“Virar-se” para o amor, contra as sombras da família

Homilia do Arcebispo de Braga na Celebração da Paixão do Senhor Durante o tempo quaresmal quisemos caminhar com o Santo Padre “prolongando” a compaixão de Cristo pelas “multidões”. “Jesus ao ver as multidões, encheu-se de compaixão por elas” (Mt. 9, 36). Se compaixão significa “padecer com”, este momento conduz-nos mais além e leva-nos a consciencializar-nos que Ele padeceu (a morte) por nós. Já não é uma experiência de simultaneidade. Agora é de verdadeira substituição. Assume os nossos pecados e imola-se em amor de gratuita oblação. O realismo deste momento explicita-nos que o amor de Cristo não ficou nas palavras, pronunciando as sete palavras, mas ultrapassa os conceitos e as ideias. No alto do calvário é Cristo que dá a Sua carne e o Seu sangue num “incrível realismo” que, mesmo sem palavras, torna-se a autêntica explicação do Seu próprio ser e agir. Ele não se afirmou amor. A morte oferecida é a mais profunda certeza do amor. É aqui que compreendemos o verdadeiro conteúdo do “Deus é amor”. É no lado trespassado de Cristo, numa cabeça inclinada ao entregar-se, que a grande verdade do cristianismo deve ser contemplada. Por outro lado, o Santo Padre diz-nos que é aqui que “começa” o novo modo de interpretar a vida como cristã. “A partir daquele olhar (do lado trespassado), o cristão encontra o caminho do seu viver e amar”. (Como fonte do nosso ser e agir devemos regressar permanentemente a esta realidade). “Na sua morte de cruz, cumpre-se aquele virar-se de Deus contra si próprio, com o qual Ele se entrega para levantar o homem e salvá-lo” (n. 12). Duas palavras questionam o nosso quotidiano: 1 – Como Cristo “virar-se” contra si não por masoquismo ou vontade de sofrer mas como condição indispensável para uma liberdade interior capaz de renunciar as coisas e pretextos que impedem um seguimento radical de Cristo. O apego às nossas concepções da humanidade ou ao projecto de mundo e de Igreja podem impedir a alegria duma ditosa aventura. “Virar-se” contra si não destrói a personalidade nem a vontade de realizações pessoais. Dá-lhe plenitude e profundidade. – Este “virar-se” não é gesto inútil ou ideia descabida de conteúdo. Virar-se não é esvaziar a vida mas acreditar que com o meu amor é possível “levantar” a humanidade. 2 – “Esta acção de Deus ganha agora a sua forma dramática devido ao facto de que, em Jesus Cristo, o próprio Deus vai atrás da “ovelha perdida”, a humanidade sofredora e transviada”. O primeiro, passa ao lado. Agora a Igreja não pode estar à espera que alguém lhe bata à porta. Deve ir atrás e compreender os sofrimentos e as atitudes transviadas. O sofrimento terá capacidade de proporcionar o amor diversificado como força libertadora e coragem para recomeçar. Os “abandonos” de Cristo estão espalhados pelos nossos caminhos. Só que importa reconhecer neles o Cristo sofredor, dar-lhe o nome e abraçar para libertar, aproximar-se para curar. Quantos sofrimentos encontraríamos nas nossas famílias. As portas das casas encerram muitos dramas e as palavras nem sempre dizem tudo. Só muita escuta e coragem para se identificar com as causas negativas, apontará a capacidade de compreender e sugerirá a melhor solução. Ir atrás dos sofrimentos é o grito que o calvário nos lança. Se é difícil compreender quais são os verdadeiros sofrimentos, pode ser quase impossível verificar quantos andam transviados. Os caminhos propostos são imensos e muitos deixam-se transviar. O mundo da família é o areópago mais sedutor onde a verdade se mistura com muita confusão. Corremos o risco de apegar-nos à doutrina que sempre pregamos sem a contextualizar, mergulhando nos novos contornos que, pela sua articulação mais ou menos científica, podem enganar. A verdade não pode ser atenuada e o modo como a comunicamos deveria tornar-se convincente para ser atractiva e motivadora. Não é com condenações sumárias que a verdade é acolhida. Como nunca a Igreja é desafiada a enunciar o amor de Deus com conteúdos científicos e capazes de trazer à verdade, quem se deixa arrastar por conceitos e propostas ambíguas. 3 – Ao sublinhar estas duas atitudes de “virar-se contra si” para levantar do erro e do sofrimento, o Santo Padre recorda Cristo. “Quando Jesus fala, nas suas parábolas, do pastor que vai atrás da ovelha perdida, da mulher que procura a dracma, do pai que sai ao encontro do filho pródigo e o abraça, não se trata apenas de palavras, mas constituem a explicação do Seu próprio ser e agir”. Há aqui um itinerário que não é meramente simbólico. É pragmático. Jesus morre pelos seres “fora” da cidade. Para experimentar a ressurreição teremos de deixar as muralhas que parecem proteger-nos do mundo adverso mas estão agravando a separação. Precisamos de sair para ir ao encontro e ser capazes de manifestar mais solicitude. Coloco aqui as famílias da Arquidiocese e do país. Vejo as “sombras” e as “nuvens” que pretendem deturpá-las. Como agir? As trevas e as sombras da Sexta-Feira Santa parecem falar-nos dum abandono de Deus perante a mentalidade laicista e laxista que se vai impondo, particularmente, na pouca aceitação da doutrina familiar. Todos abandonaram Cristo no alto do calvário. Só Maria e João tiveram a coragem de “estar” pela capacidade de amar que invadia os seus corações. Não devem ter feito grandes declarações. Permitiram que Deus agisse no Seu sofrimento, não fugindo à situação que nunca teriam imaginado. Deixaram-se invadir pelas trevas e tudo se transformou em alegria no reencontro dum Cristo já ressuscitado que sentiram e ouviram mas que não podiam tocar nem reter para si. Era algo a dar. Eles compreenderam-no profundamente no abandono. Perderam tudo. Readquiriram a serenidade e alegria de O testemunharem. Teremos de acolher as “dores”, ou “mortes” da família para numa alquimia de coragem através da fidelidade à doutrina da Igreja realizar a Páscoa com e para todas as famílias da Arquidiocese. Para a Igreja parece chegada a hora de estar junto da cruz. Aí se compreende o amor e se vai delineando o caminho como vida e pastoral a concretizar. Saibamos ser dignos dos momentos de morte. Com eles entraremos na ressurreição. + Jorge Ferreira da Costa Ortiga, Arcebispo Primaz

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