A passagem de ano… uma experiência de limitação e da incapacidade de controlar a história É muito difícil adivinhar o que se escondeu por detrás do rosto, traje e ritmo, na celebração da passagem de ano. Dos que partiram para longe e dos que ficaram. Dos que se ocultaram na agitação de anónimos em salas, praças, ruas e castelos de fantasia inventados para a circunstância. Tudo na escorregadia passagem do tempo que, à esquina, tanto promete e nada garante. Que será afinal um ano que passa, um número que muda e conduz à exaustão física, psicológica, económica, os agentes deste ritual complexo que a todos envolve e questiona? No momento de falar todos tartamudeiam os mesmos lugares comuns nos desideratos para um Ano Novo. Mas todos, possivelmente, encobrem um oceano de inquietações, anseios, procuras, incertezas, medos recônditos. Trata-se de espantar os monstros que podem surgir na neblina de cada novo minuto que o rodar do tempo transporta. Ninguém é dono do tempo e dos factos. As notícias escorrem, com uma sensualidade estranha, sobre os naufrágios, os acidentes de estrada, os fogos, os crimes, os cataclismos e as lágrimas de tantos fustigados pela dor. E sabemos que muitos dramas ficaram por dizer e muitas alegrias por contar. E tantos acontecimentos de festa e ternura tratados com o desprezo de causas insignificantes. O que dá importância à celebração dos acontecimentos e os transforma em liturgia é a sua capacidade de se projectarem para além do seu tempo real. E esse valor mede-se pela intensidade com que se vivem. A passagem de ano tem realmente um significado dentro de cada ser humano que experimenta a sua limitação de tempo e a sua incapacidade de controlar a história. Sempre no ímpeto irreprimível de felicidade. Há algo de transcendente dentro de cada ser como vocação de infinito que o leva a olhar o imediato como medida estreita para os horizontes que interiormente vislumbra. A chegada do Ano Novo parece-se muitas vezes, exteriormente, com um Carnaval selvagem e uma explosão celebrativa próxima da histeria. Mas esconde anseios no coração de cada ser que o remetem à sua vocação humana de infinito. As fronteiras do absurdo e do sublime confundem-se por vezes na complexa condição humana. Aos cristãos incumbe colocar o tempo, o espaço e divertimento no seu lugar certo. Com a força dum espírito que olha e celebra o longe. António Rego