Uma Igreja sem máscara

Rui Ferreira, Arquidiocese de Braga

1 – Este tempo, tão marcadamente afetado pelo contexto pandémico não consegue esgotar todas as oportunidades da reflexão que desperta. Portanto, se está já cansado de ouvir falar da pandemia e dos seus efeitos sobre cada um de nós, não deve ler mais esta glosa. Indo, desde já, de encontro ao dístico que nos encima, se fizermos uma simples pesquisa num qualquer motor de busca colocando as palavras “Igreja” e “máscara” aparecem curiosos títulos, que certamente nos concederiam profícuos temas de reflexão. No entanto, não vamos meditar sobre a atitude imprudente de um americano com corona vírus que entrou numa igreja sem máscara e infetou 91 pessoas[1]. Nem tão pouco iremos comentar a insensatez de um Chefe de Estado que decidiu vetar a obrigatoriedade da utilização de máscaras no interior das igrejas[2]. E também não é este mais um artigo de um ultraconservador crítico relativamente à decisão do Papa Francisco em utilizar publicamente máscara[3].

Foto: Daniel Ibáñez / ACI Prensa

2 – Uma deambulação pelo Dicionário da Língua Portuguesa pode conceder-nos uma perspetiva semântica alargada sobre a palavra “máscara”. Concentremo-nos, porém, em duas das suas significações. Máscara, pode ser uma “peça ou equipamento usado para resguardo ou proteção da cara”, mas também pode ser considerada como um “disfarce ou fantasia” que visa conceder uma aparência falsa ou diferente da efetiva realidade. A estes dois sentidos acrescentamos um outro: a máscara entendida segundo a perspetiva nietzschiana[4], que nos aponta a um invisível que se desvela numa configuração que remete para um outro.

3 – A calamidade que inesperadamente abala o nosso mundo é oportunidade para os cristãos manifestarem com assertividade a sua fé. E é precisamente a máscara, considerada na sua multiplicidade semântica, que aparece como signo maior de uma atitude que é solicitada aos cristãos. Máscara é a mesma que simbolicamente se tira para se apresentar coerente com a fé que se professa, num tempo em que esta é especialmente convocada. Máscara é também o utensílio que se deve colocar em nome da solidariedade e respeito pelo próximo, que são imperativo de uma atitude cristã perante este tempo.

4 – A situação pandémica é oportunidade excecional para muitos cristãos saírem das catacumbas em que se permitem viver a sua fé e afirmarem de forma clarividente, por um lado, a esperança que os move e se propaga e, por outro lado, a ação abnegada que coloca o outro como primazia: “cada um deve considerar o próximo, sem excepção, como um outro eu”[5]. Este apelo originário impõe-se antes de qualquer perceção, reflexão ou ação. Impõe-se por si mesmo. Como diria Lévinas, ser Eu significa não poder fugir à responsabilidade perante o Outro, o que exige uma resposta e uma negação a toda a indiferença[6].

5 – Este cenário faz-me lembrar o profeta Jeremias. Perante um cenário de desgraça e desolação, o Senhor interpelou-o perguntando o que via. No entanto Jeremias, em vez de se lamentar ou entrar no ciclo vicioso do desespero – quando essa atitude parecia justificar-se mais do que nunca – respondeu: “Vejo um ramo de amendoeira!” (Jer 1, 11). Este homem não se entregou à loucura ou ao pessimismo. Este homem agarrou-se ao único traço de esperança que restava daquele Inverno que tudo parecia ter condenado ao finamento. E Deus gostou. E a história continuou.

6 – As crises são uma oportunidade única para a confiança. De que serve o lamento ou a sublevação, se elas mais não fazem do que revolver a terra já revolta? Por mais que esta melancolia, fruto da consciência da nossa limitação, nos consuma as entranhas e nos pareça agredir, é preciso olhar em volta e perceber como há sinais de esperança. Tal como aponta o Papa, na sua exortação Gaudete et Exsultate, “a firmeza interior, que é obra da graça, impede de nos deixarmos arrastar pela violência que invade a vida social, porque a graça aplaca a vaidade e torna possível a mansidão do coração”[7].

7 – Não, este artigo não pretende ser um incauto apelo para contraditar a utilização da máscara na nossa vida social ou eclesial. Este é, sim, um apelo que encontra na máscara a metáfora ideal para uma leitura completa deste tempo. Sem perder o realismo, o cristão ilumina os outros com um espírito positivo e rico de esperança[8]. Neste tempo excecional, os cristãos são chamados a ser propagadores de esperança, com máscara sobre o rosto, olhos desnudos e as mãos prontas para ajudar a levantar os que padecem com as inúmeras fragilidades que este contexto nos impõe. Por isso mesmo, urge sermos uma Igreja sem máscara hoje e sempre.

 

[1] https://tvi24.iol.pt/internacional/eua/covid-19-homem-infeta-quase-100-pessoas-apos-entrar-em-igreja-sem-mascara, visto em 28/09/2020.

[2] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/07/bolsonaro-veta-obrigacao-do-uso-de-mascara-em-igrejas-e-comercios.shtml, visto em 28/09/2020.

[3] https://expresso.pt/coronavirus/2020-09-09-Covid-19-Papa-Francisco-aparece-de-mascara-pela-primeira-vez-em-publico, visto em 28/09/2020.

[4] Cf. Nietzsche, Friedrich – Assim falava Zaratustra. eBooks Brasil, 2002.

[5] Constituição Pastoral Gaudium et Spes sobre a igreja no mundo actual, 27.

[6] Cf. Lévinas, Emmanuel – Humanismo do Outro Homem. Petrópolis: Vozes, 1993.

[7] Papa Francisco, Exortação Apostólica “Gaudete et Exsultate”, 116.

[8] Papa Francisco, Exortação Apostólica “Gaudete et Exsultate”, 122.

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Agência ECCLESIA

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