Uma história por acabar

Em 2006 Ana Sofia Pereira terminou o curso de Engenharia Civil e decidiu dar resposta a um sonho antigo de ser missionária. Despediu-se do seu emprego e entre 2008 e 2010 esteve na missão do Gungo, na diocese angolana do Sumbe, ao serviço do grupo missionário Ondjoyetu. Ao regressar a Portugal percebeu que a experiência não tinha acabado. Voltou e completa agora um novo ano de missão.

Agência ECCLESIA – Como surgiram os primeiros sinais de querer ser missionária?

Ana Sofia Pereira (ASP) – Os primeiros sinais começaram muito cedo. Estava na escola primária quando ouvi os missionários falarem sobre a missão e eu pensei que um dia quando crescesse iria querer ajudar os outros. Quando terminei o curso percebi: “Agora já sou grande. É agora o momento de querer fazer algo pelos outros. Vale a pena deixar tudo e partir em missão”.

 

AE – E foi isso que fez em 2008.

ASP – Exatamente.

 

AE – Como foi chegar ao Sumbe pela primeira vez?

ASP – É muito emocionante. Quando cheguei a Luanda, estava muito calor e não conseguia respirar. Cheguei ao Sumbe de noite e não conseguia ver nada mas sentia uma grande emoção. Quando cheguei ao Ondjoyetu (que significa «a nossa casa»), senti “esta é mesmo a minha casa”. Não é só o nome do nosso grupo missionário mas senti que o sítio onde nunca tinha estado, que só conhecia por fotografias era um local especial.

 

AE – Como descrever a missão, o local onde a Ana Sofia se encontra?

ASP – A missão divide-se em dois locais distintos – no Sumbe onde se situa a nossa casa e no Gungo onde incide fortemente o nosso trabalho. É na missão do Gungo que fica situada a 80 kms de estrada asfaltada e 130 kms de caminho de terra batida, cheia de buracos, onde uma viagem não tem um tempo determinado, apenas importa chegar.

 

AE – Na missão do Gungo permanecem por períodos de dois dias a um mês…

ASP – Exatamente. A minha primeira experiência missionária foi um mês. Percorremos vários bairros, fizemos visitas e contatamos com um povo muito simples, que não tem nada apenas uma alegria extraordinária.

 

AE – O que fez nesse primeiro mês?

ASP – Estive a fazer formação de culinária, de saúde, de acólitos, de secretários e tesoureiros. Fizemos visitas aos bairros. Nessa altura andávamos muito a pé. Havia dias em que eu andava oito horas a pé. Quando chegávamos aos bairros celebrávamos eucaristia e reuníamos com os responsáveis para perceber quais as maiores dificuldades.

 

AE – Como é que os residentes recebem os missionários?

ASP – Muito bem. Eles não nos conhecem mas recebem-nos com cânticos e com uma grande alegria inexplicável.

 

AE – O que tem vindo a fazer?

ASP – Na primeira experiência missionária o trabalho foi diferente. Os dois primeiros anos foram muito semelhantes ao mês que descrevi, ou seja, trabalho social, com jovens e crianças na área pastoral, formação de catequese e para os sacramentos.

Desde 2011, os primeiros meses foram dedicados à construção da segunda fase da nossa casa. Foi uma forma de contribuir através da minha área de formação mas pegando num pincel e na trincha para pintar.

Agora que a obra acabou, estou envolvida num projeto de agricultura que estamos a desenvolve. Tenho colaborado com o projeto das manilhas (tubos para fazer depósitos de água para regar culturas e para uso doméstico). Tirei a carta de pesados para poder conduzir um camião que temos e ajudar as pessoas a transportar os bens que vão fazendo falta no Gungo.

 

AE – O que é que uma portuguesa faz de diferente junto da população do Gungo?

ASP – Partilha outros conhecimentos, mas também recebe muito. Os missionários não vão apenas para dar, recebe-se muito. É uma troca que se faz, tenho outros conhecimentos que eles não têm.

 

AE – O Gungo é uma região montanhosa que foi muito afetada pela guerra, onde a população pratica uma agricultura rudimentar, onde falta muita coisa – água potável, energia elétrica, assistência médica – é uma realidade muito diferente da que conhece em Portugal. O que a fez voltar?

ASP – Foi o povo e foi Deus. Sentir que Deus me chama, em primeiro lugar, a estar aqui, sentir que este povo continua a precisar de mim – dos meus conhecimentos, do amor que lhe posso dar. Este povo é especial e agarra-nos o coração.

 

AE – A primeira missão ficou incompleta?

ASP – Sim. Em 2010, na véspera de regressar a Portugal, pensei ficar mais tempo, mas o coordenador da missão, o padre Vítor Mira, disse-me: «é fácil prolongar a missão; é mais difícil chegar à nossa terra e perceber lá se a nossa missão terminou ou não. Se não tiver terminado, então ter a coragem de deixar tudo outra vez e regressar».

Quando cheguei a Portugal senti que a minha missão não tinha acabado e por isso decidi voltar.

 

AE – A sua postura enquanto missionária foi diferente entre a primeira experiência e a atual?

ASP – A própria missão vai mudando.

 

AE – O que muda, a pessoa?

ASP – A pessoa muda sim, mas o próprio trabalho muda. Havia tarefas que em 2008 nós fazíamos de determinada forma e hoje vemos, com a experiência, que as prioridades se alteram. Isso também nos transforma.

 

AE – Vê a missão de uma forma diferente, agora?

ASP – Continuo a sentir que há muito para fazer e que nunca vamos conseguir fazer tudo.

 

AE – Quais são as maiores dificuldades?

ASP – Uma grande dificuldade é a linguagem. Em Angola fala-se o português, mas há uma língua o umbundo, que sendo português é diferente. Eles têm dificuldades em nos entender e nós a eles.

 

AE – Muitos dizem que o sorriso é a melhor forma de comunicação…

ASP – Os gestos, o amor, os mimos são grandes gestos de comunicação que todos os dias colocamos em prática.

 

AE – Há outras dificuldades?

ASP – As nossas prioridades podem não ser as prioridades do povo. Nós preocupamo-nos com a água e as queimadas. Para eles beber água contaminada não é importante. Para eles morrerem sete filhos é normal. Há choques culturais, um ritmo e um valor que se dá à vida que são diferentes.

 

AE – O que tem aprendido na missão?

Essencialmente a amar, a aceitar o outro como ele é, mesmo que isso nos custe.

 

AE – Esta é uma missão muito rezada? Só pode ser assim?

ASP – Sem dúvida. Nós estamos aqui porque Deus nos chamou.

 

AE – A Ana deixou o seu emprego para ir para Angola, ser missionária num local que não tinha nada. Esse cenário ajudou-a a relativizar a crise que Portugal enfrenta?

ASP – Sem dúvida. Quando cheguei a Portugal, em 2010, já se falava da crise e eu pensava que havia pessoas a viver em piores condições e a viver com menos. Aí dá-se valor ao que não é importante. Isso fez-me ter a coragem para voltar a despedir-me em 2011.

 

AE – Como é o seu dia a dia?

ASP – O dia a dia no Gungo e no Sumbe são diferentes. Mas o principal da nossa missão é no Gungo e por isso vou deter-me aí. O dia começa cedo, pelas 6 horas da manhã, para que meia hora depois nos juntemos em oração. Depois tomamos o pequeno-almoço, que aqui se chama o mata-bicho. Pelas 8 horas iniciamos a formação ou o trabalho na lavra, conforma a atividade.

Pelo meio dia e meio almoçamos e pelas 14 horas retomamos os trabalhos, por vezes diferente do período da manhã.

Às 18h30 celebramos eucaristia e no fim jantamos. Pelas 20 horas rezamos o terço com a comunidade. Normalmente depois há trabalhos para preparar e assim se fica até à meia-noite ou mais.

 

AE – Nunca são tantas as pessoas que partem como as que estão aí para vos receber…

É incrível que há pessoas que andam oito horas a pé para ir ter connosco, para aprender um pouco mais. Falo de crianças de seis, sete, oito anos, falo de mamãs que andam durante dois dias, chegam carregadas de coisas para ficarem uma semana connosco.

Isso dá-nos uma força. Nós deixamos tudo para vir, mas eles também fazem sacrifícios.

 

AE – O que procuram essas pessoas?

Normalmente vêm para um trabalho ou para uma formação de uma semana – preparação para um batismo, por exemplo. Nutras ocasiões vêm para trabalhos comunitários. A equipa procura integrar as duas vertentes para que as pessoas, nas suas deslocações, possam dar e receber. Procuramos criar condições para as receber melhor. Neste momento as nossas condições não são boas, mas as condições em que as pessoas ficam são bem piores.

 

AE – O que quer dizer com isso?

A nossa casa no Gungo era a casa da missão do tempo colonial, que foi destruída no tempo da guerra. A capela é um salão, sem portas nem janelas, onde os cabritos dormem dentro. Não temos salas para a formações, por vezes decorrem debaixo das árvores.

As pessoas dormem ao relento e nos dias de frio custa muito. A nossa casa tem gravilha, não é isolada, mas quem dorme ao relento passa muito frio. E as pessoas não deixam de vir apesar de saberem que na missão vão passar frio.

 

AE – Vão à procura de algo que a Ana Sofia lhes dá. Sente que tem feito diferença?

Às vezes é uma diferença que não se vê no imediato. Batalhamos, batalhamos e desmotivamos porque não se veem resultados e questionamos se valerá a pena. Mas num trabalho que começou de forma contínua desde 2006, vemos diferenças. Quem esteve cá nessa altura nunca viu o resultado do trabalho que fez.

Quando cheguei em 2011 vi resultados pelos quais tinha batalhado em 2009 e 2010. E afinal vale a pena.

 

AE – Há olhares que marcam?

Sem dúvida. Desde os mais novos aos mais velhos.

 

AE – É isso que faz querer continuar?

As pessoas sorriem mesmo quando têm vidas difíceis. Os dias são cansativos mas percebemos a coragem das pessoas, apesar do sofrimento.

Em Portugal quando nos cruzamos com alguém, geralmente ouve-se um lamento. Aqui, cruzamo-nos com uma pessoa na estrada, a andar com roupa às vezes esfarrapada, pessoas que não têm nada mas dizem que só por nos ver estão ótimas. Para o angolano está sempre tudo bem.

 

AE – Consegue perceber uma altura em que a sua missão vai terminar?

É difícil porque a missão nunca acaba, principalmente nesta terra onde falta tudo. Há muito trabalho para fazer. Neste momento não tenho ainda um prazo para o fim da missão. Mas sinto que seja cá ou em Portugal posso ser missionária por este povo. Durante o ano e meio que estive entre missões, não deixei de trabalhar na missão, mas de uma outra forma.

 

AE – O grupo Ondjoyetu tem essa possibilidade, uma vez que a missão do Gungo é desenvolvida em geminação com a diocese de Leiria – Fátima. Mantêm uma equipa de retaguarda e uma equipa da frente. Como é a experiência de continuar em missão em Portugal?

Para podermos estar em Angola, o grupo missionário precisa de fundos. Em Portugal há que trabalhar. Fazemos artesanato, promovemos festas, participamos em feiras para financiar a equipa da frente.

 

AE – O que vai fazer agora?

Agora vou preparar o almoço para amanhã. Bem cedo saímos para Luanda e como comer em Luanda é muito caro, levamos sempre o farnel. Vou fazer o almoço e o jantar.

LS

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Agência ECCLESIA

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