Queridos Padres,
Meus irmãos,
Não vos posso esconder a minha comoção ao presidir pela primeira vez a esta celebração que nos é, felizmente, tão querida. Na impossibilidade de, por motivos pastorais, concelebrarmos a Missa da Ceia do Senhor da tarde deste dia santo — havemos de a celebrar, com não menos união entre todos, mas junto do povo que nos está confiado, iniciando desse modo o Tríduo Pascal — na impossibilidade, dizia, de concelebrarmos no mesmo lugar físico a Missa da Ceia do Senhor, quis a sabedoria da Igreja convidar-nos para, nesta Eucaristia de consagração dos santos óleos, tomarmos consciência do presbitério que somos, da missão que Jesus nos confia, a cada um e a todos, sinais visíveis da Sua graça, sacramentos vivos e para sempre da Sua presença no meio da história.
Ver-vos assim, reunidos e unidos, diante do povo, em redor deste indigno servo que o Senhor colocou à frente da nossa Igreja diocesana e, sobretudo, em redor da mesa eucarística, não pode deixar de me fazer estremecer de alegria, e de fazer brotar do meu coração um hino de acção de graças — que não é menos um hino de súplica para que Ele não me abandone, e eu possa ser o pastor que a nossa diocese necessita.
Queridos Padres,
Escutávamos, na leitura evangélica, as palavras de Jesus: “cumpriu-se hoje a passagem da Escritura que acabais de ouvir”. Deixai que, por alguns momentos, vos proponha uma meditação acerca do que pode representar para cada um de nós este “hoje” a que Jesus se referia.
1. Chamado, como bom judeu que frequenta a sinagoga, a fazer a leitura dos profetas, Jesus depara-se com o célebre trecho retirado de um dos cânticos do Servo de Isaías: “O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque o Senhor me ungiu, e me enviou a proclamar a Boa Nova aos pobres” (Is 61,1). O Servo vê-se ungido e enviado. Melhor: ungido para ser enviado. E no cumprimento destas realidades consiste o seu serviço.
Ele é “ungido”. Desde os tempos do Êxodo que os sacerdotes eram ungidos (cf. Ex 29,7; 30,22-33). Tratava-se de derramar sobre a sua cabeça o óleo da unção. Desse modo, um membro do povo de Israel ficava consagrado para exercer um sacerdócio em honra do Senhor (cf. Ex 30,30). Esta unção era também própria dos reis: Saúl foi ungido pelo Profeta Samuel (1Sam 10,1), e já nessa ocasião o Profeta afirmou que a unção com óleo era sinal de uma outra unção, de uma eleição realizada pelo próprio Deus: “Este é o sinal de que o Senhor te ungiu como chefe da sua herança” (1Sam 10,1). Ou seja: a unção física com o óleo era sinal de uma outra unção, realizada por Deus, que capacitava o rei para desempenhar a função de chefe de todo o Israel. Do mesmo modo, também David foi ungido: “Samuel tomou o vaso de azeite e ungiu-o na presença dos seus irmãos. O Espírito do Senhor precipitou-se sobre David, a partir desse dia e também depois” (1Sam 16,13).
Assim, quando, séculos mais tarde, Isaías vê ao longe e traça um esboço da figura do Servo de Deus e da sua missão (Is 61,1), já não sente necessidade de fazer referência ao óleo, mas tão-simplesmente à unção com o Espírito do Senhor. O Espírito toma posse do Servo, de modo a que ele possa exercer cabalmente a missão que lhe é confiada: anunciar o Evangelho aos pobres, curar os corações atribulados, proclamar a redenção aos cativos e a liberdade aos prisioneiros, proclamar o ano da graça do Senhor. O Espírito confia uma missão e torna aquele que é escolhido capaz de a realizar.
2.Ao ler o texto de Isaías perante os seus conterrâneos reunidos na Sinagoga, Jesus proclama diante de todos que o esboço da figura do Ungido que Isaías realizou, adquiria finalmente uma verdadeira realização. O que era entrevisto de longe e de forma pouco clara, adquiria agora clareza evidente na sua própria pessoa. Isaías anteviu; Jesus realiza. Ele é o Servo, o Ungido, o Messias, o Cristo. Toda a sua pessoa é manifestação do Espírito. Jesus não foi apenas ungido num determinado momento, mas Ele é, desde a eternidade, o Ungido por excelência — todo Ele, todo o seu ser, todo o seu agir, todas as suas palavras são manifestação do Espírito, e realização da missão que o Pai lhe confiou.
Ousadia grande — única! — a de Jesus quando aplica a si mesmo a passagem do Profeta. Que a profecia clamasse por cumprimento, era esperado. Mas o tempo da sua realização era sempre reenviado para um futuro distante. Que, num povoado longínquo da Galileia, um simples carpinteiro, conhecido de todos, ousasse afirmar que era de si que o Profeta tinha falado, e que naquele preciso instante a palavra do Profeta encontrava a sua realização, não poderia deixar de, no mínimo, desencadear nos presentes reacções de ira e mesmo de condenação à morte (cf. Lc 4,28-30).
E, no entanto, tempos depois, a ressurreição de Jesus, vencedor da morte, Senhor da Vida, haveria de O mostrar não apenas como Aquele em quem se cumpriu aquela determinada passagem do Profeta, mas como Aquele em quem se cumpriam todas as Escrituras — haveria de o mostrar como o centro da história, o hoje eterno de Deus, no seio do tempo.
Jesus é o hoje de Deus: Aquele para onde caminham todos os tempos, culturas e civilizações; Aquele de onde parte o sentido último e definitivo da própria vida humana — de todas as vidas humanas, da existência de cada um de nós.
É por causa deste hoje — que apenas Deus pode pronunciar com toda a verdade no seio da história — que aquela mesma palavra de Jesus, longe de ficar prisioneira de um passado, continua a ser proclamada no nosso tempo com todo o seu vigor e actualidade: “cumpriu-se hoje a passagem da Escritura que acabais de ouvir”. Hoje, Jesus, o Ungido, o Messias, o Cristo do Pai continua a proclamar o Evangelho, a realizar a salvação no seio da história — aqui, bem presente no meio de nós que celebramos a Eucaristia nesta Sé do Funchal. E este hoje significa igualmente a realização da sua missão de anunciar a Boa Nova aos pobres, proclamar a libertação aos prisioneiros, a vista aos cegos, a liberdade aos oprimidos.
3.A este hoje que atravessa a história, que lhe dá qualidade divina e permite a salvação de todos e cada um dos seres humanos, de todos os tempos e culturas, a este hoje divino que apenas o Deus feito Homem pode pronunciar plenamente, o Senhor associa homens frágeis e pecadores, dando-lhes a participar da sua unção, do seu sacerdócio, enviando-os a celebrar o memorial da sua paixão, capacitando-os para dizerem com toda a verdade as palavras da Última Ceia, enviando-os a espalhar o seu perdão. Não por sua causa ou para seu deleite, mas por causa de uma humanidade — os homens e mulheres do nosso tempo — a quem Ele não desiste de oferecer a salvação; a quem Ele não desiste de proclamar o ano da graça do Senhor.
Nunca julguemos, queridos irmãos sacerdotes, que são nossas as capacidades ou a missão de que somos investidos. Por nós, por muito sábios que porventura sejamos; por muito bons e clarividentes que nos julguemos ou que nos pensem os nossos semelhantes, nunca deixaremos de ser pecadores e frágeis, incapazes de pronunciar com verdade o “hoje” de Deus.
Repito: apenas Jesus o pode fazer. Mas Jesus quer proclamar o hoje de Deus, connosco e por meio de nós. E essa vontade divina, esse olhar que repousou sobre nós e nos escolheu por motivos que apenas Ele conhece, só nos pode tornar humildes e conscientes das nossas fragilidades, para que em nós, no nosso ministério, no nosso pensar, agir e falar, no nosso ser apareça de um modo mais evidente e claro, a pessoa de Jesus.
Hoje como em todos os tempos, Ele vem ao encontro do mundo, ao encontro de todos os seres humanos, quaisquer que eles sejam, mas particularmente dos pobres, dos que têm o coração atribulado, dos cativos e prisioneiros, enredados nas malhas de tantos vícios e pecados. A esses urge que chegue a notícia do “hoje” da graça do Senhor, que chegue o Evangelho.
Nos nossos dias, um Padre é solicitado por várias tarefas, muitas em si boas e que integram a sua missão mas que não raras vezes o afastam do centro da sua existência. E é tentado por tantos outros pensamentos que o podem desviar daquilo que é, e das tarefas que o Senhor lhe confiou: são tentações do poder (político ou religioso), da importância, do estatuto social, ou tentações de se deixar diluir por entre a multidão, de ser como os demais e, quando muito, exercer o seu serviço em horários determinados, qual funcionário de uma instituição religiosa.
Queridos irmãos sacerdotes,
Deixemos que em nós, sempre, em cada momento da nossa existência, resplandeça a ousadia do “hoje divino” — aquele hoje pronunciado pelo Senhor na Sinagoga de Nazaré, que é presente em cada momento da história, e nos envolve como seus ministros e como servidores dos nossos irmãos. Renovemos pois aqui, todos numa só voz, com a mesma disponibilidade e entusiasmo do nosso coração, como naquele dia em que o Espírito do Senhor nos ungiu, as promessas da nossa ordenação.