«O que mudou efetivamente foi o perfil da pessoa que ficou em situação de pobreza» – Eugénio Fonseca

A Cáritas Portuguesa vai celebrar de 8 a 15 de março a sua semana nacional, com o tema “Cáritas é Amor”, promovendo iniciativas que visam dar a conhecer o seu trabalho no combate à pobreza e exclusão social. A Ecclesia e a Renascença conversam com o presidente da organização católica, Eugénio Fonseca, sobre os principais desafios que se colocam a quem trabalha pela erradicação da pobreza.

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Fotos: Joana Bougard (Renascença)

 

A Cáritas acaba de apresentar um relatório que mostra que há “barreiras e obstáculos consideráveis” no acesso aos principais direitos sociais, sobretudo para os grupos mais vulneráveis da população. Está em causa o acesso à habitação, aos cuidados de saúde, à educação, ao emprego e a outros serviços básicos. Os resultados negativos deste documento surpreenderam-no, de alguma forma?

Não, porque no dia a dia nós constatamos estas realidades, a partir dos atendimentos de proximidade que existem na maior parte das nossas paróquias espalhadas pelo país. Este relatório fundamenta-se nesses atendimentos, o que lhe dá uma objetividade bastante grande, e também a credibilidade que estes relatórios devem ter, para que se possa tomar maior consciência maior dos problemas que estão em causa.

Portanto, não houve surpresa. Eram preocupações que estão agora vertidas para este documento, que foi feito num contexto comparativo com outros 16 países da Europa, o que é bastante importante, portanto temos aqui uma visão muito mais alargada do que aquela que se restringe ao espaço nacional.

 

Na apresentação do relatório foi dito que os portugueses são demasiados condescendente, e até indiferentes, perante a pobreza. O que é que tem estado a falhar para que a erradicação da pobreza não seja uma prioridade social e política?

Efetivamente há pouca pressão por parte da população, e das instituições que a representam. Porquê? Porque temos um problema ancestral que é o preconceito à volta deste problema social. Ainda predomina em muitas mentes – e mentes que deveriam ter uma capacidade reflexiva mais apurada – a ideia de que as vítimas da pobreza são os culpados da situação em que se encontram. Há preconceitos que derivam de realidades que o país tem, e não se pode julgar que são os pobres que as vão resolver…

 

É uma narrativa que também é muito alimentada pelo populismo, politicamente.

Certo, porque muitas vezes tem a ver com situações que se conhecem, que existem de facto, com formas de estar que as próprias condições de vida geraram.

Nós temos em Portugal, relativamente à pobreza, uma situação que é inadmissível – ainda mais quando sabemos que existem tantas organizações relacionadas com os fenómenos sociais e económicos! – que é termos gente que passa gerações seguidas na pobreza. E isso tem a ver com o sistema.

É muito preocupante: o próprio sistema conforme está estruturado, apela a uma relação de dependência dos serviços de proteção social. Colocamos muitas vezes essa característica da subsídio dependência nas pessoas, dizendo que elas se habituaram a isso e não procuraram superar as causas dos seus problemas, mas o próprio sistema – as políticas de proteção social, os dinamismos das próprias instituições -, conforme está tem metodologias que substituem as pessoas na própria organização das suas vidas. Ditam receitas, em vez de envolverem as pessoas.

 

Portanto, o sistema faz com que as pessoas criem dependências e não as ajuda a dar a volta à situação?

Porque não há uma forma de corresponsabilização na medida das capacidades das pessoas.

 

E isso era urgente ser revisto?

Era importantíssimo, porque trataria uma questão que é crucial na eliminação da pobreza, que é a autoestima. Muitas vezes a dificuldade que se tem na superação da pobreza é a pessoa julgar que não é capaz de, não serve para, e habitua-se à forma como o sistema se organiza.

Até mesmo nós, na Igreja, os nossos grupos deviam estar mais interligados, devia haver uma relação colaborativa maior, para evitar que certas pessoas – e é uma crítica que se faz – percorram tantas vezes diversas paróquias para verem satisfeitos os seus bens de substância.

 

Podemos dizer que o conceito de pobreza mudou em Portugal? Há uns anos pobres eram os mais indigentes da sociedade, mas depois da crise, surgiu uma nova classe de pobres, nomeadamente na classe média – as pessoas não ganham o suficiente para fazer face às despesas. Os pedidos de ajuda destas pessoas que até trabalham, mas são pobres, tem aumentado junto das Cáritas?

A pobreza em si mesmo, nas suas características, não mudou. Ser pobre é estar privado de recursos que são necessários para uma substância digna, e arranjou-se uma bitola que é mediana do rendimento de cada país, e abaixo dessa mediana considera-se que a pessoa é financeiramente pobre.

 

A questão é precisamente essa – temos o salário mínimo, de que falamos sempre, mas também temos o salário médio, e os salários em Portugal não têm acompanhado este crescimento da economia…

Para a maioria. Portanto, o que mudou efetivamente foi o perfil da pessoa que ficou em situação de pobreza. Depois da crise a pobreza entrou pela classe média adentro. É uma classe média baixa, que podemos dizer que é a classe média mais popular, mas que tem condições que há 15 anos não tinha, em termos de habilitações académicas, de capacitação. Por exemplo, ao nível da conexão com o mundo, a internet veio trazer uma maior abrangência de conhecimentos, e os nossos atendimentos sociais têm de se tornar muito mais capazes, porque as pessoas já trazem consigo um conjunto de informações, e vêm à procura da ajuda para poderem aproveitar as oportunidades.

Também na questão do emprego, as pessoas o que querem é que reconquistar o posto de trabalho que perderam, porque sem dúvida que a fonte de rendimentos para a maior parte das pessoas são os salários. Agora, para a criação de trabalho, optou-se pela redução do salário…

 

O relatório da Cáritas também mostra preocupação com os desempregados de longa duração, e a incapacidade de voltarem ao mercado de trabalho.

Há duas realidades na relação do trabalho e da pobreza: primeiro os que trabalham e continuam pobres – e isto veio evidenciar como os salários estão muitos desproporcionados, e a desproporção torna-se mais escandalosa quando se percebe os desníveis salariais entre aqueles que ocupam lugares de topo e os que operacionalizam a produção. É este desnível, que é escandaloso, que gera a profundidade das desigualdades que sentimos em Portugal. Depois temos a realidade dos desempregados de longa duração, que é um conceito que nasceu na crise que assolou o Vale do Ave e a Península de Setúbal. Quem está há mais de um ano sem conseguir um novo posto de trabalho é considerado desempregado de longa duração, e o grande problema é que isto se tornou um chavão classificativo dos patamares de desempregados. O desempregado de longa duração está numa prateleira…

 

Deixa de se olhar para essa pessoa?

Já não se olha com tanta acuidade. Também é verdade que aqueles que procuram emprego pela primeira vez, os jovens, também têm consequências muito negativas quando não acedem em tempo útil – e estou a referir-me à idade – , mas nos desempregados de longa duração é uma faixa etária que já não interessa ao mercado de trabalho, e muitos também não têm as habilitações profissionais (necessárias), dado que a produção na indústria se faz a partir de meios tecnológicos que já são muito avançados para o conhecimento desses desempregados de longa duração.

Eu não sei como é que vamos resolver isto, porque sabemos a fragilidade da Segurança Social. Não pode ser com subsídios – e com o montante de subsídios médios que nós temos – que estas pessoas, que ainda têm família a cargo, conseguem sobreviver. Estamos aqui perante um problema que a sociedade ou resolve dignamente, ou vai ter que se confrontar com uma tensão social, e pessoal, que depois se reflete nos gastos com a saúde, porque muitas destas pessoas já estão com perturbações na ordem de saúde mental, porque recusam a inatividade em que estão, mas há muitos anos que ninguém encontra uma resposta para elas.

 

Umas das principais fatias da despesa das famílias é com a habitação, e este foi o indicador mais problemático revelado no relatório da Cáritas, que diz que é preciso “promover habitação acessível e controlar os preços, não só de venda e compra, mas também de arrendamento, para os mais vulneráveis”. Isto ainda não está a ser feito, apesar de já termos uma Lei de Bases da Habitação, desde o ano passado?

A Lei de Bases da Habitação tem uma fragilidade que é estruturante…

 

Qual?

É o consenso que tem de existir entre quem oferece a habitação e quem necessita dela, entre proprietário e inquilinos. Há aqui problemas que a Lei de Bases não está a resolver, por um lado o controlo das rendas – devia haver um referencial legalmente definido para um teto máximo, que tivesse sempre a ver com as características da própria habitação que se está a pôr no mercado de arrendamento. Porque não é só o preço das casas não ser compatível com os rendimentos das pessoas, é o tipo de casas e as condições de habitabilidade, que são muitas vezes desproporcionadas em relação ao preço que se pede.

 

Poderíamos pensar sobretudo nas situações de Lisboa e Porto, mas o relatório fala em várias partes do país.

Já nos chegam ecos de outras regiões do interior do país. Claro que isto veio a partir do aumento do turismo, que foi algo muito positivo. A seguir à crise, foi uma alavanca para o crescimento económico, porque de outra forma não teríamos recuperado, tão facilmente, mas esse turismo obrigou à criação de outras condições, porque o país não estava preparado para um fluxo tão grande. Aí, inventam-se os alojamentos locais, alguns proprietários viram aí uma fonte de rendimento muito mais acessível, muito mais rentável; algumas pessoas tiveram de abandonar essas casas, coercivamente, para que os seus proprietários as colocassem em alojamento local.

Essas pessoas têm-nos procurado – e muitas delas são pessoas idosas -, porque não conseguem casas, mesmo que seja um T1 ou um T0, por preços que sejam conformes às possibilidades das pensões, das reformas que auferem.

 

Já houve algumas restrições que a própria lei impôs, também o Orçamento de Estado para este: restrições ao alojamento local, regras para a forma como se fazem os despejos… São suficientes?

Não são suficientes porque nós estamos deficitários de um número significativo de habitações para as pessoas que precisam. Não são só aqueles que ficam desalojados, são também aqueles que querem autonomia pessoal e familiar.

 

Isto não pode ficar só nas mãos dos privados…

Aquilo que a Lei de Bases aponta, mas que depois não efetiva, é que o Estado deve ser regulador. Eu não queria que o Estado fosse um Estado polícia, por via, muitas vezes, de um controlo fiscal; gostava que fosse um Estado regulador, que criasse condições motivadoras para que proprietários coloquem as suas casas à disposição e sejam mais criteriosos na forma como gerem as casas que têm para arrendar – porque existem em Portugal 700 mil casas devolutas.

 

Esse é um problema que continua por resolver.

Algumas estão devolutas porque não estão em condições de ser habitadas. Outras porque as pessoas têm algum receio de que essa habitação possa não ser rentável, para os encargos que têm. Porque muitos proprietários, há que reconhecer, são pobres, herdaram essas casas já com rendas excessivamente baixas, que também as temos.

Muitas vezes há uma desmotivação, porque os impostos sobre a posse desses imóveis fazem com que se aumentem os preços das rendas. Aí, a Lei de Bases da Habitação não foi muito assertiva.

Na regulamentação, o que se tem de conquistar é uma concertação entre proprietários e inquilinos.

 

Para além habitação, o relatório também mostra que há muitos obstáculos e dificuldades no acesso das famílias às creches, para crianças até aos 3 anos, e que em muitas zonas do país há uma desigualdade entre a oferta e a procura… são dados preocupantes?

O relatório aponta para a falta de creches e deve haver aqui um compromisso das organizações da sociedade civil, que estão vocacionadas para isso. Algumas estão, até, a necessitar de uma reconversão no seu objeto social, porque deixaram de ter justificação as respostas que estavam a dar, para idades mais velhas. A demografia tem feito que algumas instituições não tenham utentes e isso pode ser reconvertido para creche, desde que não se criem também exigências, que são muitas vezes ilógicas, relativamente às condições do país e mesmo àquilo que é necessário para uma colaboração no crescimento sustentado e integral das crianças. Há que criar mais creches e essa criação advém da construção de mais equipamentos, mas também da reconversão dos que já existem.

Sabemos que é uma resposta que, para as instituições sociais, se torna muito cara, porque – e bem – é exigida uma proteção maior por parte dos adultos relativamente às crianças.

 

O número de profissionais por sala tem de ser maior…

Isso desequilibra, em termos dos custos, aquilo que é o custo médio destas repostas. Aí, o Estado tem de criar apoios.

Quando a mulher fica engravida, a família inscreve-se logo numa creche, para ficar em lista de espera, muitas vezes até pagando antecipadamente essa situação, o que é injusto. É urgente, não só para darmos respostas às necessidades das famílias, mas também porque sabemos que é muito profícuo para a criança que ela possa ter acesso a um equipamento desta ordem.

 

A Semana Nacional da Cáritas vai decorrer de 8 a 15 de março, incluindo várias atividades locais e o peditório público, que vai decorrer a partir de quinta-feira, dia 12. Porque é que é importante os portugueses contribuírem?

Para este atendimento de proximidade, é o único financiamento que a Cáritas tem.

 

É um momento importante do ano?

Dele depende a capacidade de resposta que a Cáritas pode dar, juntamente com as coletas dos ofertórios das Eucaristias, nesse domingo.

 

Os portugueses podem acompanhar a forma como as Cáritas aplicam o seu dinheiro?

Em primeiro lugar, recordo a quem nos ajuda que tem de saber que está a dar para a Cáritas. Portanto, quem anda a pedir tem de estar identificado, tem de se requerer o selo para a lapela, evitando oportunismos, como muitas vezes acontece nestas circunstâncias.

Todo o dinheiro que se angaria – e este peditório está autorizado pelo Governo – fica para ajudar, durante o ano, nas rendas, antes que a pessoa seja despejada; na saúde, que é fundamental; no pagamento das próprias creches e infantários; no pagamento de próteses auditivas e oculares, que são muitas vezes pedidas por famílias que não têm como suportar o custo; ajudas no campo da deslocação das pessoas, a tratamentos médicos ou consultas, porque deixaram de existir apoios. Tudo isto se destina, e só, a este tipo de necessidades.

 

Quantas pessoas é que a Cáritas ajuda, por ano?

Ainda sem os números das paróquias, em 2019 situámo-nos na ordem das 121 mil pessoas. Não quer dizer que todas tivessem acesso a tudo o que desejavam, porque o valor que se recolhe é sempre escasso. A nota é que aquilo que se pede nas ruas de uma determinada cidade, fica aí, para as pessoas que habitam nessa cidade ou na diocese respetiva.

É um peditório nacional, mas nada disso reverte para a Cáritas nacional, fica sempre para o local. As pessoas estão a ajudar os seus concidadãos mais próximos.

 

Nesta Semana Nacional da Cáritas vai também ser apresentado o 1º Caderno de Intervenção Sociopolítica, com a reflexão do Núcleo de Observação Social da Cáritas, que já tem alguns anos… Que iniciativa é esta? O que é que vamos encontrar nesse Caderno?

Em primeiro lugar, a Cáritas não se pode dispensar de estar atenta às necessidades diárias e urgentes das pessoas. Há quem diabolize isso, chamando-lhe de assistencialismo, mas eu costumo dizer que quem faz essa rotulagem é quem nunca sentiu os problemas das pessoas. Claro que o assistencialismo é mau, mas a assistência é um patamar de intervenção social.

A Cáritas tem procurado ir mais além, dando a sua colaboração para que as causas dos problemas, que trazem as pessoas até nós, sejam superadas. Há um grupo de pessoas, com uma preparação reconhecida, em vários domínios, que se reúne pelo menos uma vez por mês, analisando os problemas que chegam através dos atendimentos sociais das paróquias e do estudo que podem fazer, mais teórico, de relatórios que vão sendo publicados. Sistematicamente, ao longo de vários anos, atravessando já vários governos, temos feito propostas para conseguirmos alcançar a transformação de situações menos adequadas.

 

Essas propostas têm tido alguma receção?

Nada. Como, às vezes, nem sequer resposta têm, aguardamos e fomos insistindo. Há propostas que se repetem, mas posso dizer que nem uma das propostas foi atendida.

 

Estamos a falar de propostas feitas em que período?

Nos últimos 12 anos. O que nos preocupa é que nem sequer tivesse havido abertura para discutir essas propostas. Entendo que elas possam ser vistas como desinteressantes, porque não são megalómanas; o Estado tende a dedicar-se mais a respostas de grande vulto e que envolvem milhões de euros, mas estas propostas têm em si a potencialidade de envolver, na linha da subsidiariedade, as organizações que estão mais próximas dos cidadãos. Uma das propostas tem a ver com a necessidade de se ativar as redes sociais nas Juntas de Freguesia, mais do que propriamente nas Câmaras.

Uma das caraterísticas das propostas que fizemos nas várias áreas é que não eram muito onerosas. Tivemos esse cuidado, com os economistas que pertencem a este núcleo, sabendo nós das limitações orçamentais que o Estado tem. O que nos deixou preocupados foi o não terem tido acolhimento por parte das instâncias a que foram dirigidas.

 

Tornar público este caderno reivindicativo quer ser uma chamada de atenção?

Sim. Para os políticos de agora, elas são atuais. E também para que a população portuguesa perceba quais são as preocupações que a Cáritas tem, que perceba que a Cáritas não está apenas no campo da denúncia, mas também no anúncio de alternativas aos problemas que existem.

Tornando público este caderno, as pessoas poderão saber onde posicionar-se, para dar o seu contributo.

 

Para além de tornar público o caderno, vão entregá-lo aos partidos, ao Governo?

Queremos que chegue a essas instâncias antes da conferência de imprensa que vai acontecer na próxima terça-feira.

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Agência ECCLESIA

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