Vitorino Nemésio: o pai da açorianidade

Escritor faleceu a 20 de Fevereiro de 1978 O homem que dizia que “o silêncio é Pedra de Deus” deixou para a posteridade escritos inigualáveis que ultrapassaram fronteiras. Já passaram três décadas (20 de Fevereiro de 1978) após a morte de Vitorino Nemésio. Nascido em 1901, na Ilha Terceira, Vitorino Nemésio divulgou como ninguém a açorianidade. Era um terceirense assumido, com a música e a festa à flor da pele. Mar, mar absoluto, sem clima de excessos de frio ou então de calor. Paisagens com um fascínio extra, e por enquanto, tranquilidade e repouso. Esta visão, podemos considerá-la lírica e poética, não exclui os pecados capitais do nosso tempo. Segundo afirma António Valdemar, “a distância, a fatalidade geográfica, a vida quotidiana de quem permanece no meio do Atlântico, já não têm a dimensão social e cultural que se fez sentir durante séculos”. Ali, naquele arquipélago, não existe ilha, e dentro daqueles terrenos banhados pelo azul marinho, não há cidade, vila ou freguesia que não tenham atractivos próprios. O “nosso vizinho” é o mar, uma espécie de longa auto-estrada. Todo o açoriano ama o mar. Ele e o seu ondular são uma espécie de confidente. A Terceira em terceiro A Ilha Terceira, descoberta depois de S. Miguel e Santa Maria, (nomes de índole cristã) e inicialmente chamada Ilha de Jesus Cristo, tomou o nome actual por ter sido a terceira a ser descoberta. Por volta de 1450 um flamengo, Jácome de Bruges, começou a povoar este pedaço de terra plantado no meio do Oceano Atlântico e sabe-se também que, devido à sua situação privilegiada, a Terceira era, então, ponto de escala das rotas portuguesas do referido oceano. Vasco da Gama, na sua viagem de regresso da Índia, mandou sepultar o seu irmão, Paulo da Gama, no Convento de S. Francisco. No século seguinte, mais concretamente em 1534, a Angra foi a primeira localidade dos Açores a ser elevada a cidade, sendo mesmo escolhida pelo Papa Paulo III, para sede do Bispado. No final do XVI, durante o domínio dos Filipes em Portugal, a outrora chamada Ilha de Jesus Cristo foi um grande centro de resistência, apoiando a causa do Prior do Crato. Foi mesmo a última terra portuguesa a render-se à soberania espanhola. Com a descoberta do Continente Americano, o seu papel estratégico intensificou-se. Das Índias vinham as especiarias e da América Latina vinham o Ouro e a Prata. A ilha era um autêntico porto de ajuda aos navegadores. No século XIX, na altura das lutas liberais, a Terceira teve um papel preponderante. Em 1829, uma tentativa de desembarque dos Absolutistas, na então Vila da Praia, foi frustada, razão porque esta recebeu o nome de Praia da Vitória. Como afirma Francisco da Costa (in: A Alma dos Açores) “na Terceira, toda ela é frescura e recolhimento: delira de entusiasmo no inédito das touradas à corda, desprende-se a cantar os «olhos negros», recorda os tempos de outrora no aparato dos arruamentos, fica-se pensativa no topo do Monte Brasil, entra e sai na Sé envolta no seu manto e toda se enche de legendas históricas, de épocas que já passaram”. Sobre a casa Terceirense, Vitorino Nemésio diz no seu livro “Corsário das Ilhas”: “É difícil achar na Península Ibérica e mesmo em França, um tipo de habitat rural tão nobremente urbano, como o de certos pontos das Ilhas dos Açores e em especial da sub-região da Ilha Terceira chamada o Ramo Grande, em cuja planície cerealífera hoje irradiam as pistas colossais do aeródromo das Lajes” O Vulcanismo determinou a constituição geológica e definiu, em certa medida, o temperamento e o carácter dos açorianos. Francisco Arruda Furtado, Luís Ribeiro e um grande escritor daquele arquipélago, Vitorino Nemésio, ao pronunciarem-se acerca do comportamento e da religiosidade dos açorianos, concluem que se fundamentam, essencialmente, na superstição e no medo, perante a iminência contínua dos sismos, das intempéries e de outras calamidades frequentes. Impera o temor que se traduz no uso da palavra “castigo” para explicar as contrariedades existentes na vida. “O conceito de divindade vingativa predomina sobre o de Deus misericordioso, caridade e amor” – afirmou Luís Ribeiro. “Mas antigamente era pior. Hoje, derivado à sensibilização da Igreja, os açorianos já olham mais para o lado misericordioso de Deus” – refere Herberto Dart. “Aprendemos” a viver com as calamidades e não “atribuir as culpas ao Pai Celeste”. Praticar a caridade em nome do Divino Leite de Vasconcelos, a propósito do sentimento religioso no arquipélago dos Açores, considerou as celebrações do Espírito Santo “uma festa nacional de todos os corações, de todas as classes e de todas as idades” (Mês de Sonho). E Vitorino Nemésio afirmou, no livro “Mau Tempo no Canal”, sobre as Festas do Espírito Santo, que a “Alma do ilhéu é cândida e tenaz; quer um Deus Vivo e alegre; chama-o à intimidade do seu pão e das suas ervas húmidas”. Nesta altura abatem-se as rezes para distribuição de carne. Depois, haverá “cozido e alcatra para amigos e compadres, nas panelas de arroba mexidas pela mestra da função”. É o povo quem promove e faz a festa, reunindo-se em Irmandades e cumprindo promessas. O objectivo da festa é praticar a caridade em nome do Divino. Esta festa ultrapassa as águas do Atlântico. O “Culto do Espírito Santo” celebra-se onde existe uma comunidade de açorianos: tanto nas ilhas como nos locais de emigração. Como que numa revoada de Primavera e logo após a grande festa dos Cristãos, Páscoa, as diversas comunidades, agrupadas em Irmandades, começam a organizar os festejos que se prolongam pelos sete domingos seguintes até ao da Trindade. No fundo podemos dizer que é a festa da partilha. Esta partilha de riquezas e este relembrar de que em Deus todos são iguais tem também outra forma: a promessa, donde resulta um imperador e a função. Por qualquer razão que só a ele diz respeito, mas que não se eximirá de contar aos presentes, o imperador é a pessoa da freguesia que, em dificuldades, pediu auxílio à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade. Esta promessa tem uma característica diferente. Ao invés de ser de sacrifício é de alegria. Suponhamos que foi a solidão a razão da promessa, o “pagamento” será de alegria em grupo. Se por acaso foi um pedido derivado de uma dificuldade de qualquer ordem, a “paga” será uma festa de abundância que, com a sua simetria de sinal contrário, apague da memória dos homens os tormentos passados. Festejos como estes e Irmandades como estas existiram na Europa Medieval. Se até meados do Século XIX ainda há recordações de festas em diversos pontos do País, o certo é que estas se esfumaram a ponto de hoje se pensar que são caracteristicamente açorianas. Não diria pura mentira. Os Açores souberam foi guardar o que os outros deixaram fugir. Sílabas musicadas Se fosse vivo, completaria este ano, a 19 de Dezembro, 107 anos. Seria mais de um século a divulgar a açorianidade. Esse homem, que o Pe. António Rego disse que “sempre me soube a açoreano do Grupo Central” chama-se Vitorino Nemésio. Este homem, nascido na localidade de Praia da Vitória, com as sílabas musicadas da Ilha Terceira “não se enrolava em dramas de romeiros ou promessas rastejantes de poetas de S. Miguel”. As neblinas de Antero de Quental passavam por “Mestre Nemésio” de forma mais leve e dramática. Ele tinha um sentido humorado e próximo de Deus “muito mais rico, filial e humano que os complexos poetas do grupo Oriental” – salienta o Pe. António Rego. Nemésio não se confessava religioso “em qualquer esquina”, mas tinha uma apetência espiritual de Deus “que exprimia com a linguagem do povo, não da elite nem dos contorcionistas pescadores do sobrenatural”. Perguntava por Deus com o coração e não com a Filosofia do pensamento. Luís Machado de Abreu, professor na Universidade de Aveiro, afirma que o homem que ficou célebre pelo “Se Bem me Lembro…” era “a humanidade militante”. Na polifacetada personalidade de Vitorino Nemésio “toca-me o teatro de humanidade em que ele foi representando diferentes papéis, desse modo dando vida a personagens que, ao alargarem o leque do universo social, aprofundam a fascinante riqueza e complexidade que moram na condição humana”. Há nessa encenação a vontade de partir de um “lugar apertado, ponto fixo onde a alma se asfixia”, e de assim tentar redimir pela viagem “todas as estreitezas da Insularidade”. D. Manuel de Almeida Trindade, Bispo emérito de Aveiro e na altura reitor do Seminário de Coimbra, relembra um episódio com Vitorino Nemésio: “Na Quarta-Feira Santa de 1995 apareceu-me logo pela manhã e estivemos a conversar durante três horas”. Este diálogo de Nemésio com o reitor do Seminário pareceu uma eternidade, tal a profundidade da conversa. Sabe-se que a conversa entre os dois foi motivo de uma carta de Nemésio a Jacinto Prado Coelho, onde o açoriano descreve uma “Páscoa em Coimbra”. No documento afirma que “este ano pude arrumar a casa da alma”. Nesta viagem existe igualmente o peso “do destino que nos dá as raízes que somos e donde, em definitivo, nenhuma evasão absoluta nos arrancará”. Foi Vitorino Nemésio quem cunhou, com todo o seu saber, o neologismo “açorianidade”, para explicar o modo de ser dos habitantes daquelas ilhas, a sua maneira de estar no mundo e de encarar a vida. Afirma ele: “a Açorianidade é o nosso modo de afirmação no mundo, a alma que sentimos, na forma de corpo que levamos… A vida açoriana não data espiritualmente da colonização das ilhas: antes se projecta num passado telúrico que os geólogos reduzirão a tempo, se quiserem… A Geografia, para nós, vale outro tanto como a história, e não é debalde que as nossas recordações escritas inserem uns cinquenta por cento de relatos de sismos e enchentes”. Uma coisa não podemos negar, a sua extensa obra literária está cheia de reminiscências pessoais de ilhéu e de recordações da sua infância. D. António Braga, Bispo dos Açores, recorda “que a açorianidade era o seu evangelho”. Para Nemésio o pão do seu espírito, o sal da sua poesia, o suor da sua escrita derivavam da Praia da Vitória, de Angra do Heroísmo, da memória e reencontro com a ilha Terceira. Tudo o mais vinha por acréscimo. Ele estabeleceu, de forma inequívoca, a relação directa do homem com a sua circunstância física e psicológica. Até hoje, melhor que ninguém, o escritor caracterizou o peso telúrico e a carga ancestral do açoriano: “O mar é livre de se mover, não de mudar de sítio. O ilhéu morre de mobilidade numa situação perpétua”. A propósito do V Centenário do povoamento dos Açores, Vitorino Nemésio recorda, traduzindo o basco Baroja, “o ter nascido junto do mar agrada-me, parece-me como um augúrio de liberdade e câmbio”. Em todas as viagens que fazia, Nemésio transportava consigo uma ilha aos ombros, arrancada da vastidão do Atlântico, como um tesouro. No regresso às raízes, Nemésio busca o “paraíso perdido”. É o regresso do “filho pródigo”. Ele está consciente de que não pode voltar ao que foi: “Ave que fui na Ilha, Não voltarei ao ninho: Perdi a asa e a anilha Pelo Caminho (In Anjo da Guarda). Mas não desiste da busca: “Minha vida é estrada”. E seja a hora de morrer regresso Só à infância sonhada. Menino é em Deus o homem: ofereço o ardor da vida ao fim da caminhada” (In Canto de Véspera). Perante a estrada da vida, Vitorino Nemésio deixou-nos testemunhos concretos dos odores açorianos: o romance “Mau Tempo no Canal” (1944) e os livros de poemas “O Bicho Harmonioso” (1938); “Eu Comovido a Oeste” (1940); “Festa Redonda” (1950) e “Sapateia Açoriana” (1976). A Ilha não esqueceu o seu filho. Junto à Casa das Tias, foi inaugurado no dia 17 de Dezembro de 1994, um busto de Vitorino Nemésio. Da autoria do escultor Álvaro Raposo França, destina-se a assinalar a passagem do 50º aniversário da publicação do Romance “Mau Tempo no Canal”. Este ano, centenário do seu nascimento, Nemésio será novamente recordado. O presidente da autarquia da Praia da Vitória afirma que “estas comemorações servem, sobretudo, para prestar a homenagem merecida e condigna a um homem que se notabilizou pelos seus escritos e cantou bem alto os Açores, a Terceira e a Praia da Vitória”. O homem que dizia que “o silêncio é Pedra de Deus” deixou para a posteridade escritos inigualáveis que ultrapassaram fronteiras. É de realçar, que “Mau Tempo no Canal”, uma das suas obras primas, já existe em língua inglesa. Esta tradução, feita por Francisco Fagundes, docente da Universidade de Massachusetts-Amherst, representa um contributo fundamental para a comemoração do centenário do Nascimento de Nemésio. A divulgação em inglês de “Mau tempo no Canal” projecta, numa das principais línguas de comunicação mundial, uma obra de culto da literatura portuguesa. Nas suas obras comunicou-nos a força telúrica, o fluido que dimana das nuvens, o impulso dos ventos, o cheiro dos campos, o mar largo e bravio que, de todos os lados, acentua o rosto da ilha. Apesar desta açorianidade estar-lhe nas veias, Coimbra acabou por ser a sua terra adoptiva, ao ponto de ter escolhido a Lusa Atenas para sua morada eterna. Luis Filipe Santos

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top