2007 para a Igreja Católica em Portugal

Dos atrasos na regulamentação da Concordata às indicações de Bento XVI an visita Ad limina, uma análise de D. Jorge Ortiga, Presidente da CEP Em Entrevista à Ecclesia, o Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) analisa acontecimentos marcantes para a Igreja Católica em Portugal durante o ano 2007 e deixa perspectivas de acção, nomeadamente as que se referem a projectos comuns para as diferentes Dioceses de Portugal. Agência Ecclesia – 2007 foi um ano positivo para a Igreja Católica em Portugal? D. Jorge Ortiga – Como Igreja, não nos podemos situar no âmbito das estatísticas, dos números. Porque a Igreja é sempre um mistério e, como tal, nem sempre somos capazes de fazer um juízo de valor. AE – A quem deve prestar contas? JO – Àquele que nos conduz e nos motiva, convidando a servir o Povo de Deus em gratuidade e em espírito de serviço. Religião afastada da Presidência Portuguesa da UE AE – Como avalia a Presidência Portuguesa da União Europeia? JO – Não sou a pessoa mais indicada para dizer se Portugal conseguiu, em todas as iniciativas a que presidiu, atingir os objectivos a que se propôs… AE – Tem a sua opinião… JO – Creio que Portugal fez o seu trabalho e preparou-se convenientemente para esta Presidência. Pelo que nos diz respeito, à Igreja, apraz-me registar o encontro que os Presidentes das Conferências Episcopais da Europa tiveram com o Primeiro-ministro, onde aconteceu uma saudação e um apelo, de um lado e do outro. Nós sublinhamos que estamos empenhados e comprometidos no bem-estar de Portugal e da Europa. Por outro lado, houve um Bispo de Portugal que participou numa reunião, no Gana, entre representantes do Conselho das Conferências Episcopais da Europa e da SECAM (dos Bispos da África) onde foi abordado o problema da escravatura e de onde foi enviado uma Mensagem para a Cimeira Europa-África. AE – Acha que África sai a beneficiar desse tipo de encontros? JO – Faço votos para que efectivamente África possa vir a ter bons resultados desta Cimeira. AE – Pelas parcerias económicas que se estabelecem? JO – As parcerias económicas, o que foi dito em relação à paz, aos direitos humanos, mas eu creio que o fundamental é insistir nas pessoas e reconhecer a situação em que estão a viver neste momento. AE – Muitas sem cidadania … JO – Sem cidadania, sem o mínimo de direitos, sem qualquer coisa que possa significar dignidade humana. Foi uma coincidência feliz que o Bispo Auxiliar de Cartum, no Sudão, tenha estado aqui, falando também com diversos Bispos de Portugal sobre o que acontece no Darfur, aquele escândalo! Mas eu creio que esta Cimeira – e talvez esteja a intrometer-me um pouco – poderia ter falado sobre a questão religiosa, enquanto factor de união dos dois Continentes, pelo que tem feito no presente, em termos de solidariedade, e pelo que poderá fazer em termos de respeito pelas diversas religiões. AE – A questão religiosa ficou esquecida, na Cimeira? JO – Pelo que sei, não foi referenciada… E acho que este reconhecer que a religião, seja ela qual for, é um bem para o povo, em todo o seu ambiente e em toda a sua responsabilidade, era importante também referir. AE – Mesmo que a religião seja um factor de conflito em muitos contextos africanos…? JO – Precisamente por isso! É necessário compreender o que é a religião, desafiar as diversas religiões a reflectirem sobre a essência da religião, que é sempre uma relação com um ser sobrenatural (mesmo nas religiões mais primitivas) que une as pessoas, não as separa nem permite que vivam em antagonismos, em destruição, em espírito de morte e de luta. Pelo contrário, é a paz que triunfa a partir também desta ligação, não meramente natural mas sobrenatural. “Puxão de orelhas”? AE – O mês de Novembro ficou marcado pela visita Ad Limina do Episcopado Português. Os Bispos de Portugal vieram de Roma com um “puxão de orelhas” do Papa? JO – Não! Longe disso! Essa foi uma expressão da parte de algum jornalista… Para quem esteve presente e quem conhece a visita Ad Limina sabe que não foi nenhum puxão de orelhas… AE – Nem o Papa estava lá para isso… JO – Não estava lá para isso… Mas foi pura e simplesmente a confirmação do que são as nossas aspirações, os nossos programas pastorais. Até porque o Papa teve oportunidade, directa ou indirectamente, de conhecer os nossos relatórios e sabia, por isso, quais são os nossos sonhos, os nossos projectos, o que nós reconhecemos que existe de caminho percorrido – em termos de concretização do Concílio Vaticano II – e também do que não conseguimos, por incapacidade da nossa parte ou por resistências que ultrapassam as nossas forças. Eu creio que o Papa veio ao encontro das nossas expectativas, dos nossos desejos, interpelando-nos a nós, como Bispos, a toda a Igreja, para que sejamos capazes de trabalhar por uma Igreja que deve ser comunhão e que deve percorrer caminhos de comunhão. Para chegar aqui, a organização terá que ser diferente: não piramidal, mas mais comunitária. Urge, para isso, mudar mentalidades, porque ainda há muito egoísmo, muito autoritarismo, por parte de sacerdotes e de alguns leigos. Creio que esta ideia da comunhão, que nós procuramos semear nas nossas dioceses, mereceu um apoio, uma ajuda, uma confirmação por parte do Papa. AE – Não é frequente admitir a necessidade dessas mudanças… JO – Eu creio que sim! Todos nós vamos reconhecendo que essa mudança está a acontecer nas nossas comunidades. AE – São mudanças estruturais? JO – São e estão delineadas pelo Concílio Vaticano II: os Conselhos Económicos, os Conselhos Pastorais, nas Dioceses e nas Paróquias, que já existem (mesmo que não existam em todas as paróquias). Muitas vezes, quando se fala de mudança, quem está dentro ou fora da Igreja, fixa-se numa interpelação da religião como moral e quer que a Igreja mude essa sua moral – e estou a referir-me a alguns casos concretos – e pensam que a mudança passa por aí. Mas a grande mudança passa pela conversão. Bento XVI começou o seu discurso aos Bispos por um apelo a uma vida de mais intimidade com Deus. Ele usou uma expressão de Santo Ambrósio: “entrar na casa de Deus, permanecer na casa de Deus”. E diz que a missão da Igreja – e aqui é que está a grande mudança – deve ser transbordar Deus. Por isso disse também que quando uma Igreja fala de si não está no caminho justo, porque a Igreja deve falar essencialmente de Deus. E talvez ainda continuemos a falar muito de coisas, das nossas iniciativas, das actividades pastorais, e menos de Deus. Como dizia Pascal, falamos muito das coisas de Deus, mas seria urgente falar do Deus das coisas. AE – Para chegar ao modelo de comunhão da Igreja, que mudanças devem acontecer na estrutura piramidal da Igreja? JO – Eu creio que nós os Bispos, a maioria do clero e muitos leigos responsáveis, já tomamos consciência do que é a eclesiologia do Concílio Vaticano II. E não esquecemos que a constituição sobre a Igreja, Lumem Gentium, começa pela ideia de Povo de Deus. A hierarquia, essa interpretação piramidal, vem mais tarde e coloca-se ao serviço desse Povo. AE – E é isso que está a acontecer? JO – Vai acontecendo, mesmo não estando na perfeição. Temos que o reconhecer e creio que todos nós os fazemos no nosso dia-a-dia, porventura mais no quotidiano das nossas dioceses, que é preciso caminhar e progredir muito mais nesse sentido. Unidade na Igreja Católica em Portugal AE – Em que ficou diferente a Igreja Católica em Portugal depois da visita Ad Limina? JO – Nós teremos que reflectir em comum. Se estamos a falar de uma igreja que é comunhão e que, na sua orgânica, deve ser comunitária, isso deve ser estudado em termos de comunhão. Com certeza que cada Bispo ouviu a mensagem com toda a solicitude do Papa, acolheu para si e a vai procurar concretizar por sua livre iniciativa e com os seus colaboradores mais imediatos na sua Diocese. Na Igreja em Portugal, isso terá que ser discernido, intuído em comum. Não podemos estar a dizer que queremos a igreja comunhão num sentido e depois alguém a decidir por todos e a impor, seja o que for, por todos! AE – Por vezes, no entanto, espera-se tempo de mais por essa decisão em comum… JO – Não! Nós temos o nosso ritmo próprio, que às vezes gostaríamos que fosse diferente. Temos as nossas Assembleias – e poderíamos fazer reuniões extraordinárias, se fosse urgente, para decidir qualquer coisa em comum. Mas a vida continua: a interpelação está feita. Foi um avivar do espírito do Vaticano II que queremos concretizar e continuaremos vendo o que podemos fazer. E dou um exemplo: a partir do dado que comunicamos da diminuição da prática dominical, o Papa fala da problemática da iniciação cristã. Eu posso dizer, na qualidade de Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, que esse foi precisamente o tema que escolhi para falarmos em todas as Assembleias durante estes três anos. Na última, no mês de Abril, iremos tirar conclusões! AE – A concretizar em todas as diocese do País? JO – Eu espero…! Eu creio que a Conferência Episcopal Portuguesa é uma expressão da comunhão dos Bispos que trabalham, cada um, na sua Diocese, onde é o responsável. Depois procuramos concretizar esta comunhão entre nós de uma maneira afectiva. É uma Conferência Episcopal onde a amizade reina entre nós, onde nos entendemos, mesmo com pontos de vista diferentes, mas sem conflitos e sem grandes tensões. Efectivamente, às vezes não somos capazes de atingir a operacionalidade que deveríamos, em comum. Talvez se discuta muito para depois – quem sabe – até encontrar desculpas e não chegar a uma interpretação de um programa que, respeitando a autonomia de cada diocese, pudéssemos dizer: é um programa nacional. Somos interpelados por dois acontecimentos propícios: o Ano Paulino e a realização do Sínodo, em Roma, sobre a Palavra. Serão duas oportunidades que irão permitir – assim o espero – uma acção conjunta mais concorde. Fátima no séc. XXI AE – Fátima celebrou 90 anos das Aparições e inaugurou uma inovadora igreja. O que será Fátima no séc. XXI? JO – Os dados são evidentes. O séc. XXI está a manifestar que Fátima continua a ter uma plena actualidade. Porque são as pessoas que procuram o Santuário. Servindo-me ainda do que o Papa dizia e alargando a todo o país, os santuários que existem pelo país deveriam ser uma Cátedra de Maria, uma escola de fé. Fátima foi o lugar onde Maria ensinou a gente simples e humilde. Hoje é uma oportunidade para repensar e fazer de todos os Santuários, sem descurar o turismo que hoje é algo que diz muito ao país, mas que o nosso turismo esteja marcado por uma evangelização, por um falar não só do passado, mas mostrando uma a actualidade vivida no tempo que passa. AE – Chegarão homens e mulheres diferentes a Fátima, crentes e não crentes, atraídos pela arte da nova igreja? JO – É provável que sim. Temos que reconhecer que estamos num tempo diferente: antes a razão é que procurava explicitar a fé; hoje estamos no tempo da beleza. Talvez a Iigreja, nos últimos anos, tenha esquecido um pouco do valor da arte. Porque a Igreja foi promotora da arte. Hoje verificamos que a Igreja precisa de regressar e colocar-se na vanguarda da arte, seja ela escultura, pintura ou música. É também um modo de anunciar esta beleza de Deus, de um modo actual. Do CNE à Concordata AE – Foi menos mediática, durante o ano 2007, a celebrações dos 100 anos do CNE? JO – Talvez não se tenha falado tanto dessa realidade, mas fico contente que essa questão seja levantada. Porque o CNE, enquanto expressão do escutismo na sua dimensão católica, é um movimento onde a juventude se encontra com uma pedagogia que, para além da vivência do Evangelho, como católicos que são, está numa linha de serviço à humanidade. AE – A Igreja católica e os seus responsáveis limitam-se, por vezes, a assistir aos dinamismos deste Movimento? JO – Penso que não. Acompanhamos, de alma e coração, o CNE. Acompanhamos diariamente, mas reconhecemos que o escutismo é um movimento de jovens, com os chefes e com o padre como assistente. Esta é uma imagem eloquente desta Igreja, povo de Deus que já falámos, onde efectivamente cada um está no seu lugar. Sem dúvida que o assistente é imprescindível. Mas costumo dizer que um bom chefe, com formação e cultura, pode desempenhar um papel tão importante como o assistente. AE – A regulamentação da Concordata percorreu todo o ano. Há algum mal-estar ainda por resolver nas relações entre a Igreja Católica em Portugal e o Governo? JO – O mal-estar existe porque a regulamentação ainda não aconteceu. A Concordata foi aprovada em finais de 2004, passaram três anos e era de esperar que esta regulamentação estivesse efectuada. AE – E porque é que não está, na sua opinião? JO – Talvez outras preocupações… Não esqueçamos que a Concordata é um acordo entre o Governo Português e a Santa Sé. O Governo Português, com as preocupações da Presidência da União Europeia e com as várias alterações de governo, talvez se tenha limitado à lei da liberdade religiosa e tenha esquecido, esta é a minha impressão, as implicações práticas e concretas da Concordata. Estou convencido que, a partir de agora, vai haver mais empenho no regulamentar, para que sejamos capazes de por a Concordata em prática, de ambos os lados, sem privilégios, mas ao mesmo tempo com a atenção ao característico, ao particular e até diferente, que é a Igreja Católica. Pois não se pode tratar por igual, o que por si é diferente. É importante que isto aconteça. AE – Há aspectos em que a Lei de Liberdade Religiosa deixa a Igreja Católica com um tratamento insuficiente? JO – Não. Da leitura que faço, a Concordata é quase uma repetição da Lei da liberdade religiosa. A Lei da Liberdade Religiosa diz que é para ser aplicada a todas as confissões e expressões religiosas existentes no país, mas diz também que, ao colocar de lado a Igreja Católica, diz que as religiões podem fazer acordos particulares naquilo que é próprio e específico dessas religiões. A Lei da Liberdade Religiosa fala da não confessionalidade do Estado, do princípio da separação, mas fala também do princípio da colaboração e, neste princípio da colaboração, fala também do princípio da proporcionalidade. É a própria Lei que reconhece isso! E são princípios que importa ter presente e considerar sempre. Desejos para 2008 AE – Que acontecimento fica para a sua história de 2007? JO ¬- Torna-se difícil seleccionar porque a nossa vida é cheia de tantas realidades. Mas creio que, a celebração dos 90 anos de Fátima, a visita Ad limina e toda esta nossa preocupação, expectativa e esforço que foi feito junto do governo português para regulamentar a Concordata, não sei o que colocaria em primeiro lugar… AE – São todos acontecimentos que marcam o ano de 2007? JO – Eu penso que sim. E espero que, agora que terminou a presidência da EU, que possamos, em termos da Concordata, fazer aquilo que já deveríamos ter feito, para podermos caminhar num entendimento mútuo e recíproco. Sem estar com desconfiança, sem estar a permitir que alguns funcionários de Ministérios nos criem dificuldades, porque isso tem acontecido. Acho que será um momento oportuno para rever atitudes de um lado e de outro. AE – Existirão pessoas, esses funcionários, que poderão representar alguns movimentos e sensibilidades, que poderão colocar a Igreja Católica à margem? JO – Há muita gente que, imediatamente, diria que sim. Eu não tenho coragem de dizer que sim. O que é certo é que às vezes nos dá impressão de que, de maneira organizada ou camuflada e pequenos grupos, talvez não queiram que a Igreja trabalhe num exercício de uma liberdade que é própria de qualquer instituição. AE – Um desejo para 2008? JO – O meu desejo maior é que os cristãos acordassem para a necessidade de um encontro mais pessoal com Cristo, de procurar conhecer a pessoa de Cristo, no seu dinamismo mais íntimo, numa ligação mais profunda com a pessoa de Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, que compreendessem que o cristão é Igreja e, por isso, terá que assumir a sua responsabilidade de Igreja, dentro das comunidades, numa corresponsabilidade que referi neste balanço. Nota-se em Portugal ainda uma ausência de um pensamento e acção cristã ou católica em diversos âmbitos da vida. Seja na política, na medicina, na assistência, na saúde, nota-se que os nossos cristãos não estão ainda devidamente motivados para viver o Evangelho nesse ambiente onde a sua vida se vai realizando. Ao dizer isto não quero de forma alguma desconsiderar a existência de muitos que começam a compreender que a vocação de leigo é de índole secular. É viver no mundo para realizar uma vocação única e insubstituível. (Emissão de parte desta entrevista no Programa Ecclesia do dia 31, na RTP2, às 18h30)

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