Anúncio da Palavra, celebração dos Sacramentos, serviço da caridade

Homilia de D. Manuel Clemente, Bispo do Porto, na Missa Crismal Amados irmãos e irmãs, o significado e intenção desta Missa Crismal encontrámo-los já na oração colecta. Pedimos a Deus Pai que nos faça participar da consagração de Cristo, para sermos no mundo testemunhas do seu Evangelho. Como naquele dia em Nazaré, quando o Senhor aplicou a si a palavra de Isaías. Ouvimo-la também: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres”. Como no nosso Baptismo, em que o mesmo Espírito fez de nós membros de Cristo, sacerdote, profeta e rei. Como pela Confirmação, quando o Espírito Santo – dom de Deus e Deus dom – nos capacitou para a construção do Reino… E os santos óleos, que abençoarei nesta celebração, transportam idêntica graça, para que a boa nova seja anunciada aos pobres. Boa nova e Evangelho vivo e vivificante, que são a alma e a substância de toda a missão da Igreja no mundo. De cada catedral flui neste dia para a Igreja particular e universal uma corrente salvífica, que onde chega tudo reverdece, como Ezequiel disse um dia do templo de Jerusalém (cf. Ez 47, 1-12). – E o que levamos nós daqui, como boa nova para os pobres, nesta Quinta-Feira Santa, tão próxima da Páscoa do Senhor? Sabemo-lo bem, caríssimos irmãos e irmãs, ministros e consagrados, laicado todo da Diocese do Porto. Das pobrezas é difícil fazer a conta, tantas e tais são, do corpo ou do espírito. Mas não devemos desistir de as apurar, pois em cada uma sabemos encontrar a Cristo, que com elas se solidarizou para sempre. Encontramo-Lo nos pobres e temos aí a verdadeira religião: “A religião pura e sem mácula diante daquele que é Deus e Pai é esta: visitar os órfãos e viúvas nas suas tribulações e não se deixar contaminar pelo mundo” (Tg 1, 27). Órfãos e viúvas eram naquela altura os mais desamparados; hoje em dia, outras orfandades e viuvezes esperam a nossa prática religiosa autêntica, que para isso nos unge o Espírito de Cristo, discernindo e traduzindo na actualidade o mesmo impulso que era constantemente o seu. Nos três anos da sua vida pública, manifestou-nos Cristo o que eternamente sente a respeito de todos e de cada um de nós. Ele, que “por nós homens e para nossa salvação, desceu dos Céus…”. E sem nos deixarmos contaminar por aquilo que no mundo contrafaz a criação, destruindo-a pelo individualismo e os egoísmos vários. Criação, que sempre brota de Deus como convite à comunhão, onde nos realizemos todos como humanidade à maneira da Trindade; ou seja, em que cada um de nós se realize precisamente como pessoa, uns com os outros e para os outros, da família e da comunidade cristã para a sociedade, como fermento novo de partilha e de paz. É o próprio Espírito da comunhão divina, Vida circulante e transbordante do Pai e do Filho, que agora nos unge a nós, como humanidade de Cristo continuada no mundo, para impedir que este se feche em si próprio e individualmente, em auto-suficiência impossível e mortal, antes se abra em partilha, possibilitando a vida em promessa que possuímos todos. Descortinar, repito, as orfandades e viuvezes que nos rodeiam; ou – voltando a Isaías e à sinagoga de Nazaré – as pobrezas, cativeiros, cegueiras e opressões existentes, perto ou longe, é a primeira luz e actividade do Espírito crismal. Responder-lhes, como Jesus lhes respondeu por si e quer continuar a responder por nós, é realizar a missão da Igreja, seu sinal no mundo. Por isso mesmo repetimos – e façamo-lo muitas vezes, para que a caridade não tarde! – o que pedimos na oração colecta, isto é, que, “participando na consagração de Cristo, sejamos no mundo testemunhas do seu Evangelho”. E nem é preciso lembrar, amados irmãos e irmãs, que testemunhar o Evangelho é mais de obras do que de palavras, ainda que a palavra seja muitas vezes a obra mais urgente, como esclarecimento ou incentivo. Por alguma razão – e foi também esta, decerto – o Santo Padre dedicou a sua primeira encíclica ao próprio Deus, manifestado como amor e pelo amor. Para dizer, entre tantas outras coisas oportuníssimas: “O cristão […] sabe que Deus é amor e torna-Se presente precisamente nos momentos em que nada mais se faz a não ser amar. Sabe […] que o vilipêndio do amor é vilipêndio de Deus e do homem, é a tentativa de prescindir de Deus. Consequentemente, a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor. É dever das organizações caritativas da Igreja reforçar de tal modo esta consciência nos seus membros, que estes, através do seu agir – como também do seu falar, do seu silêncio, do seu exemplo -, se tornem testemunhas credíveis de Cristo” (Deus caritas est, nº 31). E escusado é dizer que toda a Igreja e cada uma das suas realizações comunitárias se distingue exactamente por ser, de certo modo, uma “organização caritativa”, quer no inter-relacionamento de todos e cada um dos seus membros, quer no serviço ao mundo, onde este precise de ingressar no grande “ano da graça do Senhor”, que Cristo nos trouxe, finalmente! Aqui se traduz e joga a condição cristã e crismal da Igreja, da nossa Igreja. A caridade de Cristo, como o Espírito no-la induz, exprime-se em tudo o que a Igreja é e faz com autenticidade. E mesmo que se distingam tradicionalmente o anúncio da Palavra, a celebração dos Sacramentos e o serviço da Caridade, é da mesma realidade que falamos, pois nela se consubstancia toda a verdade de Deus connosco, revelada em Cristo e difundida pelo Espírito. É também Bento XVI a recordá-lo: “A natureza íntima da Igreja exprime-se num tríplice dever: anúncio da Palavra de Deus (kerygma-martyria), celebração dos Sacramentos (leiturgia), serviço da caridade (diakonia). São deveres que se reclamam mutuamente, não podendo um ser separado dos outros. Para a Igreja, a caridade não é uma espécie de actividade de assistência social que se poderia mesmo deixar a outros, mas pertence à sua natureza, é expressão irrenunciável da sua própria essência” (Deus caritas est, nº 25). Anúncio da Palavra, celebração dos Sacramentos, serviço da caridade: esta tripla aplicação da Igreja prolonga nela e através dela a missão de Cristo e do seu Espírito. E tem no sacerdócio ministerial, pela sucessão e colaboração apostólica, um claro sinal e incentivo. Também a graça, porque de sacramento se trata, não mera função. Graça do sacramento da Ordem, que nos vai transformando em sinais vivos de Cristo Pastor no meio dos seus, trazendo na existência, dedicação e persistência de cada sacerdote uma das mais eloquentes provas de que Ele está sempre connosco até ao fim dos tempos (cf. Mt 28, 20). É notável o realismo pessoal e como que sacramental com que São Paulo exprimia o sentimento do que lhe acontecera, na revelação de Cristo vivo para o fazer apóstolo. São palavras suas, que devemos reter como nossas, caríssimos sacerdotes: “Quando aprouve a Deus – que me escolheu desde o seio de minha mãe e me chamou pela sua graça – revelar o seu Filho em mim, para que o anuncie como Evangelho entre os gentios…” (Gl 1, 15-16). Tudo isto traz uma densidade tão íntima, que ultrapassa qualquer compreensão meramente funcional do ministério. Trata-se, como a tradição católica foi compreendendo e definindo cada vez mais, de transformar pessoalmente cada um de nós em presença de Cristo, único sumo-sacerdote da Nova Aliança, para o serviço dos crentes e de todos. Trata-se de fazer do próprio sacerdote, já por si, uma “boa nova” anunciada aos pobres. Pois, não será boa nova a presença de Cristo nos seus padres, sustentando as comunidades pela pregação autêntica da Palavra, pela administração dos Sacramentos e pela oração e intercessão assíduas; incrementando o exercício da caridade nas suas formas mais oportunas, trazendo o alento de Cristo a todas as necessidades humanas, que encontre ou procure; garantindo a unidade eclesial pela integração, efectiva e afectiva no presbitério, em torno do bispo diocesano; sendo para a sociedade em redor a referência geral da comunidade cristã; sendo, para a missão universal da Igreja, um alerta constante dos próprios fiéis?! Na nossa compreensão católica, os sacramentos recebem-se como acções do Espírito, sempre cristificantes. Baptizados e confirmados, somos com os outros fiéis, sinais vivos de Cristo, Filho de Deus e construtor do Reino. Pelo sacramento da Ordem, somo-lo de Cristo cabeça e pastor, como os nossos irmão diáconos o são de Cristo servidor de todos. Tudo isto é complementar, na grande realidade carismática e ministerial que é a Igreja no seu conjunto, dentro da comum dignidade dos filhos de Deus. Mas tudo é igualmente pessoal, íntimo e sumamente realizador, segundo a vocação específica de cada um. Nossa também, de padres e bispos. Na sua recente exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis, sobre a Eucaristia fonte e ápice da vida e da missão da Igreja, o Santo Padre Bento XVI dedica alguns trechos ao sacerdócio ministerial, sublinhando quer o seu carácter pessoal e não meramente funcional, quer ligando-o, também na pessoa e no coração de cada ministro, ao sacrifício eucarístico de Cristo. Quanto ao primeiro ponto e referindo-se especificamente ao celibato, escreve o seguinte: “O facto de o próprio Cristo, eterno sacerdote, ter vivido a sua missão até ao sacrifício da cruz no estado de virgindade constitui o ponto de referência para perceber o sentido da tradição da Igreja Latina a tal respeito. Assim, não é suficiente compreender o celibato sacerdotal em termos meramente funcionais; na realidade, constitui uma especial conformação ao estilo de vida do próprio Cristo. Antes de mais, semelhante opção é esponsal: a identificação com o coração de Cristo Esposo que dá a vida pela sua Esposa. […] O celibato sacerdotal, vivido com maturidade, alegria e dedicação, é uma bênção enorme para a Igreja e para a própria sociedade” (SC, nº24). E, referindo-se mais adiante à espiritualidade sacerdotal na sua raiz, o Papa estabelece-a como participação de cada sacerdote na oferta que Cristo faz de si mesmo ao Pai, aos outros e pelos outros. Por isso a diz “eucarística”, já que cada um de nós preside à Eucaristia “na pessoa de Cristo”, para alargar a sua caridade no mundo. Oiçamo-lo de novo: “A espiritualidade sacerdotal é intrinsecamente eucarística; a semente desta espiritualidade encontra-se já nas palavras que o bispo pronuncia na liturgia da ordenação: ‘Recebe a oferenda do povo santo para a apresentares a Deus. Toma consciência do que virás a fazer; imita o que virás a realizar, e conforma a tua vida com o mistério da cruz do Senhor’” (SC, nº 80). Mas o Papa sabe muito bem o que nós também vamos sabendo, ou seja, que as maiores verdades só se realizam ao longo duma existência fiel e aplicada, também no nosso caso de sacerdotes, tão dispersos que podemos ficar, por múltiplas actividades e solicitações. Daí que prossiga: “Para conferir à sua existência uma forma eucarística cada vez mais perfeita, o sacerdote deve reservar, já no período de formação e depois nos anos sucessivos, amplo espaço para a vida espiritual. É chamado a ser continuamente um autêntico perscrutador de Deus, embora ao mesmo tempo permaneça solidário com as preocupações dos homens. Uma vida espiritual intensa permitir-lhe-á entrar mais profundamente em comunhão com o Senhor e ajudá-lo-á a deixar-se possuir pelo amor de Deus, tornando-se sua testemunha em todas as circunstâncias, mesmo difíceis e obscuras” (ibidem). Da Eucaristia para a Eucaristia, no aprofundamento diário e constante da realidade sacramental única onde, duma vez por todas, Cristo se entregou, como boa nova, também pessoal, do amor de Deus: isto somos e havemos de ser inteiramente, caríssimos sacerdotes, para a Igreja e para o mundo. Algo vos queria pedir, finalmente, irmãos e irmãs aqui reunidos no Espírito Santo, sobre todos derramado. Primeiramente, que acolhais o sacerdócio ministerial como Cristo, Paulo ou Bento XVI nos falaram dele, ou seja, com a consistência que a tradição eclesial respeitou e desenvolveu, em particular no nosso caso católico e latino. Acolhamo-lo como boa nova, que alegra e constrói as comunidades cristãs e o mundo em que se implantam. Em cada sacerdote, que agrega a si pelo sacramento da Ordem, quer Cristo confirmar e continuar o que disse a Nicodemos: “Tanto amou Deus o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que crê nele não se perca, mas tenha a vida a eterna” (Jo 3, 16). Peço-vos que considereis a vocação ao sacerdócio ministerial – como, aliás, todas as outras, de especial consagração, masculinas e femininas, laicais e familiares, locais ou missionárias – como um imenso dom do nosso Deus, cujo Espírito não cessa de interpelar cada um, para que, também por nós, Cristo salve o mundo e a criação inteira se restaure e realize em Deus, “que renova todas as coisas” (cf. Ap 21, 5). Peço-vos ainda que a vossa oração pelos sacerdotes seja insistente e persistente, para que perseverem e cresçam sempre mais no ministério, generosos e felizes – felizes porque generosos -, descobrindo que, como garantiu o Senhor, “a felicidade está mais em dar do que em receber” (Ac 20, 35). Que rezeis pelos seminaristas e por todos aqueles que, certamente, o Espírito já chama ao sacerdócio, para “anunciar a boa nova aos pobres e proclamar o ano da graça do Senhor”! Sé do Porto, 5 de Abril de 2007 + Manuel Clemente

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