Um Papa que admiro e amo

Comentário de D. António Marcelino, Bispo de Aveiro Era bispo há três anos quando João Paulo II foi eleito. Vi partir Paulo VI, que me deixou roído de saudades e com marcas de gratidão que nunca mais se apagam. Como toda a gente, mal tive tempo para me aperceber da riqueza que estava no sorriso de João Paulo I, o Papa que partiu logo que chegou. Tinha nomes em mente, bem consciente que nada viria por aí, mas confesso que nunca pensara no Arcebispo de Cracóvia. Não desejava um italiano, mas não vislumbrava como é que podia não ser assim. Em plena auto-estrada a rádio deu a notícia. Nem percebi o nome, só que era da Polónia. Polaco? Mas quem e a que propósito? Quando apareceu à janela, percebi que o estilo era outro. Aquele grito inesperado, “Não tenhais medo!”, deu-me volta cá por dentro. Temos homem e homem para este tempo. Dois anos depois estávamos cara a cara. Foi no Sínodo dos Bispos sobre a Família. Não lhe perdia um gesto, seguia o seu olhar pela sala, percebi o sinal de uma cuidadosa atenção ao que se ia dizendo. E lá veio o dia do almoço à sua mesa. Eram os bispos espanhóis e os portugueses. “Ustedes hablan castellano”… “Os portugueses falam português”. Estava dado o tom. Como ia ser possível? Quando nos escorregava a língua para o italiano para lhe facilitar a compreensão, logo vinha a advertência: “Diz na tua língua…” Guardo desse dia uma fotografia curiosa em que parece que o Papa me está advertindo, de tal modo o seu dedo em riste assim faz pensar. Os cardeais de Madrid e de Lisboa sorriem. Segurando a minha mão, repetia para me responder e para fixar: “Esperamos, esperamos”. Eu dissera à despedida: “Esperamos o Papa em Portugal!” E ele respondeu à letra: “Esperamos”. Ao longo destes vinte e cinco anos muitas vezes estive de perto com o Papa e lhe pude falar. São muitas as recordações. Três sínodos, um mundial e dois europeus, simpósios, as suas vindas a Portugal, a ida com ele em peregrinação a Subiaco, várias visitas “Ad Limina”, refeições à sua mesa, concelebrações na sua capela particular, encontros com os bispos da Europa e mais ainda por vários outros motivos… Das últimas vezes, foi quando tive de o saudar em nome dos bispos portugueses, uma vez que, por motivo de doença, o Presidente da nossa Conferência Episcopal, Cardeal D. José Policarpo, não estava presente. Nada disto é importante para a nossa salvação, mas é uma bagagem interessante da nossa memória pessoal. Deste baú de recordações tiro alguns factos que tiveram para mim especial sentido. Foi no I Sínodo da Europa em 1991. Tinha caído o muro de Berlim. O tema do Sínodo era uma palavra significativa da Epístola aos Gálatas: “Livres com a liberdade com que Cristo nos libertou”. O momento era de desafio aos cristãos para uma acção conjunta de acolhimento evangelizador e de permuta de dons. O Papa convidou para participar nos trabalhos sinodais os grandes patriarcas ortodoxos do Leste europeu. Fora um gesto de aproximação e também de união de esforços. Eles declinaram o convite e mandaram apenas o metropolita Spiridon que residia em Itália, com uma missão da qual daria conta na sala sinodal, quando lhe fosse dada a palavra. E nessa tarde, com o Papa a presidir, o enviado ortodoxo desferiu um ataque inesperado ao Papa, à Igreja Católica e à sua acção. Nem se respirava. Todos estávamos perplexos. Como vai isto terminar? João Paulo II ouvia serenamente, voltado para o metropolita. Quando este terminou, o Papa ergueu-se rapidamente, foi ao seu encontro e deu-lhe um grande abraço. As palmas fizeram tremer a sala. Em muitos olhos, lágrimas. Alguns dias depois, numa solene vigília na Basílica de S. Pedro, os oradores da noite foram Spiridon e o Papa… Só na Igreja. Os bispos do Norte acabavam a visita “Ad Limina”. Foi em Novembro de 1992. O Papa dirigiu-nos a palavra com as suas orientações. E, no meio do discurso, fala dos Congressos de Leigos já realizados entre nós, da I Semana Social e do Sínodo Diocesano de Aveiro, ainda a decorrer, estimulando iniciativas como estas para o amadurecimento das comunidades cristãs e para a formação de leigos, apostolicamente disponíveis e preparados para a missão. No nosso encontro pessoal eu falara ao Papa da minha preocupação de fazer chegar ao povo o Concílio Vaticano II e de como o estávamos tentando com o Sínodo Diocesano. Nunca pensei que esta minha preocupação, no meio de tantas que ele ouvia naqueles dias, lhe ficasse presente e muito menos que a trouxesse para a sua mensagem. Em Roma, e dirigindo-me ao Papa, o lugar que ocupava dava-me azo para insistir que era importante que ele fosse a Fátima beatificar os Pastorinhos Francisco e Jacinta. As correntes à sua volta eram fortes e contrárias. Dois dos grandes pediram-me que não insistisse. “O Papa não iria a Fátima!”. Apercebi-me que ele estava a seguir a nossa conversa e que ia abanando com a cabeça, naquele gesto que lhe é muito próprio, como que a dizer, “Eu é que sei se vou ou não…” Outros, e de muitos modos, também foram insistindo. E o Papa, ao arrepio de muitas pressões contrárias, comunicou então ao Bispo de Leiria-Fátima, também em Roma e a quem ele mandara chamar, que iria a Fátima e que o dissesse sem medo. Na grandeza comovente da celebração naquele dia 13 de Maio, aproximei-me dos que me afiançaram que o Papa não viria e disse-lhes ao ouvido: “Ainda duvidam que era aqui que o Papa devia beatificar os Pastorinhos?” —“Tem razão, tem razão.” Homem de fé, apaixonado por Cristo e fascinado pelo absoluto de Deus, homem corajoso e sem medo, homem livre e decidido a ir até às últimas consequências, homem próximo e fraterno… Homem que abre, sem pejo, a sua alma, que fascina jovens e adultos, simples e eruditos; que acorda o mundo, denuncia injustiças, proclama compromissos, mostra que a Igreja só existe para servir. A história há-de guardá-lo em páginas merecidas como o grande arauto da paz, o intrépido defensor dos direitos humanos, o cristão universal. O mundo há-de recordá-lo como um amigo. A Igreja há-de senti-lo, até ao fim, na eloquência do seu testemunho evangélico e como um património que o tempo não poderá destruir. As lágrimas de muitos, quando ele partir, serão de louvor e gratidão. As palavras e os gestos que nos deixa marcarão um rumo com sentido certo. Quem esteve atento à mensagem de João Paulo II, ficou mais apaixonado por Cristo e mais próximo dos outros, com um renovado amor à Igreja e à sua missão no mundo. D. António Marcelino Bispo de Aveiro

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top