A dor não está só!

Homilia do arcebispo de Braga na Celebração da Morte do Senhor

“Desprezado e repelido pelos homens, homem de dores, acostumado ao sofrimento, pessoa desprezível e sem valor, suportou as nossas enfermidades, tomou sobre si as nossas dores, trespassado por causa das nossas culpas, esmagado por causa das nossas iniquidades.” Por tudo o que estas palavras podem significar “tornou-se para todos causa de salvação eterna”.

É nesta consciência que vamos olhar para o mundo da dor e do sofrimento, para acolher com outra convicção mais um desafio do Programa Pastoral “abrir os olhos para as novas formas de pobreza e comprometer as comunidades na realização de promessas e proximidade e de solidariedade”.

O Santo Padre, na sua mensagem para a Quaresma, recorda o que São Mateus nos deixou como palavras de Jesus: “vamos subir a Jerusalém” (Mt 20,18). Subamos também nós nesta tarde de Sextafeira Santa. Tomemos consciência do que aconteceu no passado e sintamos que a História se repete. Devemos ter capacidade para extrair lições: “Jesus, ao anunciar aos seus discípulos a Sua Paixão, Morte e Rssurreição como cumprimento da vontade do Pai, desvendou-lhes o sentido profundo da Sua missão e convida-os a associarem-se à mesma pela salvação do mundo” (Francisco, Mensagem da Quaresma).

O Calvário, no dramatismo de uma morte cruenta, mostra ao mundo o modo como Cristo viveu a Sua missão. Não se trata de um acto heróico, de um solitário que grita o abandono de todos, inclusive do Pai. O Seu grito de “nas Tuas mãos entrego Meu espírito” tornou-se um convite para que os seus seguidores não o deixassem só mas prosseguissem o desígnio Salvador de Deus. Ele quer a salvação da Humanidade como experiência a viver ao longo dos tempos. A evidência da história do Calvário é a morte de alguém sem grandes resultados aparentes. Mas aquela morte não o é pois foi experimentada para que os outros “tenham vida e a tenham em abundância”. Quem triunfa verdadeiramente é a vida. É ela que está em questão. Para isso Cristo morreu e para isso devem viver os seus discípulos. Estes encontram a sua identidade no amor mas este deve ser oblativo, de permanente entrega e continua dedicação. A história da Igreja, no passado e no presente, está repleta destas páginas brilhantes de entrega sem nada pretender. Hoje, a Igreja vive para que a vida aconteça.

Se já o ano passado vivemos este momento de morte, vivido sem manifestações exteriores, este ano sentimo-nos mais carregados e dobrados sobre a Cruz que vai sendo mais pesada. Convido as comunidades cristãs a que coloquem no alto do Calvário tudo o que há de dor e sofrimento para que

vá acontecendo, momento após momento, um trabalho a mostrar sinais de vida que nem sequer a morte pode merecer.

Trago para esta celebração as vítimas do Covid-19, no espaço da nossa Arquidiocese, assim como no mundo inteiro. Foram vidas ceifadas num imprevisível surto, galopante e chocante. Tudo tendo acontecido num dramatismo semelhante ao de Cristo no alto do Calvário. A morte é dura. Não ter ninguém para acariciar e oferecer conforto é tremendamente mais complicado. Nada de despedidas a a quem confiar as últimas vontades. Nenhuma mão de samaritano a mostrar proximidade. Morrer só é muito duro.

Depois a dor da perda e da separação tornou-se mais aguda pela impossibilidade de fazer o luto. E tudo foram restrições. Os amigos não estiveram presentes. Os abraços de coragem não foram dados. As lágrimas escorreram sem ninguém para as partilhar. Estes momentos permanecerão pois a ausência de sinais de amor dificultarão uma reconciliação com a vida.

Se a morte foi a experiência de Calvário para os que morreram vítimas da Pandemia, muitas outras mortes aconteceram durante este ano marcadas por uma austeridade incompreensível mas necessária. A morte aconteceu por causas naturais mas ninguém nos consegue explicar o aumento significativo de casos que muitos atribuem ao isolamento, as depressões motivadas pelas condições em que fomos obrigados a viver. Se a morte aconteceu, os sofrimentos e dores mostraram uma presença contínua durante os últimos tempos. Presenciamo-la na terceira idade, com o sentimento de inutilidade mesmo quando em fase funcional; na saúde mental com situações a multiplicarem; as famílias em stress; ruptura relacional e aumento de isolamento afectivo, mesmo que estando juntos; numa excessiva burocracia e informatização que impede o acesso dos mais iletrados aos apoios sociais; no desconsiderar os direitos dos mais débeis que, dia-a-dia, se tornam direitos débeis; nas famílias com incapacidade de acompanhar os seus doentes, experimentando um difícil equilíbrio entre o risco e a proximidade; nos cuidados paliativos a que nem todos têm acesso e nas acções paliativas obscurecidas por uma medicina de emergência; aos sem-abrigo para quem abrigar não é só uma questão de tecto; nas dificuldades na vida familiar com filhos em idade escolar e com filhos com deficiência; nas comunidades paroquiais com as igrejas a encerrarem e a não permitirem experiências comunitárias de fé estando a criar, entre outras realidades, dificuldades na sustentabilidade económica e manutenção do património religioso.

As trevas densas das três horas da tarde de Sexta-feira Santa são contrabalançadas pela presença efectiva de Maria e João, juntamente com Maria Cléofas e Maria Madalena que “estavam junto da Cruz”. Pouco fizeram. A sua presença teve um preço incalculável.

A Igreja Samaritana tem de ser uma Igreja de presença, de proximidade. Terá de se colocar bem perto de todos os calvários humanos. Pode pensar que a suas forças são diminutas, que não consegue chegar onde a sua presença é necessária. Com muito ou pouco, ela deve partir na disposição de dar tudo através de um amor incondicional, totalmente oblativo e nunca marcado por qualquer tipo de interesse. É a cruz de Cristo que o exige. Ela contém um projecto de salvação da Humanidade. Por ela nada pode ser esquecido ou ficar na mesma. É luz que denuncia situações inumanas e alento para nunca se deter perante as inúmeras dificuldades.

O Papa Francisco falando num amor que deve chegar a todos, em todos os lugares e sem medo, estabelece um conjunto de atitudes que devem orientar esta entrega.

Nem sempre os programas pastorais deixam marcas na vida dos cristãos e das comunidades. Em circunstâncias que rodeiam todo um ano onde a pandemia impôs a sua tirania, é de esperar que algo de novo aconteça. Assumimos o paradigma do Bom Samaritano e quisemos cuidar do próximo com mãos samaritanas. Precisamos de acolher cada um dos verbos da parábola para com eles elaborar uma verdadeira gramática que ensine a ler o quotidiano da vida numa linha de um amor oblativo marcado somente pela alegria de amar. Junto da cruz de Cristo, na hora da Sua morte, coloco um itinerário a acordar para uma maior sensibilidade:

– Um samaritano ia de viagem com os seus projectos e intenções;
– Chegou perto de um homem desconhecido que se encontrava quase morto;
– Viu e não fez de conta, passando ao lado de algo que iria perturbar os esquemas;
– Teve compaixão não ficando num amor teórico e de possíveis abordagens teóricas;
– Aproximou-se dele não querendo ficar longe dos problemas mas para conhecer realmente a situação;
– Fez-lhe o curativo recorrendo ao que tinha no momento e para o qual não estaria programado;
– Derramando azeite e vinho nas feridas como o melhor curativo que lhe poderia oferecer naquela circunstância de abandono e desgraça;
– Colocou no seu animal através de uma operação que não seria fácil concretizando e com a inevitabilidade de perturbar os seus espaços;
– Levou-o a uma pensão, como o melhor que lhe poderia oferecer naquele momento e na ausência de outras mais adequadas;
– Cuidou dele antes de partir para o que teria motivado a sua viagem;
– Pegou em duas moedas de prata e entregou as ao dono da pensão, mostrando que o seu amor lhe estava a exigir a comunhão e partilha;
– Recomendou-o, antes de partir, dizendo que tudo pagaria no seu regresso, como sinal de um amor que não fica a meio do caminho mas vai até às últimas consequências.

Todos estes verbos recordam as diferentes nuances que a caridade cristã deverá ter no cuidar do próximo. Não são gestos mecânicos ou estipulados genericamente. Cada situação exige cuidados diferentes para que só o amor vença os sofrimentos.

Uma história, uma parábola, a deixar muitas interpelações com o intuito de fazer, como já tem sido dito, que a nossa Arquidiocese seja uma estalagem, um hospital de Deus, que está atenta a todas as contingências e a procurar encontrar soluções. No seu coração há lugar para todos mas as diferentes formas de pobreza e sofrimento ocupam o primeiro lugar nas intenções e nas atenções. “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às própria seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com o ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos”.

A Igreja não é uma estrutura. Talvez tenhamos perdido muito tempo a defender esquemas tradicionais. É uma realidade viva que passa pela vida dos seus membros. Sem estes ela não existe.

Daí que devemos tomar consciência de que a estalagem nunca poderá prestar serviços de qualidade na promoção da dignidade humana sem intérpretes activos e responsáveis. Uma estalagem vale pelos estalajadeiros e não pelas condições exteriores e visíveis. As aparências enganam. Só o serviço de cada um, por insignificante que seja, permitirá que os feridos da Humanidade possam encontrar um abrigo seguro nos nossos espaços. Importa ser bom samaritano, sabendo que este é Cristo e que o seremos se nos aproximarmos dele, nos deixarmos tocar pelo Seu amor, aprendendo com Ele a gastar a vida para que os outros tenham vida. Só na escola de Jesus aprenderemos a arte de servir e nunca nos conseguiremos aproximar do próximo em desejo de cuidar dele se antes não nos aproximarmos de Jesus. Maria e João, com Maria Cléofas e Maria Madalena conseguiram estar ao pé da Cruz onde estavam presentes todos os males da Humanidade porque estavam perto de Jesus, num amor de profunda identidade e comunhão. Serei samaritano, numa Igreja Samaritana, se seguir os passos do Bom Samaritano. Não procuremos lições noutras escolas. Há muitas experiências na sociedade. Não somos mais uma. Com Cristo, nunca com vergonha, devemos aprender a gastar os nossos dias pelos outros.

Neste dia em que quis colocar junto da Cruz de Cristo as situações de dor e sofrimento para reconhecer que o mundo do sofrimento espera pela Igreja. Não poderei deixar de sublinhar que se Cristo precisou de um Cireneu para levar a Cruz e de mulheres para lhe purificarem o rosto tornando a caminhada menos pesada, também reconhecemos muito heroísmo anónimo nos cientistas na sombra, nos profissionais de saúde e prestadores de serviços que viveram e vivem as exigências desse amor oblativo. Não merecem só os elogios e as palmas. Precisam de ser imitados e com eles darem o corpo a uma sociedade mais humana quando sofre e, sobretudo, porque sofre. Não eliminaremos o sofrimento. Cristo podia ter fugido a ele como fugiu a outras situações. Abraçou-o. Tornou-o fonte libertadora e salvadora. Com Ele não o teremos, mas reconhecemos que só uns com os outros e uns para os outros avançaremos com serenidade dolorida mas feliz. A dor não está só. Cristo assumiu-a. O cristão vai prosseguindo a sua missão. Com presença, proximidade, compaixão e ternura venceremos as dificuldades de sempre e a que a pandemia está a dar um enfoque especial. Com a pandemia exercitamos exemplarmente uma caridade operativa. Deverá continuar no após pandemia.

† Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz

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Agência ECCLESIA

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