«Uma das âncoras importantes é sempre o jornalismo» – Felisbela Lopes

Investigadora na Universidade do Minho, coordenou um estudo sobre a cobertura mediática da Covid-19, diz que os jornalistas assumiram a missão de “serviço público” e considera que a classe se revê na proposta do Papa para «ir onde mais ninguém vai»

Como é que leu os alertas e os desafios que o Papa lança na mensagem aos comunicadores em geral? São ainda mais relevantes e oportunos em tempo de pandemia?

São de uma enorme atualidade e constituem, só por si, um manual de boas práticas que deveria acompanhar cada jornalista. Penso que cada jornalista se revê naquilo que o Papa Francisco diz nesta mensagem, esta necessidade de estar com as pessoas, de as ouvir para chegar à realidade. O encontrar as pessoas nos sítios onde elas estão é um desafio de uma enorme atualidade, e até parece paradoxal, numa altura em que todos nós nos habituámos a conversar uns com os outros através do computador e dos ecrãs.

 

Como estamos também a fazer nesta entrevista…

Como estamos a fazer, e quase que já consideramos isto normal. É bom que cada um de nós sinta que estamos numa situação verdadeiramente excecional, que o contacto interpessoal, a presença física das pessoas é sempre muito necessária para o conhecimento, porque esta conversa à distância subtrai uma parte importante de toda a riqueza que tem uma conversa de modo presencial. E o Papa vem colocar esta necessidade de estar, efetivamente, com as pessoas, e dirige este repto aos jornalistas, mas quase que o dirige a cada um de nós, porque os jornalistas também estão em representação de cada um de nós. É, de facto, um desafio e um chamar de atenção, que até pode ir contra a maré, mas neste momento em que as vacinas nos dão uma enorme esperança para um regresso a uma certa normalidade, é bom que este regresso se faça acompanhar também de um regresso às pessoas, a estar efetivamente atento àquilo que são as necessidades e as manifestações de cada um.

 

Jornalismo foi âncora

Que diagnóstico faz do exercício do jornalismo em Portugal no tempo pandemia? Houve uma retração ou o jornalismo manteve esse contacto com as pessoas, cumpriu esse desejo do Papa de “ir onde mais ninguém vai”? Por exemplo, o que se passou agora em Odemira, a denúncia concreta de injustiças sociais aconteceu também muito por causa dos jornalistas?

Sim. Os jornalistas em tempos de pandemia não conseguiram ir a todos os sítios onde gostariam de ir, ou onde deveriam estar, mas isso não implica que se faça um balanço negativo da cobertura mediática, pelo contrário. Este tempo pandémico corresponde, de uma forma geral, a um período de qualidade ao nível do trabalho jornalístico.

Os jornalistas fizeram um esforço enorme para levar a informação pertinente, atual, sustentada por vozes de especialistas, num tempo em que cada um de nós estava confinado nas suas casas. Os jornalistas também podiam estar, muitos fizeram muitos trabalhos a partir das suas casas, com os constrangimentos que cada um de nós experimentou, com filhos, com estas dificuldades de conciliar no espaço privado dimensões do público, introduzindo nos lares estas dinâmicas laborais, e aí estiveram os jornalistas, num trabalho importantíssimo.

Se Portugal é apontado, na primeira fase da pandemia e de emergência – a partir de março de 2020, até maio do mesmo ano -, como um caso de sucesso, em que o país confinou de forma rápida, isto não se deveu apenas uma decisão política célere. Efetivamente houve essa decisão política – poderemos discutir se os processos de comunicação institucionais foram, ou não, eficazes, isso é outra conversa, mas ao nível da decisão tivemos uma decisão célere -, mas se as pessoas ficaram confinadas em casa, isso também se deveu, de certo modo, ao trabalho jornalístico. Ao nível das televisões, também da parte dos programas de entretenimento, que foram chamando a atenção das pessoas para a importância de ficar em casa. ‘Fique em casa’ foi sempre uma espécie de slogan que se adotou como uma chamada de atenção para a urgência da situação ser comandada por cada um de nós. Cada um de nós importava para ajudar a parar um vírus que todos desconhecíamos, e em relação ao qual experimentávamos muito medo, e os jornalistas tiveram um papel importantíssimo, numa literacia, em ser âncora em momentos de grande ansiedade, de grande incerteza. Eu acho que este papel não poderá nunca ser esquecido.

 

Na linguagem da Igreja, estiveram ao serviço do bem comum…

E a cumprir aquilo que é também uma obrigação dos jornalistas, esta responsabilidade social, olhar a informação jornalística como serviço público.

No inquérito que fizemos à classe jornalística, logo no início, 92% dos inquiridos disseram que quiseram ajudar a mudar comportamentos no sentido da prevenção da doença, e isto não é um dado que nos deva causar aqui grande admiração. Ainda bem que foi assim, era chocante se não o fosse. Ainda bem que os jornalistas disseram ‘nós quisemos ajudar as pessoas a adotar comportamentos de prevenção’. Isto sim, é responsabilidade social do jornalismo.

 

Mas, tudo isto aconteceu – e esse é também um alerta que o Papa deixa na mensagem – cultivando uma informação mimética, que pode relevar alguma crise editorial, ou na sua opinião as tendências do jornalismo atual são espelho desta informação mimética?

Há uma informação mimética e uma agenda monotemática, é verdade. O Papa Francisco fala aqui na importância da entrevista e da reportagem, dizendo mesmo que este géneros jornalísticos perdem espaço no campo da informação.

 

Felizmente há ótimos exemplos na informação em Portugal.

Só que a reportagem custa dinheiro. Ter jornalistas no terreno é dispendioso. Um jornalista na redação, à secretária – acho que toda a gente entende isto bem – consegue fazer numa tarde três, quatro peças. Um jornalista que vá fazer uma fazer uma reportagem, fazendo o confronto de diversas fontes de informação, que queira trazer uma cor local para o seu trabalho, fará isso num dia, ou, quando a reportagem é feita mais distanciada, isso pode implicar várias dias de trabalho. Tudo isto custa muito dinheiro e as pessoas hoje estão pouco dispostas a pagar pela informação jornalística, porque se habituaram a terem informação sempre de forma muito facilitada, e nem sempre se distingue aqui a informação jornalística da informação de conteúdos que correm nas redes sociais, que não são filtrados nem verificados por ninguém. Não é tudo igual, e os meios de comunicação social estão em crise porque as pessoas compram pouco os jornais, não estão dispostas a pagar pela informação que consomem por via digital, e também nas televisões e nas rádios, um pouco por todos os projetos jornalísticos, temos um investimento publicitário que também tem estado em queda. A crise não se abriu em 2020, a crise já vinha de trás. Agora agudizou-se.

 

Por uma ecologia nas redes sociais

A questão dos meios digitais também é abordada pelo Papa na mensagem, que considera a comunicação digital “um instrumento formidável”, mas alerta para a atenção que é preciso dar às fontes da informação que se consome. Em Portugal tem crescido esta consciência da importância da informação de confiança ou as redes sociais estão a acabar por dominar a informação? O critério editorial está a ser condicionado pelo que é popular nas redes?

As redes sociais em Portugal, como um pouco por todo lado, têm um domínio e um poder fortes. Muitas pessoas vivem penduradas naquilo que é publicado nas redes sociais…

Achei curioso o facto do Papa Francisco escrever, e cito, que “todos somos responsáveis pela comunicação que fazemos”. Também poderia ter acrescentado – mas eu leio isso nas entrelinhas – que todos somos responsáveis pela comunicação que consumimos, não apenas pela comunicação que produzimos.

Este consumo de informação acho que deveria ser outro atualmente, mas efetivamente não o é. Temos ainda pessoas pouco disponíveis para consumir outro tipo de informação e pagar por essa informação. Porque ter informação de qualidade exige que um conjunto de pessoas trabalhe para a construir, para a escolher, selecionar, editar e difundir. Tudo isto não é barato, mas se queremos uma informação que promova uma cidadania de alta intensidade que nos leve a perceber, de uma forma mais aprofundada, os problemas do espaço público por onde todos vamos circulando, e as instituições que dele fazem parte, com certeza que temos de estar dispostos a fazer um outro consumo e uma outra escolha da informação.

 

Que instrumento poderá ser a Carta dos Direitos Humanos na Era Digital, promulgada há dias pelo Presidente da República?

Todos os documentos que promovam alertas para uma comunicação digital mais transparente e responsável são sempre documentos para guardar, pelo menos na nossa memória, para consumo futuro, ou para tenhamos um outro modo de agir.

As redes sociais levam-nos por uma torrente, às vezes de ruídos, que podem ser muito perigosos, porque nos habituamos a ver o mundo tal qual está ali. O mundo não é assim. Aliás, nas próprias redes sociais a palavra ‘amigo’ é perigosa. Nós não temos cinco mil amigos, isso não existe! Não temos aquela proximidade toda com as pessoas que estão na nossa rede social, mas às vezes quase que acreditamos naquilo, e a tal ponto que estamos disponíveis para pôr em público espaços ou pedaços da nossa vida privada e às vezes íntima.

Eu às vezes sinto-me a ir de férias com pessoas que mal conheço. Sei tudo das férias delas: para que hotel vão, que restaurante frequentam, o que fazem durante o dia, e eu não me sinto no direito de ver essas coisas, mas essas pessoas parecem sentir o dever de mostrar. Eu acho que era preciso, de facto, ter aqui uma outra ecologia daquilo que se partilha.

 

Este documento coloca o problema da comunicação da era digital na esfera dos direitos humanos, o que não deixa de ser curioso…

É. E eu não queria deixar de falar aqui de um ponto que o Papa Francisco sublinha, e que para mim é muito caro: o Papa diz aos jornalistas que é preciso ‘ir onde ninguém mais vai’. É um sublinhado muito pertinente, porque nós, através da informação, às vezes estamos a olhar sempre para a mesma realidade. E em Portugal temos uma informação que não deixa de ser centralizada a partir de Lisboa, porque é aí que estão as redações centrais, e também centralizada à volta de certas fontes de informação.

Acontece o mesmo com a informação internacional, estamos sempre a iluminar determinadas partes do mundo. De repente, nas últimas semanas, despertámos para a Índia e foi preciso ter aqueles números (da pandemia) para quase paralisarmos. Eu nunca vi nada de tão horrível!

Uma das edições da revista Time dedicava a capa à Índia e na longa peça sobre o assuno apontava a situação de um senhor que, numa bicicleta com atrelado, andou quilómetros a tentar arranjar um hospital para a filha e para a mulher que estavam praticamente a morrer. Não podemos ficar indiferentes a esse relato. Era um relato que só estava ali por palavras, não havia nenhuma foto, nem vídeo, mas aquele pedaço de texto andou na minha cabeça durante vários dias: um homem numa bicicleta, com a filha e a mulher a morrer e não arranjava um hospital. Que mundo é este tão desigual, em que as pessoas morrem porque nem sequer conseguem chegar a um hospital e se chegam não conseguem entrar, porque não há lugar para essas pessoas? Isto, de facto, devia fazer-nos pensar. E aí, sim, temos o dever de olhar para estes cantos, estas periferias, estas espirais do silêncio, que nem sempre estão no topo dos alinhamentos. “Ir onde ninguém mais vai”, como diz o Papa.

 

Que poder comunicativo tem o Papa, em sua opinião? É um modelo para os comunicadores, para os investigadores de comunicação social e para os jornalistas? 

O Papa tem um poder que eu acho significativo, que é o despir-se de algum artificialismo, que às vezes determinados lugares ou cargos impõem a quem lá está. Olhamos para o Papa Francisco e esta simplicidade, este abeirar-se das pessoas, dos mais pequeninos, dá-nos grandes lições: a partir de um lugar, que é o centro do mundo – e o centro do mundo com o Papa é sempre um lugar nómada, é o lugar onde está o Papa…

 

No Vaticano, ou no Iraque…

Exatamente. Este centro do mundo, quando o Papa se abeira ou carrega no colo uma criança pequena, com certeza que nos está a dizer que todos importam, independentemente da idade ou da sua condição.

 

Jornalismo e Covid-19

O Estudo que coordenou, desde março do ano passado, sobre a cobertura mediática da Covid-19, incluiu um inquérito à classe jornalística, que já referiu. Qual foi o dado que mais a surpreendeu?

Não foi propriamente uma surpresa, porque eu dei conta disso quando seguia a informação, tal como as colegas que me acompanham neste trabalho: a Clara Almeida Santos e a Ana Teresa Peixinho (Universidade de Coimbra), a Catarina Burnay (Universidade Católica), a Rita Araújo (Universidade do Minho) e a Olga Magalhães (CINTESIS). Formamos todas uma equipa que anda a estudar isto desde março de 2020, e todas demos logo conta de que havia um esforço do jornalismo para ajudar as pessoas. Mas, este assumir, por parte da classe jornalística, que quiseram mesmo ajudar as pessoas, que olharam mesmo para a informação como serviço público, e que sentiram o jornalismo como o exercício de enorme responsabilidade social, a mim, que sou professora de jornalismo, encheu-me de uma enorme satisfação! Fiquei muito feliz a olhar para este dado, porque isto também nos dá esperança de que a informação jornalística é estruturante, e que nos momentos em que todos nos sentimos perdidos, uma das âncoras importantes é sempre o jornalismo.

Nós precisamos de informação para irmos andando por um quotidiano muito imprevisível, muito desconhecido. De repente ficámos sem chão, e uma das âncoras que nos puxou para um sítio mais seguro foi o jornalismo. Isto a nós – a vocês que são jornalistas, e mim, que olho para o jornalismo a partir do campo mais académico – não nos deixa satisfeitos? Com certeza que sim.

 

Isso tranquiliza-a enquanto professora, como disse. E o que é que a preocupa mais, olhando para o panorama dos media em Portugal?

Preocupa-me sobretudo a profunda crise financeira dos grupos editoriais. Sem meios o jornalismo não tem qualidade.

 

Condiciona tudo o resto?

Condiciona. E é preciso que cada um pense nisto: seria importante que todos tivéssemos esta consciência de que é preciso pagar pela informação. Uma assinatura anual de um jornal, por exemplo, custa menos de 100 euros, mas durante o ano todo tenho o jornal.

Eu leio os jornais muito cedo, às vezes até de madrugada. Acordar e ter um jornal dentro de casa durante um ano, ter sempre a informação disponível, poderá ser caro, não está ao alcance de qualquer um, é verdade, mas está ao alcance de muitos, e se esse grupo de pessoas achar isso importante e reservar essa quantia, também está a ajudar a dotar o espaço público de mais qualidade, também está a ajudar a fortalecer a democracia, porque nós precisamos de órgãos (de comunicação) que zelem também pelo bom funcionamento da democracia. E os órgãos de comunicação social cumprem esse papel.

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Agência ECCLESIA

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