Uma imigração de Famílias – um contributo para a coesão social

Não haverá tema tão consensual nas políticas de imigração como o reagrupamento familiar. Para imigrantes que tenham família constituída no seu país de origem esta é uma ambição quase sempre presente e que representa, antes de tudo, um direito humano: o direito a viver em família. O exercício do direito a viver em família, através da viabilização do reagrupamento familiar do núcleo da família imigrante, constitui um expoente e medida da humanidade de uma política de integração de imigrantes. A família, célula fundamental da nossa sociedade representa também uma ponte para a integração na sociedade de acolhimento, quer através do cônjuge, quer dos filhos. É um factor de estabilização emocional e psicológica, combatendo o isolamento e a depressão e garantindo a redução de comportamentos desviantes. Em família, como qualquer um de nós reconhece e exigiria para si, o imigrante é mais feliz e sente-se humanamente mais realizado. E todos ganhamos com isso. No ciclo migratório tradicional era usual que o imigrante – na imigração clássica, o homem – partisse sozinho para o país de acolhimento, procurando aí reunir as condições necessárias para poder trazer a família. Para muitas famílias, continua ainda a ser assim, embora já se verifique também a modalidade oposta em que a mulher é pioneira. No actual contexto europeu, o reagrupamento familiar corresponde a ¾ das entradas de imigrantes, sejam cônjuges, filhos ou outros familiares. Essa tendência é, obviamente, mais evidenciada pelas restrições à entrada de novos primo-imigrantes que hoje marca toda a política de fluxos migratórios. Por exemplo, em França 70% das entradas de imigrantes resultam de processos de reagrupamento e na Áustria 40%. E esta tendência vai acentuar-se. A realidade portuguesa A realidade portuguesa enquanto sociedade de acolhimento tem evoluído significativamente ao longo dos últimos anos. Os vários ciclos de chegada de imigrantes condicionam diferentes fases no processo de reagrupamento familiar das principais comunidades imigrantes. Em estudo realizado em 2004, pela equipa da Professora Lucinda Fonseca, no quadro do Observatório da Imigração, era sinalizado que os nacionais dos PALOP se encontram numa fase mais adiantada do processo migratório (que já não envolve uma larga maioria de “pioneiros” do sexo masculino) e experimentaram um acréscimo significativo do volume de chegadas associado ao reagrupamento familiar entre 1999 e 2002. Este grupo evidencia um dos maiores pesos relativos das chegadas associadas ao reagrupamento familiar (cerca de 1/3 dos imigrantes). Já os asiáticos, nomeadamente chineses e indianos apresentam, em termos estatísticos, uma utilização significativa do instituto do reagrupamento familiar (em 2002), o que aponta para uma presença antiga (mais evidente no caso do pequeno grupo de nacionalidade indiana) e para estratégias migratórias que parecem envolver a deslocação para Portugal dos membros adultos da família nuclear num período de tempo relativamente curto; Os “outros europeus”, sobretudo compostos por cidadãos da Europa de Leste, e os Brasileiros registam níveis relativos de imigração justificados pelo reagrupamento familiar bastante menos significativos do que os observados nas duas situações apresentadas anteriormente. Esta situação está em sintonia com o carácter recente da presença destes grupos em Portugal (mais nítido no caso dos Europeus de Leste) e com o acentuar da sua importância na imigração laboral. Encontram-se numa situação “pré-reagrupamento familiar”, mas tenderão, caso permaneçam, a entrar na fase de reagrupamento familiar brevemente. Desafios à integração da família imigrante Por razões óbvias, a integração da família imigrante transporta desafios adicionais em relação ao imigrante isolado, dos quais se destacam o da habitação condigna, o da integração laboral do cônjuge e da integração escolar dos filhos. Assim, um dos desafios que se coloca ao imigrante no seu processo de reagrupamento familiar é, como é sabido, o de reunir condições de alojamento compatíveis com um número mais alargado de membros do agregado familiar, o que representa desejavelmente o abandono dos formatos de habitação dos recém-chegados e a possibilidade de obter uma residência uni-familiar. Constitui mesmo um requisito legal, fiscalizado pelo SEF, sendo a falta de condições de habitabilidade para a família, uma das principais razões para indeferimento de pedidos de reagrupamento. É evidente que este é um processo difícil, quer pelos baixos rendimentos normalmente disponíveis para o imigrante, quer pela escassa disponibilidade de habitação digna a baixos custos, quer ainda pelo racismo e discriminação subtis que impera no mercado do arrendamento. Como resposta, torna-se necessário não nos escondermos atrás do argumento da falta de condições de habitabilidade, mas, ao invés, considerar todos os recursos para o acesso a uma habitação digna. Desde logo, o imigrante deve ser elegível, em igualdade de circunstâncias como os cidadãos autóctones, no acesso aos programas eventualmente existentes de apoio à habitação. Estes, no entanto, devem evitar quer a dispersão obrigatória e compulsiva, quer a concentração segregacionista em bairros-guetos, procurando soluções equilibradas que permitam manter redes de afinidades e de proximidade, ao mesmo tempo que se estimula a abertura à construção de novas relações nomeadamente com nacionais. Por outro lado, a viabilização da inserção profissional do cônjuge revela-se essencial, bem como uma eficaz legislação – e sua aplicação – no combate à discriminação no arrendamento. E estamos tão longe de uma eficácia suficiente! Mas também, individualmente considerados, enquanto cidadãs e cidadãos temos responsabilidades. Influenciamos a cultura social que nos envolve. Criticando a atitude dos senhorios que recusam arrendar casa a imigrantes, disponibilizando-se para ser fiador em situações que tal é exigido e na qual exista algum vínculo de confiança com a família imigrante ou participando activamente em Cooperativas de Habitação social, são alguns dos caminhos possíveis. De igual forma, é fundamental referir as responsabilidades das famílias imigrantes, porque o facto de serem mais vulneráveis e, muitas vezes, exploradas, não as exime de por regra cumprirem todas as suas obrigações. A reafirmação da obrigatoriedade do cumprimento dos deveres contratuais (e.g. o pagamento de renda de casa, de água e electricidade, manutenção das habitações) bem como de deveres cívicos (e.g. respeito e preservação do espaço público) por parte de imigrantes beneficiários de programas de realojamento, com efectiva responsabilização no caso de não cumprimento destes deveres deve estar sempre presente, como mecanismo de verdadeira integração social com dignidade e não infantilizando os imigrantes. Um outro desafio, como já foi referido, passa pela integração laboral do cônjuge. A chegada do cônjuge, numa família de baixos rendimentos equivale normalmente a que este manifeste interesse – e necessidade – de trabalhar para equilibrar as contas domésticas. O enquadramento legal e o acolhimento inicial deve respeitar essa expectativa e viabilizar, sem restrições legais, a procura de emprego por parte do cônjuge. As limitações que a actual lei ainda coloca nesta integração, nomeadamente para os cônjuges de titulares de autorização de permanência, irão desaparecer na nova lei. Além disso, o cônjuge pode, em muitas circunstâncias, ser portador de competências e de saberes que pode colocar ao serviço da economia local. Um terceiro desafio que se enunciou refere-se à integração escolar dos seus filhos. Hoje existem no nosso sistema educativo cerca de 65.000 crianças descendentes de imigrantes. Todas elas, mas sobretudo as que vieram para Portugal ao abrigo do reagrupamento familiar e que sofrem, em maior ou menor grau, o choque cultural, precisam de uma resposta adequada e cuidadosa das nossas Escolas. A capacidade de acolher as crianças estrangeiras recém-chegadas, tendo em vista a sua mais fácil integração é fundamental e exige uma articulação mais efectiva entre a Escola e as comunidades onde se verifica a presença de imigrantes e seus descendentes. A promoção do seu sucesso escolar e valorização junto dos familiares do papel da Escola enquanto agente de socialização e de promoção da mobilidade social vertical são outros eixos a considerar. Ainda neste contexto de política pró-activa e voluntarista importa valorizar o papel dos mediadores socioculturais, de professores tutores e de outros elementos que na comunidade educativa possam estabelecer acompanhamentos mais individualizados e sistemáticos aos alunos mais vulneráveis. Note-se, no entanto, que esta integração se deve processar num contexto de reconhecimento da riqueza da diversidade cultural. Igualdade com as diferenças dentro, reflecte na Escola um conceito de sociedade que se quer coesa, mas não uniforme, onde o reconhecimento das diferenças se faz, sem que se belisque o princípio da igualdade. Acresce que esta percepção das diferenças é igualmente útil para não essencializar, tratando como iguais realidades muito diversas entre si. Este desafio exige a opção pela interculturalidade, nomeadamente promovendo e apoiando iniciativas nos projectos educativos de Escola que estabeleçam pontes com as culturas de origem, devendo estas ser valorizadas. A família imigrante já reunida entre nós não pode sentir que a Escola ignora ou, pior ainda, combate a identidade cultural de origem. Esse é um caminho para afastar as crianças e as suas famílias das oportunidades que a Educação proporciona. Mas também aqui importa reforçar a responsabilidade familiar. Os progenitores imigrantes são, normalmente, verdadeiros heróis em busca de um futuro melhor para os seus filhos. Procuram incessantemente dar-lhes uma vida diferente daquela que tiveram. Não regateiam sacrifícios, trabalhando horas sem fim, em condições normalmente muito adversas, para lhes poderem proporcionar esse destino diferente. Mas essa opção tem, algumas vezes, um preço elevado a pagar, que é, muitas vezes, a ausência da função educadora de pais. Tal como muitas outras famílias não-imigrantes preocupam-se com dar “coisas”, mais do que proporcionar Educação. Esta exige presença, diálogo e acompanhamento dos filhos onde os pais são insubstituíveis. A resposta nacional aos desafios do reagrupamento familiar Sem querer ser exaustivo, importa no entanto referir algumas das respostas que Portugal tem desenvolvido no apoio ao reagrupamento familiar. Desde logo, importa sublinhar que Portugal tem uma visão positiva da imigração e dentro dela, uma clara aposta na Imigração de Famílias, que está referenciado como um dos princípios chave da nossa política de imigração. Nesse sentido, compreendem-se as alterações legislativas que a nova “lei da imigração” incluiu neste domínio. Das principais mudanças, sublinha-se a decorrente da unificação do estatuto jurídico do imigrante, passando a existir um só título de residência com igualdade de direitos para o reagrupamento familiar (e igualmente para outras áreas como por exemplo o trabalho, educação, saúde). O novo regime previsto na nova Lei da Imigração alarga o âmbito de aplicação pessoal do direito de reagrupamento familiar a estrangeiros que, actualmente, estão dele excluídos, como é o caso dos titulares de visto de trabalho e os titulares de autorização de permanência. Outras das inovações que o novo regime traz é permitir ao imigrante o reagrupamento com o parceiro de uma união de facto. Os pedidos de reagrupamento familiar passam a ser tratados de forma conjunta, sendo que o seu deferimento implica a concessão automática do visto aos membros do grupo familiar residentes no estrangeiro e isenta-se de taxa a emissão de vistos concedidos aos filhos do imigrante titular de autorização de residência, no âmbito do reagrupamento familiar. Na Lei ainda em vigor, o regime concedia o direito ao reagrupamento familiar ao cidadão estrangeiro que residisse no território português há pelo menos um ano, referindo-se aos familiares que se encontrassem fora do território e aos membros que estivessem dentro do País, mas regularmente e fundamentando-se devidamente estas situações excepcionais. Com a entrada da nova Lei em vigor, deixa de existir uma referência ao tempo de estada do estrangeiro no território, para efeitos de pedidos de reagrupamento familiar, estipulando-se que o título de Autorização de residência confere a possibilidade de se verificar a reunião com os membros da família que se encontrem dentro e fora do território. Continua a ser necessário que os membros da família que vão beneficiar do reagrupamento tenham entrado legalmente em Portugal e que dependam ou coabitem com o titular de uma autorização de residência válida. A nova Lei traz consigo uma redução substancial do prazo para a decisão do reagrupamento familiar, que passa dos actuais 9 meses para 6 meses. Estas são algumas das principais alterações legislativas com que a nova lei beneficiará o reagrupamento familiar. Mas para além das já referidas medidas legislativas que facilitam o reagrupamento familiar, e que foram já aprovadas na generalidade, no passado dia 19 de Dezembro no Parlamento, Portugal irá ter no Plano de Integração dos Imigrantes, um outro instrumento muito importante para apoio ao reagrupamento familiar. Nas suas 123 medidas propostas e que estão ainda em discussão pública até dia 19, quer directa, quer indirectamente estão presentes propostas concretas de valorização deste instituto. De uma forma directa, refere-se a desburocratização e agilização do processo de reagrupamento familiar e reforço da rede consular face às origens dos fluxos migratórios para Portugal. Para tal enuncia-se como essencial facilitar o processo de reunião de documentação e traduções, melhorar a resposta dos serviços consulares, incluindo uma análise comparativa das respostas que vêm a ser dadas por estes e, eventualmente, o reforço de meios nos consulados mais solicitados, bem como a realização de acções de formação de curta duração no domínio do reagrupamento familiar, dirigidas aos funcionários. Defende-se também a adequação progressiva da rede consular face à nova realidade migratória portuguesa, de forma a obter respostas mais adequadas às necessidades dos imigrantes, nomeadamente referentes aos processos de reagrupamento familiar. Finalmente propõe-se a alteração dos métodos de concessão dos vistos tendo em vista uma maior autonomia da rede consular, sempre que possível em articulação com os oficiais de ligação de imigração. Mas também de uma forma indirecta, nos capítulos referentes à Educação, Descendentes de imigrantes e Questões de Género estão presentes respostas claras aos desafios da integração das famílias imigrantes, tendo em vista a construção de uma maior coesão social. Mas também na prática concreta há já boas práticas a registar. Uma delas é o funcionamento, desde 2004, dos Gabinetes de Apoio ao Reagrupamento Familiar, nos Centros Nacionais que proporcionaram só em 2006, 10.180 atendimentos a imigrantes que pretendiam fazer reagrupamento familiar. O serviço prestado pelo GARF divide-se em dois vectores essenciais: 1. Informação: através da análise do título que habilita o cidadão imigrante a permanecer em território nacional, é dada a informação sobre os documentos necessários para a instrução do processo, é indicada a entidade competente onde o pedido deve ser instruído e são explicados, genericamente, os trâmites do processo. Podem ainda ser verificados os documentos reunidos para instruir o processo. 2. Acompanhamento: Após a entrega do pedido no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) ou nos Consulados, e sempre que solicitado, o processo é acompanhado através da colaboração e apoio do GARF. Essa mediação entre os imigrantes e as entidades envolvidas é realizado através do envio de faxes com pedidos de informação sobre o estado dos processos, pedidos de decisão sobre os processos, pedidos da fundamentação no caso de indeferimentos e através da apresentação de alegações e recursos hierárquicos (ou seja, durante a fase pré-contenciosa). Face aos canais privilegiados estabelecidos com o SEF e com a DGAC (Direcção Geral dos Assuntos Consulares), o GARF vai-se informando, paralelamente, sobre o andamento dos processos, sobre as dificuldades dos mesmos, e tenta desbloqueá-los para que possam prosseguir. Cerca de 80% dos casos acompanhados termina em concessão de vistos e reagrupamento familiar bem sucedido. Este serviço de provedoria do imigrante, defendendo o seu direito a viver em família, prestado por uma instituição pública, em cooperação com várias instituições privadas sem fins lucrativos, com a colaboração de mediadores sócio-culturais, representa uma resposta concreta que favorece a plena integração dos imigrantes e das suas famílias e constitui um exemplo de boas práticas, referenciado internacionalmente. Conclusão Não cabe dentro do tempo disponível a problematização de alguns temas associados à temática do reagrupamento, como sejam a gestão do instituto do reagrupamento no quadro de modelos não ortodoxos – aos nossos olhos – de família, ou os riscos de fraude por casamentos de conveniência ou ainda os eventuais riscos para a segurança por via da protecção contra a expulsão que beneficiam as famílias reunidas com filhos menores. Apesar do seu apelo mediático, por via da sua força de noticiabilidade, estes temas constituem excepções das quais, por vezes, se faz crer que sejam a “floresta”. Existem na mesma proporção de “homens que mordem cães”, na metáfora sempre usada para explicar o que é notícia. Não quisemos desviar a atenção do essencial. O direito a viver em família constitui uma conquista civilizacional. Independentemente da nacionalidade, da religião, da cultura, do nível económico, une-nos enquanto seres humanos o desejo e a ambição de ter uma família. Para aqueles que se esforçam na construção de uma vida melhor – para eles e para as suas famílias – emigrar para terras estranhas à procura de sustento, representa um sacrifício. No que se refere à ausência da família, este sofrimento deve ser reduzido ao mínimo indispensável, decorrente das suas necessidades de adaptação ao novo contexto socio-económico. Os Estados e as sociedades de acolhimento devem ser os primeiros aliados da integração destes imigrantes, no que se refere ao seu direito a viver em família. Não os podem olhar como simples elos do sistema económico, enquanto mão-de-obra fácil, barata e descartável. O contrato de acolhimento é com pessoas, na sua plena humanidade, com direitos e deveres, entre os quais o direito a viver em família. Só respeitando esta visão nos poderemos orgulhar de uma visão humanista da sociedade e de um verdadeiro Estado de Direito. A cada um de nós, no exercício responsável de cidadania, compete fazer a sua parte, onde quer que estejamos, o que quer que façamos. Rui Marques, Alto Comissário para a Imigração e Minorias Étinicas

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