Bispo do Funchal é o delegado da Conferência Episcopal na comissão dos bispos católicos da União Europeia. Em entrevista à Ecclesia e Renascença, a respeito da presidência rotativa da UE, D. Nuno Brás fala dos desafios sociais, das questões levantadas pela pandemia e dos valores que estão na base do projeto comunitário
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Entre as prioridades da presidência portuguesa estão a recuperação económica, a concretização do pilar europeu dos direitos sociais e o reforço da autonomia de uma Europa aberta ao mundo.
Com que expectativas parte para os próximos seis meses de presidência portuguesa?
Aquilo a que Portugal se propõe é de facto ambicioso, mas isso é importante. É importante apontar para o mais alto. Obviamente que nem todas as questões ficarão resolvidas, mas se nós dermos vários passos para a resolução destes problemas será um contributo muito importante e eu espero que Portugal na sequência das outras presidências seja capaz de dar esse contributo.
Sendo Portugal um país periférico, com uma divida pública muito acentuada; é de crer que possa dar particular atenção às questões sociais. Podemos estar perante uma boa oportunidade para que as instituições da Igreja Católica possam ser ouvidas, tendo em conta por exemplo que para maio está marcada a Cimeira Social?
Eu espero que sim. A Igreja Católica tem desde há 40 anos esta instituição – a COMECE – que é precisamente uma instituição que tem este objetivo de ir acompanhando os processos legislativos em Bruxelas e de ir acompanhando as várias iniciativas da União Europeia. Creio que a questão social é obviamente uma das questões importantes. Não é a única, mas creio que a partir da presidência portuguesa e a partir de todo este trabalho que é feito junto das instâncias de decisão será obviamente uma boa oportunidade para que aquilo que são as propostas do Papa Francisco possam ser tomadas a sério. Eu espero por isso mesmo que a presidência portuguesa seja esta oportunidade e que na presidência portuguesa se possa construir ou dar passos para construirmos algo cada vez mais parecidos com as propostas do Papa.
A questão social está, por esta altura, muito ligada à preocupação com a pandemia. Faltou articulação na Europa no combate à Covid-19?
Penso que sim. Creio que isso foi claro. No início houve mesmo uma certa desorientação e houve ali uns momentos em que se correu o risco de os próprios cidadãos europeus dizerem e se interrogarem: afinal de contas para que serve uma União Europeia que não ajuda e que não é esta plataforma solidária em que todos possam ajudar a todos. Foi um momento inicial, mas creio que logo depois houve esta presença unificadora e uma presença de apoio aos Estados, como vemos – seja na compra e distribuição da vacina – seja depois também nestes instrumentos económicos e financeiros que irão ajudar a uma recuperação que esperemos seja o mais breve possível porque quanto mais demorar a recuperação, obviamente mais dificuldades as pessoas irão passar.
Falamos da questão social. E os problemas associados à pandemia são visíveis em todos os quadrantes. Tivemos uma União Europeia a dar sinais perturbadores quando demorou na concretização de um entendimento em relação à denominada bazuca (pacote financeiro para fazer face à crise)?
Eu creio que nós temos de perceber que a própria União Europeia não é um Estado como é o Estado português, o espanhol ou o alemão. Existe esta necessidade de acordo entre 27 países e isso traz sempre consigo alguma demora. Eu sei que o ritmo das decisões no mundo contemporâneo é um ritmo quase avassalador e exige-se uma resposta imediata. Mas eu recordo por exemplo que também na crise económica anterior, quando as dividas dos Estados estavam em dificuldades, houve alguma demora por parte da União Europeia, mas que depois a resposta foi eficaz. Creio que aconteceu o mesmo neste caso. Houve alguma demora, mas espero que a resposta seja verdadeiramente eficaz e que possa chegar a todos… verdadeiramente a todos. Ou seja, que não haja meia dúzia de instituições, meia dúzia de pessoas que fiquem com todas estas ajudas e que depois todos os outros tenham de se desenrascar porque não lhes chegou rigorosamente nada. Eu creio que não, espero que não, fazemos votos para que isso não aconteça.
Mas é um receio?
É sempre um receio, obviamente. Quando há todo este montante de dinheiros que estão envolvidos há sempre obviamente este receio que é justificado até por algumas outras situações do passado, Mas obviamente queremos acreditar que desta vez não irá acontecer e que verdadeiramente este apoio irá chegar a todos de uma forma particular aqueles que de facto mais necessitam.
A gestão do processo de vacinação, com todos os Estados Membros a terem acesso à Vacina ao mesmo tempo em número proporcional à sua população, está, desse ponto de vista, a ser diferente?
Por muito que nos custe, pois obviamente já todos queríamos estar vacinados e quando nos dizem que só seremos vacinados lá para junho, fins de maio, não deixa de nos causar uma certa tristeza, porque isso nos irá limitar os movimentos. De qualquer forma temos que reconhecer que aquilo que está a acontecer com as vacinas, queremos acreditar que será também o que irá acontecer com a ajuda económica. E portanto, não temos neste momento nenhum motivo para não ter esperança.
Este sim é um bom exemplo do reforço do papel da União Europeia?
Penso que sim, mas não apenas este. De facto, neste momento, é muito difícil nós olharmos mesmo para nós portugueses e pensarmos o que seriamos sem a União Europeia. Com todos os defeitos que tem, com todas as demoras que existem; creio que este processo da integração europeia é neste momento um processo irreversível, apesar enfim daquilo que aconteceu com o Reino Unido. Mas creio que neste momento, os europeus não se vêm sem a União Europeia, seria muito difícil. Trata-se de facto de um passo; de um passo com os seus defeitos, com as suas dificuldades, com muito daquilo que é o politicamente correto, mas de qualquer forma tem tantos aspetos positivos que neste momento seria muito difícil percebermos a Europa sem a União Europeia.
A pandemia colocou vários assuntos em segundo plano e a questão das migrações não foi exceção. A Obra Católica Portuguesa das Migrações diz esperar que a presidência portuguesa seja uma influência positiva para implementar uma abordagem europeia conjunta da migração. Que expectativas tem sobre esta negociação, sabendo nós das resistências de alguns estados?
A Comissão Europeia tem em mãos uma nova proposta, mais favorável, para o acordo encontrado em Dublin. Esse foi o sentido da reunião que tivemos, há meses, via zoom, dos bispos que são delegados das Conferências Episcopais na COMECE. A opinião é que esta nova proposta da Comissão era mais favorável ao próprio acolhimento dos migrantes e, portanto, iria no bom caminho.
Penso que a presidência portuguesa, pelo facto de Portugal ter manifestado maior sensibilidade ao tema dos migrantes, vai fazer com que todo este processo de revisão do Acordo de Dublin possa acontecer de uma forma mais rápida e se possa chegar a um novo acordo. Um acordo que respeite a pessoa, enquanto tal, em primeiro lugar.
Os migrantes causam dificuldades, problemas, não podemos deixar de ter isso em conta, mas também não podemos deixar de reconhecer que, antes de tudo isso, antes de qualquer problema, são pessoas. E são pessoas que pedem a nossa ajuda, nós não podemos deixar de a oferecer, de os acolher como pessoas que são.
De onde poderão surgir maiores dificuldades a estes acordos? Dos países onde, nesta altura, governam partidos de caráter mais nacionalista?
Esta é uma questão europeia, não é uma questão da Itália, da Grécia… É uma questão verdadeiramente europeia. Por muito que seja difícil, por muito que seja se demore a chegar a um entendimento real – que olhe para as pessoas como pessoas -, creio que havemos de chegar lá. Vejo todo este processo com muita esperança e mesmo algum país que ponha mais entraves – e é natural que algum o faça -, não deixará de ir cedendo a esta evidência: cada migrante é, antes de mais nada, uma pessoa, e é como pessoa que o havemos de tratar.
Em outubro último, para assinalar o 50.º aniversário das relações diplomáticas entre a Santa Sé e a União Europeia, o Papa publicou uma mensagem dedicada à União Europeia, apelando a uma resposta comum perante a pandemia e à preservação dos valores fundamentais do projeto comunitário. Continua a ser possível sonhar a Europa a partir da tradição judaico-cristã que se espelha no património de fé, arte e cultura?
A Europa de hoje – com muita tristeza o digo, tive esta intuição quando visitei a Bélgica, há um tempo -, em termos culturais, de arte, de construção, de pintura, de música, orgulha-se daquilo que são as marcas cristãs. Mas depois o povo que vive na Europa já tem muito pouco a ver com aqueles que construíram todos esses monumentos. Creio que esta raiz cristã, que está na raiz da própria construção, da integração europeia, não só é qualquer coisa a ser recuperada, mas também está de facto ainda presente.
Como classificaria o diálogo institucional que a Comissão dos Episcopados da União Europeia (COMECE) vem promovendo há muito tempo com as instituições comunitárias?
O diálogo é muito bom. No encontro que tivemos em outubro, o vice-presidente da Comissão teria estado presente, se a reunião tivesse acontecido presencialmente. Estava também o cardeal Parolin, secretário de Estado do Vaticano. Há uma cordialidade, a palavra que marca as relações da COMECE com a União Europeia.
Depois, obviamente, existem algumas questões em termos de ética ou de relacionamento – por exemplo, a relação com África, um dos temas que a COMECE tem muito no coração – em que a Igreja está claramente contra as posições oficiais da União Europeia e não pode deixar de dizer aquilo que pensa. A COMECE e o próprio núncio apostólico junto da União Europeia, representante da Santa Sé, dizem o que pensam e fazem pressão para que as opções e decisões comunitárias vão noutro sentido.
Se Portugal é um país periférico, a Madeira é uma das regiões ultraperiféricas. Qual a importância do projeto europeu para este tipo de regiões?
A Madeira vive do turismo, sejamos claros, e vive do turismo europeu. Agora, obviamente, uma boa fatia vem da Inglaterra e nisso a saída do Reino Unido da União Europeia causa alguns problemas.
Essa é uma das más notícias, a outra é o aumento dos casos de Covid na Região…
Exatamente. Mas não é só da Inglaterra, a Madeira tem muito turismo alemão, polaco, italiano e francês. Portanto, podemos dizer que estar na União Europeia facilita muito que todo este conjunto de pessoas visite habitualmente a Madeira, constituindo a grande fonte de riqueza da população da ilha.
A falta de turistas e as dificuldades na circulação de pessoas fazem as pessoas passar um mau bocado. Por isso, também, há necessidade de ultrapassar toda esta situação sanitária e regressar o mais depressa possível a um fluxo possível que faça entrar receitas económicas na ilha, porque efetivamente, de uma forma direta ou indireta, 80% da população vive do turismo europeu.
Se na 1ª vaga, a Região passou pela pandemia por entre os pingos da chuva, nesta altura é uma preocupação acrescida…
Claro. Creio que na primeira parte da pandemia, as autoridades sanitárias conseguiram, e muito bem, fazer com que a Madeira fosse um destino turístico com quase zero casos de Covid. Agora, a situação é mais alarmante, o Governo Regional tomou algumas iniciativas no sentido de minorar esses problemas, fez um confinamento de fim de semana. Isso causa problemas aos cristãos das ilha, mas são medidas, de qualquer forma, que visam a saúde de todos e, obviamente, não podemos também nós de contribuir.
Precisamos de tomar medidas drástica para que, uma vez mais, a Madeira possa ser considerada como um lugar onde toda a gente pode vir sem o medo de infeções. Vai ser mais difícil, mas estou esperançado de que conseguiremos debelar estes vários surtos que estão a surgir, depois do Natal e fim de ano, que são as festa da ilha. É o preço de fazer essa festa, nem todos foram capazes de respeitar as regras mínimas e já sabíamos que isso ia acontecer. Não é nada de que não estivéssemos à espera, mas havemos de ultrapassar.