- A Paixão de Jesus continua na cruz dos irmãos
Nesta tarde de sexta-feira santa vamos meditar a Paixão do Senhor, rezar as dores da humanidade, adorar a nossa própria cruz e a dos outros, e comungar Jesus, tornando-nos n’Ele um só corpo.
Frei Luís de Granada, frade dominicano do século XVI, notável escritor sagrado e pregador, que viveu a maior parte da sua vida em Portugal e está sepultado na Igreja de S. Domingos em Lisboa, num dos muitos sermões por ele pregados neste dia, aconteceu que subiu ao púlpito para pregar e começou com as mesmas palavras com que nós iniciámos a leitura da Paixão: “Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João”. Não foi capaz de dizer mais nada. Uma enorme emoção se apoderou dele, as palavras não saiam da sua boca, começou a soluçar… e, com o rosto banhado em lágrimas, desceu do púlpito sem dizer uma palavra mais.
Este testemunho diz-nos que a paixão de Cristo não é um acontecimento do passado, não é um simples facto histórico, tal como vem descrito nos quatro Evangelhos, mas um acontecimento atual, que diz respeito a toda a humanidade e continua hoje: a sua cruz é a nossa cruz e a sua crucifixão é a nossa crucifixão.
É exclusiva de João a palavra que Jesus dirige a Maria e a João: “Mulher, eis o teu Filho; Eis a tua Mãe” (Jo 19,25-27). João tinha referido Maria no início do ministério público de Jesus, nas bodas de Caná, quando lhe disse que ainda não tinha chegado a Sua hora. Ausente em todo o Evangelho, volta a mencioná-la aqui, no final, quando chegou a hora.
- “Tudo está consumado”
A expressão de Lucas “Pai, nas tuas mãos ponho o meu espírito” (Lc 23,46) adquire aqui outro matiz: “Tudo está consumado. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito” (Jo 19,30). Esta expressão pode ter um duplo sentido: entregar o espírito é perder a respiração, o sopro de vida que Deus insuflou nas narinas do primeiro homem, para o trazer à vida (Gn 2,7). Mas São João dá-lhe outro sentido: entregou o Seu espírito aos homens, isto é, o espírito do Filho não volta vazio para o Pai, comunica-se aos homens para os tornar filhos no Filho. Este é o fruto da sua morte.
Depois da morte de Cristo, o evangelista chama à atenção para um facto de que foi testemunha: da costela de Cristo, trespassado por uma lança, saiu sangue e água. O sentido está explicado em Êxodo 12,46. Este texto faz referência, em sentido literal, ao cordeiro pascal, que não se devia quebrar nenhum osso. Cristo é, assim, proclamado cordeiro pascal, iniciador da Nova Páscoa. Mas há também uma alusão a textos deste mesmo Evangelho “O meu sangue é verdadeira bebida” (Jo 6,55). “Se alguém tem sede, venha a mim e beba” (Jo 7,37). A morte de Cristo é miserável e humilhante, mas dela deriva a salvação de todos os homens. Por isso, também é a glória e exaltação de Cristo.
Este Deus, crucificado por mim, não permite que tenhamos uma fé egoísta, mas leva-nos a olhar para tantos crucificados por tantas injustiças do mundo de hoje. Assim é o Deus dos cristãos: um Deus débil, que não tem outro poder senão o seu amor incondicional.
Quem é discípulo de Jesus Cristo crucificado aceita o sofrimento como uma experiência transformadora. O sofrimento existirá sempre, mas o amor pode convertê-lo em dom oferecido a Deus e aos irmãos.
Recordemos os doentes e todas as pessoas abandonadas ao peso da sua cruz, principalmente as vítimas desta terrível pandemia e todos os que se sentem feridos no desejo de ser feliz, a fim de que encontrem na cruz de Cristo a força da esperança da vida e do amor de Deus.
Jesus é aquele que dá a sua vida por amor, para sempre e para todos.
Escutemos o que Jesus crucificado tem para dizer a cada um de nós:
Ontem estava crucificado contigo, mas hoje sou glorificado;
Ontem estava morto contigo, mas hoje estou vivo;
Ontem estava sepultado, mas hoje estou ressuscitado.
Ámen.
Catedral de Aveiro, 02 de abril de 2021
D. António Manuel Moiteiro Ramos
Bispo de Aveiro