”. Não sabemos o que se passou na consciência de todos os que assistiram ao julgamento de Pilatos. Possivelmente, alguns reconheceram-se então no reino de Cristo, tanto acertava aquela definição com o sentimento profundo que mantinham: a verdade do homem estava ali mesmo, no Deus humanado que tão serenamente respondia ao dominador romano. Estava ali, mesmo que depois tivesse a cruz como trono e os espinhos como coroa. Estavam ali a verdade, a dignidade e a liberdade do homem, mesmo preso e oprimido. Estava, ali e sempre em Jesus, a definição do que somos e havemos de ser, de mais essencial e certo. Nós, todos nós, os que já escutámos a sua voz e os que ainda esperam ouvi-la. Há nisto, certamente, uma decisão a tomar. Em qual dos reinos nos incluímos deveras? Sirva cada Sexta-feira Santa para um preito novo à realeza de Cristo. Coloquemo-nos mais decididamente sob o seu mando e pendão, ombro a ombro com todos aqueles onde a sua verdade se define ou definirá de vez. Com todos os que afirmam, por palavras e condutas, a dignidade insubstituível de cada ser humano, criatura chamada á filiação divina. Com todos os que não a sabem afirmar talvez, mas a adivinham no fundo dos seus corações e consciências, ainda que só surdamente protestem pela opressão a que eles e outros estejam sujeitos. Esse é o verdadeiro reino, anunciado e sofrido por Cristo, acolhido esta tarde por nós. E outra admiração nos invade agora, que é a de escutarmos a sua voz, mesmo que emitida vai para dois milénios, noutra terra e noutra língua, sem nenhuma das gravações técnicas que hoje a tornariam viável. E de não a escutarmos apenas, mas nos parecer ainda mais nítida, com o apuramento que tantos séculos vão dando à verdade que transmite. – Grande e admirável realidade é esta, irmãos e irmãs, a do reino de Cristo, insofismável, indelével e perene! Estamos aqui hoje por causa dela, como estão tantos irmãos nossos por esse mundo além, revivendo o diálogo entre Jesus e Pilatos, para nos definirmos ainda mais, na verdade evangélica sobre a humanidade e o mundo. Para o alastramento dessa mesma verdade, diante de todas as opressões que firam a dignidade e a liberdade de qualquer pessoa, ou lesem a vida humana, da concepção à morte natural de cada um. Creio ainda, irmãos, ser precisamente neste ponto que podemos ultrapassar o cepticismo, de Pilatos ou de outros. Por parte do governador romano, o diálogo acabou com aquele “Que é a verdade?”, entre o irónico e o desencantado. E depois de tantos debates ideológicos, que modernamente extremaram ou relativizaram posições filosóficas e políticas, muitos contemporâneos nossos não vão além disso. Tem o Cristianismo a vantagem – é justo considerá-la assim! – de nunca reduzir a verdade a um exercício de raciocínio, que a si próprio se validasse. Trata-se do “Verbo encarnado”, no que a Jesus Cristo se refere, verdade de Deus enunciada no mundo, numa vida e comportamento concretos que realmente se autenticaram. É antiga a alegação de que “contra factos não há argumentos”; e é evangélica a conclusão de que a árvore se reconhece pela bondade dos seus frutos. Pois a verdade estava ali mesmo, diante de Pilatos, na pessoa de Jesus, como se comprovou pela sua vitória sobre a morte; como se comprovou e comprova, por tanto bem que trouxe e traz à dignificação e libertação total de cada ser humano; como se confirma na capacidade permanente, geração após geração, para escoar e definir todas as verdadeiras aspirações do coração humano, em termos de realização consistente e progressiva; como se confirma pelos mil gestos de bondade que induz e realiza em quantos se deixam tocar por ela, a verdade de Cristo, face ao mundo e para salvação do mundo. E é por isto mesmo, irmãos e irmãs, e é por isto tudo a que nos leva o diálogo de Cristo, que nos reconhecemos ainda mais no seu reino; trazendo-lhe agora todas necessidades humanas, na maior das orações universais. + Manuel Clemente

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