Presidente da Comissão da Liberdade Religiosa, órgão consultivo da Assembleia da República e do Governo, ocupa o cargo desde setembro de 2016; está diretamente ligado à redação e promulgação da Lei de 2001
Entrevista conduzida por Filipe d’Avillez (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
20 anos permitem, certamente, um balanço do percurso deste diploma. Quais foram os principais avanços obtidos com esta lei?
O principal avanço foi haver uma lei da liberdade religiosa, esse foi o principal avanço. Porque estávamos 20 e tal anos depois da Constituição de 1976 e apesar de a Constituição ter um artigo, o artigo 41, que é bastante completo no que diz respeito aos princípios fundamentais da liberdade religiosa, designadamente liberdade de consciência, de religião e de culto, os três pilares fundamentais da liberdade religiosa, a verdade é que faltavam duas coisas.
Em primeiro lugar, rever a Concordata com a Igreja Católica, que era dos anos 40 e não estava de acordo nem com a Constituição Portuguesa nem com aquilo que foi a mensagem e o conteúdo do Concílio Vaticano II. Um dos documentos fundamentais do Concílio Vaticano II foi precisamente o que diz respeito à liberdade religiosa. Se nós hoje olharmos para o Concílio, foi, digamos, porventura, a grande novidade do Concílio. Mas para isso era preciso reconhecer as várias religiões, por uma questão de dignidade, porque mesmo que a Constituição tivesse os princípios fundamentais no que diz respeito aos direitos individuais, e uma referência também aos direitos coletivos, a verdade é que estava por tratar em pormenor os direitos individuais e estava praticamente, totalmente por tratar, aquilo que são os direitos coletivos. Ou seja, a liberdade religiosa não é só a liberdade de ter ou não ter religião, a liberdade de consciência e a liberdade de culto, é mais que isso, é também uma liberdade de organização das confissões religiosas.
A sociedade portuguesa é hoje mais madura no que diz respeito à relação com as várias religiões e a presença da religião no espaço publico e à colaboração entre religiões e Estado?
Acho que sim. Eu assisti há dias (12 de junho, ndr) a uma cerimónia que me tocou bastante. Na catedral da Igreja Lusitana, que é o ramo português da Igreja Anglicana, vi várias coisas que me impressionaram: uma delas foi a assinatura, por parte da generalidade das religiões presentes – e eram várias, entre elas a Igreja Católica, representada ao seu mais alto nível – de um documento sobretudo sobre o futuro da ecologia, da defesa da terra, e por aí fora. Há 20 ou 30 anos isto era impossível. Eu nunca vi nada de parecido, bem pelo contrário. Havia a Igreja Católica com uma enorme predominância e depois as outras religiões estavam quase metidas num buraco, não se ouvia falar delas, não tinham iniciativas.
Claro que hoje continua a ver em Portugal uma enorme predominância social, ou sociológica, da Igreja Católica. Os últimos números eram de 78% dos portugueses, aguardemos agora o censo, mas não andará muito longe disso. Pode haver alguma descida, porque não só a Igreja Católica, mas as religiões de um modo geral têm perdido peso na Europa…
O facto de haver cada vez mais aquilo a que se pode chamar uma iliteracia religiosa, mais até do que preconceito antirreligioso, pode influenciar a liberdade religiosa dos crentes?
Não diretamente, mas indiretamente sim. Porque as pessoas não percebem muitas vezes a presença das entidades religiosas no meio da sociedade. Muitas vezes não percebem. Mais, irritam-se com essa presença, reagem a essa presença. Só para dar um exemplo, e sem citar nomes, nós recebemos na Comissão da Liberdade Religiosa uma série de queixas que procuramos resolver com bom-senso e interpretando a lei. E por exemplo, uma das queixas que recebemos ultimamente é que havia uma estátua de Nossa Senhora no jardim de uma freguesia. As pessoas reagem mal à presença da religião. Poder-se-á dizer que é por ser a presença da religião católica, mas não creio, porque o mesmo se passa em relação às outras religiões. É porque cantam e fazem barulho. Bem, normalmente fazem barulho uma vez por semana, durante uma hora. Se fosse uma coisa de todos os dias… Sobretudo as religiões evangélicas têm uma tradição, que a Igreja Católica nos últimos anos começou a acompanhar, que é a música e o canto. Mas naturalmente as Igrejas Evangélicas têm, na sua tradição, até pelo sítio de onde vêm, em muitos casos do sul dos Estados Unidos, das Igrejas Batistas, uma grande tradição de música, e de música muito viva, às vezes até com dança. E fazem barulho! É um dos problemas que temos, porque essas Igrejas, de um modo geral, são pequenas comunidades, que não têm obviamente capacidade financeira para construir um templo. Por isso acabam por estar instaladas numa garagem, ou num armazém, que está no meio da população.
Além das comunidades religiosas “radicadas”, há 600 confissões inscritas no Registo de Pessoas Coletivas Religiosas (RPCR). Esta distinção promove algum tipo de discriminação?
Não. Surge porque o Estado concede a certas religiões determinados poderes, que são poderes típicos do Estado, como o poder de casar, por exemplo.
Como é que chegamos ao conceito das chamadas confissões radicadas? São confissões que têm uma presença, quer em Portugal – podem não ter em Portugal, mas ter no mundo – de um determinado número de anos, que nos dá a garantia de que são estáveis, que estão para ficar. Isto porque assistimos muitas vezes à fundação de novas comunidades religiosas que duram dois ou três anos e depois acabam por se esgotar, porque não cresceram, ou não tiveram gente suficiente para as manter. Ora bem, o Estado não pode dar o poder de casar a uma entidade que daqui a dois anos acabou, não tem sentido nenhum! Este é um poder típico do Estado. Assim como determinados benefícios fiscais, que são idênticos aos da Igreja Católica, mas que são próprias de certas religiões, que são aquelas que estão radicadas – o termo pode ser discutível, porque radicadas estão todas, não é? –, o que quer dizer que têm 30 anos ou mais em Portugal, o que dá uma certa garantia de que estão para ficar, que vieram para ficar, e não são movimentos criados muitas vezes ao sabor de uma ideia ou de uma pessoa.
A lei existe precisamente para proteger as comunidades religiosas, algumas das quais têm tradições que podem eventualmente chocar, ou ser desconforme da tradição e cultura portuguesa. Duas destas comunidades, mais que radicadas, a comunidade judaica e a muçulmana, têm práticas específicas relativamente à alimentação e à circuncisão. Na Europa já houve várias tentativas de proibir a matança de animais segundo as tradições religiosas e também de limitar a circuncisão por motivos religiosos. Em Portugal há uma lei no Parlamento para tentar acabar com o abate de animais segundo as normas religiosas. Deve-se emendar a lei para tentar proteger estas comunidades?
O mundo anda… E as convicções da sociedade também mudam. Hoje há um enorme movimento de proteção dos animais, que é geral, não é apenas em Portugal. O que tem levantado, nalguns países europeus – Bélgica e Alemanha – alguns problemas no que diz respeito ao abate. Teremos de ver na altura como é que vamos resolver o problema, mas obviamente se houver uma lei que venha alterar essa matéria, naturalmente que das duas uma: Ou encontramos uma exceção para determinadas religiões, é uma possibilidade, ou temos de obedecer à lei.
Mas há outros exemplos! Ainda há pouco tempo resolvemos um problema, o que me criou algum contentamento. Os hindus têm uma prática que para eles é fundamental – assistimos agora, infelizmente, pelas piores razões, a milhares de piras a queimar os corpos, que é a tradição hindu, mas além disso as cinzas têm de ser deitadas a um rio. E nós demos em Portugal com uma situação em que as autoridades não autorizavam isso. Conseguimos, finalmente, depois de algumas tentativas, que as autoridades policiais, sobretudo a que gere a generalidade das polícias, nos desse razão e assegurasse que as polícias iriam atuar de outra maneira em relação aos hindus.
Temos aqui duas coisas em confronto. Uma coisa é o direito à liberdade religiosa, que a Constituição diz que é inviolável. Outra coisa são, neste caso concreto, os direitos dos animais, nesse caso concreto que deu, ou direitos ecológicos, porque se diz que não se devem deitar as cinzas no rio. E nós temos de saber o que é que predomina. Eu inclino-me para a predominância do direito da liberdade religiosa, mas admito que tenham de ser feitas adaptações para o mundo moderno.
Os judeus também não vivem, de um modo geral, como viviam há 200 anos, muito menos há mil anos, como é óbvio.
Mas uma coisa é a própria comunidade reorganizar-se, outra é o Estado impor essa reorganização…
É verdade. Acho que as comunidades já começaram a tomar consciência disso. Em conversas que tenho tido com pessoas, quer da comunidade islâmica, quer da comunidade judaica, porque têm problemas praticamente idênticos, já começaram a tomar consciência disso. E começam a adotar, ou a tentar pensar em métodos que possam articular-se de forma que se cumpra minimamente o preceito religioso, sem ofender aquilo que são os preceitos, ou o espírito societário no mundo de hoje. É aí que temos, possivelmente, que chegar.
Há outras matérias em que os direitos estão em confronto. Há responsáveis religiosos que têm chamado a atenção para a limitação de objeção de consciência dos seus crentes em matérias ligadas à bioética ou direito familiar. Este conflito entre aquilo que alguns chamam novos direitos legislativos e o direito a manifestar publicamente as convicções religiosas é uma área em que é preciso trabalhar?
É e tem suscitado problemas sérios em vários países. Em Portugal ainda não, porque nós temos uma sociedade, porventura, não tão agressiva… Talvez a lei também tenha de alguma forma ajudado a isso, esta e outras, mas temos problemas sérios.
Há pastores de determinadas Igrejas que criticam, por exemplo, a homossexualidade, isso não é bem aceite nas sociedades europeias contemporâneas. Não é bem aceite e, às vezes, é muito mal aceite. Essas confissões religiosas têm, por um lado, de – sem perder as suas convicções – respeitar também as leis do país em que se encontram integrados, porque isso não faz parte do “core” de uma religião. A posição em relação a isto ou àquilo, designadamente à vivência sexual, etc. – outra coisa é o casamento entre homossexuais, isso já é diferente -, o respeito pela homossexualidade, pode levantar problemas e tem levantado problemas em certas religiões, e não é em países que são conhecidos pela perseguição religiosa, mas na Suécia, por exemplo. A Suécia não é propriamente um país conhecido por ser um país que persegue, que não respeita direitos, mas começa a haver uma sensibilidade para certos problemas e para certas posições que levantam problemas sérios entre as religiões e as sociedades contemporâneas. Temos de enfrentar isso e tentar encontrar as melhores soluções.
Tivemos agora um período forte, como estamos a vivê-lo ainda de pandemia, que obrigou durante certa altura à suspensão das celebrações religiosas. A Comissão foi consultada pelo governo?
Numa vez foi, na outra não. Da memória que tenho, num caso foram facilitadas porque a própria Igreja Católica logo disse que…
Não estamos a falar só da Igreja Católica…
Mas não foi apenas a Igreja Católica. Eu falei com várias Igrejas, não falei com todas, é impossível, são muitas apesar de tudo. A generalidade das Igrejas fez o seu culto pela internet, pelo menos daquelas com quem falei.
Mas depois disso, já fora do Estado de Emergência, veio uma suspensão. Nessa altura, a comissão foi consultada?
Não, não foi, infelizmente. Até porque a Comissão é um órgão de consulta do Governo e da Assembleia da República, deveria ter sido consultada e não foi.
Qual é a sua opinião sobre essa suspensão fora do Estado de Emergência, do ponto de vista jurídico?
Há um direito fundamental, um direito constitucional, que é o direito ao culto. Claro que se não houver Estado de Emergência o que é que pode impedir o culto? Pode impedir-se o culto por razões sanitárias, mas as próprias Igrejas podem tomar medidas, como estão a tomar… continua a haver aquela distância, de que aliás algumas se queixam. É uma coisa de que vamos tentar tratar agora porque a maior parte das Igrejas, a maior parte das confissões, têm pequenos templos, às vezes uma garagem, um armazém, e aquele distanciamento de 2 metros… Eles dizem com razão, que no cinema não há dois metros entre um lugar e o outro, mas um lugar vazio pelo meio, eu vejo apenas 70, 80 centímetros. Espero que as autoridades nacionais possam rever essa questão rapidamente e, sem prejudicar as razões sanitárias, permitir que o culto se faça dentro de uma normalidade possível.
Houve também algumas queixas no que diz respeito à assistência religiosa nos hospitais, percebe-se que a situação era excecional, mas durante a pandemia foi praticamente inexistente…
Tem havido. Às vezes até, porque os próprios padres e pastores não queriam ir. Agora vou tentar falar com o padre Sampaio [padre Fernando Sampaio, coordenador nacional das Capelanias Hospitalares], que vai estar presente na terça-feira [sessão dos 20 anos da Lei da Liberdade em Portugal].
Nesse direito secundário da liberdade religiosa há ainda muitos problemas por resolver. Nos problemas da assistência espiritual e religiosa nos hospitais é difícil, porque são muitas unidades e cada unidade raciocina e vê a lei da sua maneira. Seria preciso não gerar mais leis, mas entendermo-nos, que cada um soubesse o que tem a fazer.
Continua a haver problemas nas prisões, nas Forças Armadas. Não são problemas de não deixar entrar – não me refiro ao pároco da Igreja Católica, esse é o capelão normalmente e não tem esse problema, mas das outras religiões há problemas. É esse direito secundário que só foi publicado nove anos depois da Lei da Liberdade Religiosa: a lei diz que há direito à assistência espiritual nos hospitais, nas prisões, nos ambientes fechados, em que as pessoas precisam que alguém vá prestar essa assistência. E essas leis demoraram nove anos a ser publicadas. São todas de 2009, com as dificuldades que isso significou e continua a significar no terreno.
Há protestos de várias Igrejas, bastantes protestos, precisamente porque cada unidade adota a sua visão de como deve ser feita. A prisão é, porventura, o mais difícil. As prisões têm problemas de segurança e, às vezes, é muito difícil combinar esses problemas com a assistência a qualquer hora e de qualquer maneira. Nos hospitais menos, apesar de tudo. Nas Forças Armadas também menos.
E é aí que vamos neste segundo balanço, depois dos 20 anos, tentar que as coisas passem a ser mais bem organizadas, mais igualitárias, e que as pessoas tenham o direito àquilo que a lei lhes dá, que é o mínimo, o direito à assistência espiritual e religiosa nessas situações.