Uma inércia desastrosa

Sandra Costa Saldanha

Motivo de indignação e opiniões diversas, tem-se dito de quase tudo sobre a intervenção naÚltima Ceia do Santuário de Nossa Senhora as Preces (Aldeia das Dez, Oliveira do Hospital). Do escárnio ao choque, a sociedade em geral manifesta-se com expressões de repúdio, classificando-a como uma “aberração” e “tragédia”, acção de “terrorismo” e desrespeito.

Retrato de uma realidade que muitos conhecem, a intervenção levada a cabo está na ordem do dia, trazida a público pelas redes sociais. Tem a mais-valia de chamar a atenção para uma prática reiterada, como bem sabemos, de norte a sul do país. Acções que estão na base da perda de muito património, têm por alvo todo o tipo de objectos devocionais. Concretizadas por indivíduos sem competência técnica, reina o amadorismo. Todos – excepto os profissionais – parecem aptos a intervir no património cultural da Igreja, escudados num singular sentimento de posse e num espírito de autonomia altamente nocivo. Atropelando os mais elementares princípios de conservação e restauro, transformam-se obras de arte religiosa em verdadeiras caricaturas carnavalescas, sem critério nem rigor.

Situações frequentemente irreversíveis (pelo emprego de técnicas e materiais inadequados), adulteram as obras e determinam, não raras vezes, a perda do seu valor patrimonial. Coloridas e brilhantes (como “novas”), mais do que a descaracterização material, uma intervenção danosa perverte o mais profundo sentido da obra de arte religiosa, uma das mais notáveis heranças da igreja católica: a sua identidade, comprometendo todo o propósito pastoral para o qual foi concebida, como meio de evangelização e catequese.

Não é, pois, por falta de informação que as situações se repetem. Ela é abundante e sistemática, em acções promovidas por várias entidades. Normas e toda a espécie de orientações existem, mas prosseguem os atropelos aos procedimentos. É aos serviços vocacionados para os Bens Culturais da Igreja (que existem em todas as dioceses) que compete aconselhar e promover a implementação de boas práticas. Por eles devem passar todos os processos de intervenção nos espaços religiosos.

Os Bens Culturais da Igreja  não podem, pois, continuar sujeitos à imprudência e à arbitrariedade dos gostos pessoais. Trabalho fácil e pouco oneroso, frequentemente do agrado das comunidades, é também a essas mesmas comunidades – tão solícitas na defesa e preservação do seu património – que compete promover uma acção escrupulosa, procurando orientação especializada, fiscalizando e denunciando semelhantes atrocidades.

Felizmente, aumentam os exemplos de boas práticas, em intervenções prudentes e responsáveis. Mais do que a crítica fácil, seria bom que a mediatização do caso de Aldeia das Dez tivesse um alcance pedagógico, alertando e motivando transformações nos modos de actuação de todos quantos que têm responsabilidade na salvaguarda e protecção do património cultural da Igreja.

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