Homilia do bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança na celebração da Paixão do Senhor
Irmãos
Há mais de um ano que permanecemos juntos a Cristo Crucificado a participar da Sua paixão e comungando do sofrimento da Sua Cruz.
A humanidade está a viver uma dramática via-sacra provocada pela pandemia, constituída por muitas estações cujos nomes são novos, mas que continua tão dolorosa como a que fora percorrida pelo nosso Redentor. Hoje, as estações são designadas por: “confinamento”, “trabalhava” (porque, entretanto, deixou de trabalhar, foi para o desemprego), “vivia aqui” (e agora vive na rua), “pobreza”, “fome”, “solidão”, “abandonado”, “morte”
Nunca, como atualmente, vivemos uma sintonia tão profunda entre a Paixão do mundo e a Paixão de Cristo. Nunca, como hoje, sentimos o quão intensa é a solidariedade da humanidade que sofre e o Cristo Crucificado. Dessa comunhão brota uma luz que nos mostra um novo rosto da cruz e da paixão do mundo e da humanidade.
Os caminhos da via-sacra, hoje, são as estradas do sofrimento e do cansaço, onde tantos dramas se revelam, nos corredores dos hospitais, nos trilhos dos cemitérios, pelas avenidas ladeadas de “sem-abrigo”, aos portões encerrados de postos de trabalho…
O Calvário, onde é implantada a Cruz, são os leitos do sofrimento, enfermarias superlotadas, idosos isolados nas suas casas ou em lares; são as humilhações de quem perdeu o emprego, as dúvidas de quem já não tem certezas.
E a Morte, revive-se em dramas de despojamentos vários, nas ausências das pessoas amadas, nas incertezas do hoje e do amanhã, no colapso da justiça e da paz …
Que nos revela a Cruz de Cristo sobre o mundo e a humanidade:
- Que a Cruz é o lugar por excelência da comunhão de Cristo connosco. Nunca foi tão como nós, como no Calvário: sofredor e mortal.
- A Cruz revela-nos que a vida é um caminho de despojamento, e não de acumulação. E Cristo, pouco-a-pouco, foi-se desprendendo de tudo, até ao despojamento total com a entrega do seu espírito – «E inclinando a cabeça entregou o espírito» (Jo 20, 30). A dádiva, o “desnudamento” é a condição para ser ressarcido pela glória do Espírito do Pai e com a vida divina. Ressuscitou o que morreu; recebera o que dera; reobteve o que ofereceu; recebeu o Espírito do Pai, porque dera o seu espírito; recebeu a vida divina porque entregara a sua própria vida.
- Jesus declara, mostrando-se a quem procurava, «Sou eu» e Pedro esconde-se com o «Não sou»: Cristo é e é por Ele que as coisas são, como é dito «Por Ele é que tudo começou a existir; e sem Ele nada veio à existência» (Jo 1, 3). A força do Ser faz-se fonte de ser; ou seja, o mistério da Paixão de Jesus é salvífico porque a Sua consistência e fidelidade em levar até ao fim a obra redentora, através do sacrifício da cruz, restitui-nos a vida plena e verdadeira. Pelo autor da vida foi-nos concedida uma vida que já não é acidental ou mera efemeridade destinada a ser devorada pelo tempo, mas uma vida eterna na força do amor eterno de Deus.
- Jesus fala, responde, não para se defender, mas para nos salvar. Lugar onde as suas palavras não evocam as obras, o que fez mas todas relativas à sua pessoa e identidade. Enfoque que por ser Ele a viver e a passar pelo que passa é decisivo para a salvação do mundo.
- Mas a tragédia reside na transformação de um drama numa comédia. Um Rei a ser ridicularizado. Um julgamento injusto porque não teve em conta as obras, ações. Distorção.
Mas a cruz, para além da força solidária que revela, e da capacidade luminosa de Cristo Crucificado em decifrar o mistério do sofrimento humano, também se ergue com uma incomensurável força de vida e esperança. Cristo vence a morte com a dádiva da sua vida pela nossa salvação. Libertou, a própria morte das amarras aterrorizadoras que a prendiam, a causa do pecado, libertando, desse modo, a humanidade do poder das trevas. Hoje, morrer é doar-se ao Pai e colocar-se nas suas santíssimas mãos.
D. Rui Valério
Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança