Quando acordou, sentiu-se perdida.
Sentou-se na cama e olhou o relógio: 5 horas da manhã. Na cidade espreguiçava-se a manhã do dia 24 de dezembro. Maria vivia numa aldeia gelada a escassos quilómetros de Vila Real, no cimo de um vale donde desciam, ciclópicos, os pinheiros cobertos de neve. Todos dormiam, enquanto ela abriu as janelas e, narinas adentro, sorveu a mansidão da invernia. Sempre celebrou o Menino Jesus, mas nesses dias andava a vaguear num mundo de emoções confusas: trabalhos, desalentos e a falta de um bebé, o seu bebé.
Depois do duche e ao som do alarme da Avó, apressou-se a preparar-se para o que aí vinha.
9h da manhã: a Mãe e a Avó começavam a confecionar as iguarias natalícias adoçadas com a ternura do Menino que estava quase quase a nascer. Maria amassou o calondro para as fritas, que no resto do país se chamam polidamente bolinhos de abóbora ou rabanadas. Não, aqui não – o calondro, másculo e churro, funde-se com a brancura da neve de açúcar e canela e vai embriagar-se do azeite a estalar na sertã posicionada entre dois potes de ferro na lareira, ferventes com as achas em lume hirto e desperto!
A seguir ao almoço, sentiu falta do frio e foi ao quintal ver os flocos de neve que recomeçavam, silenciosos, a poisar no manto tão alvo do chão mesmo defronte do pinhal e do vale, abrigados pela Serra do Alvão em direção à cidade do famoso foral d’el rei D. Dinis!
Este choro gélido da Natureza dava-lhe muitas vezes paz, mas não hoje, hoje voltou a nostalgia do não-ter, uma espécie de míngua do indizível. Tinha sido hemorroísa, tornada estéril, e agora a vinda do Menino-Deus comovia-a, desejosa de O segurar, maternal, num ósculo que não teria ocaso…
Voltou a sentir-se perdida.
Regressada ao interior, subiu ao seu quarto e encostou a fronte à vidraça: viu o lenhador que trazia mais lenha para esses dias e soprou um bafo da sua angústia para a janela – assim devia ser o Espírito Santo – vê-se no que toca, no que transforma, qual vento invisível que faz girar o moinho no cimo da serra.
À noite iria à Missa do Galo, na Sé, claro, com a família. E veria a Avenida iluminada com as luzes da Câmara e dos presépios das várias freguesias, tantos e tão diferentes, típicos de cada região! Uns feitos de barro de Bisalhães, outros de linho de Agarez, outros de madeira dos pinhais em redor, outros ainda de serapilheira dos sacos de batatas da Campeã, enfim, tantos e tão belos! Sim, tudo bonito e turístico, mas exterior, tão diferente do que ela imaginava ser essa noite da Natividade… O Advento chegara ao fim, parecia-lhe não sentir o seu Maranathá, por isso desistiu e voltou para a cozinha.
A tarde passou, chegou a noite e a ceia em família. Calma e leda, mansa e aconchegada. A lareira estalava sonzinhos quentes e as brasas estendidas em mil luzeiros pequeninos ajudavam a degustar as fritas, a aletria, as filhoses e tanto mais, tudo acompanhado por um Porto do Douro ali ao pé, mesmo ao fundinho do Rio Corgo.
Mas era como se visse tudo, menos o seu Senhor, Jesus, fosse qual fosse o sicómoro a que subisse. Bem se ajoelhou como pastora junto às palhinhas, mas nada!
23.30h: saíram de casa em direção a esse ido Convento de S. Domingos, matiz da Diocese que começava agora a celebrar o seu centenário.
A eucaristia. Era agora que se celebrava o nascimento do Menino Jesus, ao som do Coro dos Anjos a entoar «Gloria in Excelsis Deo»! A pandemia tinha-lhe roubado a proximidade da imagem e a osculação e hoje parecia que lhe roubava o próprio Jesus!
Acabou a eucaristia, saiu do templo no meio da multidão encolhida em seus casacos e sobretudos, a quem nem o gelo tiritante retirava a alegria que subia aos céus das bocas mascaradas que jorravam «Feliz Natal»!
Maria saiu pela porta principal da catedral, olhou a árvore ao fundo, iluminada de luzinhas e resignou-se: não sentia nada, nada, a não ser vazio e silêncio interiores.
De repente:
– Maria, mana! Consegui vir a casa!
Era a sua irmã, que vivia longe! Que bom! Olhou-a ao longe, ao som da sua voz e, epifania antes do tempo, dos braços desta Mãe luziam dois botõezinhos pequeninos e luzidios, castanhos e carinhosos que a inundaram de Amor – eram os olhos da sua sobrinha, nascida no Natal anterior e a quem não via desde então!
A sua menina – a multidão desaparecia, a sua família também, as iguarias de sua casa, os presépios, tudo – só Maria e a pequena, que lhe abriu um sorriso adoçado pelo olhar. E nesse olhar, inocente e infantil, emoldurados pelos caracóis mais perfeitos do mundo, Maria sentiu-se inteira, inundada do seu bebé – do Menino Jesus que a incandescia e lhe dizia uma palavra, uma única e imensa palavra: Amor!
Sim, Vila Real é cidade d’el-rei, mas não um qualquer temporal: é cidade do Rei Eterno!
Marina Rocha