Homilia da Vigília Pascal de D. Rui Valério
Irmãs e irmãos
1 – Imersos que estamos no mistério da existência, celebramos a sua orientação e força, e até o que lhe dá razão de ser, que é Cristo Ressuscitado. A ressurreição é um evento que determina o sentido da própria existência, revelando que a nossa identidade está sempre e em qualquer circunstância orientada para a vida e que a vida será sempre e, em toda a parte e para todo o ser humano, a alma e o conteúdo da existência.
2 – A celebração da Páscoa decorre no coração da noite, não para contrastar com o dia, mas porque se situa além do dia, para além da nossa capacidade de compreender e do nosso entendimento. De facto, não obstante os sinais da Ressurreição, como a pedra revolvida e o sepulcro vazio, é uma verdade que está para além da própria história e transcende os critérios humanos. Por isso, é um evento que continua a questionar a lógica das nossas certezas e os mecanismos das convicções humanas, minimizando as barreiras dos nossos horizontes. Torna-nos hóspedes duma perspetiva escancarada à força da vida e aberta à novidade de Deus.
Neste mistério sem tempo nem espaço, o próprio Deus irrompe na história, não simplesmente com a promessa da eternidade, mas com a própria realidade eterna. Ele atinge o coração frágil da criação com a grandeza da sua divindade para lhe dar plenitude e oferecer-lhe o alento fascinante da superabundância. Cristo Ressuscitado é, na verdade, o sacramento do Pai, aquele onde Deus se faz presença para o ser humano para que o ser humano possa encontrar abrigo no coração de Deus.
3 – A Ressurreição constitui uma novidade radical no tempo e na história. Não é o fruto de nenhuma força física, nem sequer de nenhuma evolução natural e, muito menos, duma vontade coletiva da humanidade. Nada gera a Ressurreição, nenhuma força é suficientemente forte para a ativar, apenas a omnipotência de Deus, ou seja, a potência do Seu amor. E esta é, na verdade, a força que vence a morte, a potência que desmorona os limites da vida, ou seja, a omnipotência do amor. Só o amor confere à vida horizontes de plenitude, só o amor coloca a vida na rota da eternidade. Celebramos esta noite, no coração do mistério, o emergir da nova criação. E iluminados pela luz resplandecente da Palavra, assumimos a consciência de estar perante um Mistério que envolve, em primeiro lugar, Jesus Cristo e, por isso, também o Pai, a humanidade e cada um de nós.
4.1. Envolve Cristo – que Ressuscita. À dádiva total da vida e do espírito de Jesus ao Pai, por amor e para a salvação da humanidade, o Pai responde derramando a sua própria vida no crucificado e sepultado, infundindo n’Ele o Seu Espírito. Uma dádiva de amor que não advém para restabelecer ou corrigir o que estava desfigurado e morto, mas para ressuscitar, para gerar uma nova realidade, um novo corpo que, como diz São Paulo, “uma vez ressuscitado dos mortos, Cristo já não pode morrer” (Rm 6, 10). Foi a potência do amor que agiu em Jesus dando-lhe, pois, uma nova vida, uma nova condição. Já não biológica, nem voltada para a morte, mas uma vida estável e definitiva. Jesus é transformado. Não se trata de mera reanimação, nem tão-pouco só revivificação, mas plenitude sem confins, com a consistência da própria eternidade. Esta é a forma suprema de o Filho participar da vida do Pai.
4.2. Este mistério envolve o Pai. O mistério Pascal revela-nos Deus como o Horizonte dos acontecimentos e como a referência última da história. O Pai responde com o dom da vida divina à entrega que Lhe fizera Jesus, o Filho predileto, da sua vida na cruz. E à oferta do seu espírito, responde com a efusão do Espírito Santo. Em tudo, Deus Pai marca o ritmo, ilumina com a luz do seu amor cada momento e ação, mesmo os mais enigmáticos. E, a exemplo do que sucedera na Criação, também agora, na ressurreição, o Pai coloca toda a eficácia da sua força e potência ao serviço da vida. Por isso, nesta hora tão decisiva para o mundo e para Portugal, não nos podemos alhear de haver forças perniciosas na sociedade que, em vez de estarem orientadas no sentido da promoção da vida, em todas as fases do seu desenvolvimento, e dessa forma serem forças pascais de ressurreição, apresentam apenas a morte como critério e caminho… Do sepulcro vazio, ergamos a voz e gritemos: a morte é fim, não caminho; é estagnação, não progresso. É por isso que, no evangelho escutado, o jovem vestido de branco diz às mulheres, de dentro do sepulcro aberto: “Ide dizer aos seus discípulos…” (Mc 16, 8). Enquanto a lógica da morte funciona sempre como força de bloqueio e estorvo paralisante, do coração do mistério da ressurreição irrompe, linear, a abertura do caminho, a possibilidade de progredir e do desenvolvimento. A Páscoa constitui uma proposta de Deus à humanidade, «ide», que significa progredir, desenvolvimento. Ao passo que a cultura da morte, a única proposta que apresenta é a paralisação e a estagnação.
A ressurreição de Jesus revela-nos como Deus não está prisioneiro das leis da natureza, as quais ditam a obrigatoriedade da morte como vocação de toda a criatura. Deus inaugura, na ressurreição de Jesus, uma nova criação, em que a vida já não está aprisionada no espaço exíguo que se move entre nascimento e morte, mas está liberta dos condicionamentos espácio-temporais, entre o nascimento para o tempo, para a história, e o nascimento para a eternidade, para Deus. Esta vida é já experimentada ritualmente no momento do próprio batismo. Com a ressurreição, Deus imprime no tempo o cunho da eternidade, no espaço da criação, o cunho do divino, no mundo mortal, o cunho da imortalidade, na morte, o cunho da vida.
4.3. A ressurreição também nos envolve a nós. Dom Hélder da Câmara dizia: “Depois que Cristo ressuscitou, ninguém tem o direito de andar triste”. Esta alegria é bem expressa na palavra que ouvimos.
Antes de tudo, na certeza de que o encontro com Cristo Ressuscitado é transformador. E a primeira grande transformação acontece na vida. “Irmãos, todos nós que fomos batizados em Jesus Cristo fomos batizados na sua morte. Fomos sepultados com Ele pelo Batismo” (Rm 6, 3). E «Depois de passar o sábado, Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé compraram aromas para irem embalsamar Jesus” (Mc 16, 1).
Tanto na leitura aos Romanos de S. Paulo como no evangelho, há referência a realidades que estão terminando, que indicam o fim, o tempo conclusivo, ou seja, a morte, qual último dia, no qual Deus descansou após a laboriosidade dos dias da criação. Ora é precisamente a partir destas realidades que assinalam, marcam e representam um fim que se inaugura algo de novo, uma nova etapa. O batismo marca o início, o começo da vida cristã, porque é pelo batismo que a vida divina vem comunicada ao batizando e o Espírito derramado nele. Mas este que é um início, um começo, consiste, em primeiro lugar, na participação na morte de Cristo, ou seja, na participação num fim. São Paulo, aliás, até esclarece que “se estamos totalmente unidos a Cristo pela semelhança da sua morte, também o estaremos pela semelhança da sua ressurreição” (Rm 6, 5). A nova vida da ressurreição acontece mediante a passagem pela morte, assim como o novo dia floresce a partir do crepúsculo do dia último, ou seja, o fim é sempre o começo de uma nova etapa, de um inaudito e imprevisível início.
Eis uma visão importante e cheia de esperança para a vida: para os cristãos, cada fim constitui um novo começo.
Outra grande pérola do evangelho é constituída pela pedra revolvida do sepulcro: eis o rosto da ressurreição. Quando as pedras do medo, do pessimismo, da indiferença, da dureza de coração forem revolvidas de nós e da nossa vida, então também em nós a ressurreição faz história.
E também a nós, hoje, quando procuramos a felicidade nas sepulturas da vida, acabamos por chorar as nossas perdas, os nossos fracassos e desilusões: «Não está aqui, ressuscitou… Ide… Lá o vereis» (Mc 16, 8): lá, não aqui.
+ Rui Valério, Bispo das Forças Armadas e Forças de segurança