Um deserto feito de quatro elementos

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Qual o significado espiritual do deserto? Uma pergunta mais importante hoje do que nunca. E não porque vivamos momentos de escassez e grandes dificuldades, mas talvez por vivermos momentos de abundância anestesiante que nos conduzem a uma dormência espiritual. Esses são os momentos que me preocupam mais e me levam a reflectir neste período quaresmal. Mas não só a mim. Também ao Papa Francisco na Audiência Geral no passado dia 26 de Fevereiro.

Foto de Fabian Struwe em Unsplash

Uma das características do deserto é o silêncio. Não existe ruído, apenas o vento e o nosso respirar. A vida urbana não é apenas pautada pelo ruído do trânsito, mas também todo o manancial de informação e conteúdos, produzidos pelos outros e que nos entram pelos olhos, ouvidos e pensamentos adentro, entretendo, mas dando pouco espaço para o que nos é próprio.

O silêncio interior é a expressão de quando damos espaço para que as palavras que emergem do nosso interior nos falem. E depois de se esgotarem, libertos da azáfama interior, muitos entendem este vazio como algo que nos deixa desconfortáveis, mas não será antes o espaço aberto para acolher outra Palavra? Uma Palavra de tem um rosto e um nome?

Uma outra característica do deserto é a renúncia. Eu tenho verificado que existem muitos apegos modernos, e não me refiro aos materiais, mas aos mentais. Vejo muitas pessoas apegadas às gratificações instantâneas que servem de validação da sua existência e sem as quais os momentos de tédio tornam-se um verdadeiro tormento.

Renunciar é viver desapegado das validações dos outros e um convite a encontrar essa validação numa saudável ecologia do coração (Papa Francisco). Há quem viva da razão produzida pelos seus eruditos comentários. Não estará apegado? A saúde ecológica do coração é um convite a renunciar aos comentários que, segundo alguns estudos, torna as pessoas mais negativas. A ecologia do coração procura a boa prática das palavras bondosas e que edificam os outros à nossa volta. Palavras que expressam a gratidão por aquilo que por nós fazem e, ao pronunciá-las, não imaginamos o que por eles fazemos também.

Uma terceira característica do deserto que o Papa Francisco refere é ser o lugar do essencial. De certo modo, o essencial liga-se com o desenvolvimento da capacidade de renúncia. Será que o tempo dedicado à nossa vida digital é adequado? A solução explorada por milhões de pessoas em todo o mundo é a de se retirarem das redes sociais durante 30 dias e substituir por outras actividades, algumas, certamente, que há muito deixaram, como a leitura, o jogo, ou uma simples boa conversa ao sabor de um café ou chá. Porém, quantos não param de ler neste momento porque não suportam mais esta ideia de desatafulhar digital. Mas o objectivo é simples: ajudar-nos a compreender o que é, realmente, essencial na nossa vida. E quais os valores que orientam as nossas escolhas. Por fim, há uma última característica do deserto e que creio ter sido mal traduzida para português no site do Vaticano.

O deserto é o lugar da solitude, não da solidão. Quando anteriormente reflecti sobre uma boa conversa, referia que o “teólogo Paul Tillich dizia que a linguagem criou a palavra solidão para expressar a dor de estar só, enquanto a palavra solitude foi criada para expressar a glória de estar a sós.” Parecem sinónimos, mas creio que chegou o tempo de distinguir estas palavras. A solitude é, de certo modo, um antídoto para a solidão, pois, quem sabe encontrar-se com os seus pensamentos, melhor saberá encontrar-se com os pensamentos dos outros.

Silêncio, renúncia, o que é essencial e a solitude. Quatro elementos que somos convidados a aprofundar este ano no caminho quaresmal pelo deserto interior. Seguramente que bem vividos servirão para encontrarmos uma Voz interiormente que suavemente nos fala sempre e a cada palavra diz – ”amo-te imensamente.”

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Agência ECCLESIA

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