O coordenador da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR) e diretor-geral do Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) alerta para existência de casos que podem constituir situação de exploração de mão de obra
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Que balanço faz do processo de acolhimento em Portugal?
Bom. Comecemos pelo número. É um número grande e pequeno. Diria que é pequeno quando comparado com a realidade extraordinária que está a ser vivida pelos países que fazem fronteira com a Ucrânia. E aí sim, acolhermos 37 mil, ou termos tido 37mil pedidos de proteção internacional, o que equivale a terem chegado a esse mesmo número de pessoas a Portugal. Nem todas permanecerão, ou algumas delas já deverão ter saído, mas, independentemente disso, é um número grande para Portugal. Portugal acolheu neste espaço tempo, em cerca de dois meses de conflito, um número próximo às 40 mil pessoas é de facto extraordinário. No entanto, numa visão mais ampla, Portugal é o país mais extremo ocidental do outro lado do conflito. E aí sim, estamos a assistir à chegada de 6 milhões de pessoas. Os números já apontam para 6 milhões de refugiados oriundos da Ucrânia e esses números é que são extraordinários.
E sobretudo pela rapidez com que isto ocorre!
Sim. O balanço que faço é que o acolhimento em Portugal foi feito no início de uma forma algo confusa e muitas pessoas chegavam, não sabiam para onde iam, com quem, e onde é que iriam ser acolhidas. Os movimentos solidários não comunicavam com as autoridades. Nem sempre havia uma articulação correta. O próprio modelo de acolhimento era pouco claro e aquilo que nos parece é que houve coisas positivas. Muitas mais positivas do que as negativas no balanço que podemos fazer até agora. Houve uma resposta, em termos nacionais e europeus, de franca solidariedade para com as pessoas deslocadas à força da Ucrânia.
Para além dessas situações que aponta, a barreira linguística, é uma das principais dificuldades ou a grande dificuldade?
A barreira linguística é quando as pessoas não conhecem a língua do país de acolhimento é uma barreira sempre. Agora eu creio que, no caso dos cidadãos ucranianos, não se tem verificado isso, quando comparado com outros migrantes que nós acolhemos porque existe já em Portugal, há muitos anos, uma comunidade ucraniana residente e, portanto, isso permite de alguma forma que haja uma boa rede de intérpretes naturais, de pessoas que vivem em Portugal e falam ucraniano e português.
E isso também contribuiu, para o para o facto de, apesar de sermos bastante periféricos relativamente ao resto do espaço europeu, termos tantos refugiados no nosso país?
Sim, esses são pequenos aspetos de condições que permitem e facilitam a permanência e a integração das pessoas em território nacional. Mas diria que não é a condição mais determinante. Acho que aqui as condições mais determinantes estão no facto de as pessoas poderem projetar a sua vida no país de acolhimento, sentindo-se em liberdade e em segurança. Depois, há coisas muito objetivas e práticas: poderem ter acesso à habitação, seja o trabalho para os filhos, possam ter acesso à educação. E depois os aspetos também relacionados com a dimensão comunitária, isto é, ter aqui amigos, ter pessoas com quem vivem, com quem falam.
Em relação a essa matéria, uma pergunta que nós queremos fazer tem a ver com a entrevista recente que deu, em que deixava algumas críticas à ideia que foi passando por alguns setores, até da parte do Estado, de que estaríamos perante uma nova vaga de emigração e não de refugiados, quando é precisamente o contrário, pois estamos a falar de pessoas que saíram à força do seu país por causa de uma guerra. Essa clarificação do estatuto esta feita?
Não, não no sentido prático, burocrático e administrativo do termo. As pessoas, do ponto de vista do discurso, falam em refugiados da Ucrânia. O modelo de acolhimento legal em Portugal foi bem decidido, na nossa opinião. Isto é, permitiu-se que as pessoas tenham um rápido acesso a um conjunto de elementos burocráticos – números de segurança social, número de identificação fiscal, acesso à saúde, número de utente do sistema de saúde… Tudo isso é extremamente positivo e rápido. Portanto, as pessoas não entraram pela via de primeiro fazer o pedido de asilo, mas depois é preciso pensar que estamos perante processos muito mais longos. Não devemos olhar para estas pessoas como apenas imigrantes, porque de facto, aquilo que elas trazem com elas é uma história de bastante sofrimento, que é aquilo que encontramos no trabalho com refugiados. Isto é, são famílias separadas, são pessoas que passaram por um processo traumático. É nesse sentido que eu referi que devemos olhar para estas pessoas com o perfil que elas têm. Se pensarmos nestas pessoas apenas como mão de obra de trabalho, isso é demasiado redutor. Sobretudo não podemos canalizar a nossa energia e atenção para a dimensão, por exemplo, da empregabilidade destas pessoas quando há outras questões nomeadamente quanto ao processo de acolhimento. E depois, tudo isso acabou por se tornar muito evidente a propósito desta questão que, entretanto, acabou por dominar um pouco a atenção mediática que tem a ver com a questão de Setúbal. Isso não acontece com imigrantes. Isso só acontece a refugiados.
Nesse processo de acolhimento é preciso parar um pouco para refletir precisamente sobre toda essa polémica disputada em Setúbal. Que erros é que detetou e que lições devemos tirar de todo esse processo?
Eu penso que existe ainda muita incerteza quanto ao procedimento no acolhimento. Nós entendemos que deve haver melhorias no acesso à habitação. Portanto, o acolhimento de médio e longo prazo deve ser melhorado e não deve ser apenas visto esta dimensão do acolhimento imediato, que também precisa de ser melhorado. A integração em Portugal deve ser também mais focada naquilo que é a permanência de média e longa duração. Porque boa parte destes refugiados eles próprios diziam que vinham por pouco tempo.
Mas no caso de Setúbal é mais do que isso, não é? Porque alegadamente temos uma associação de pessoas ligadas ao regime de Putin, a fazer o acolhimento desses refugiados em enorme fragilidade. Será, portanto, muito mais do que o problema que descreve, pois como dizia há a necessidade de as pessoas sentirem segurança. E provavelmente ao chegarem não se sentiam seguras?
Bem sim é isso. Alegadamente há a possibilidade de informação que as pessoas transmitiram às pessoas que eram responsáveis pelo seu acolhimento no terreno e a informação que pode ser usada para fins dos interesses de uma das partes do conflito e, portanto, desde logo essa suspeita põe em causa aquilo que são os deveres do Estado português de proteção destas pessoas. É tão simples quanto isso. Portanto, independentemente daquilo que nós pensarmos sobre isto, aqui trata-se de o Estado ter o dever de garantir a proteção das pessoas. E quando digo a proteção, não estou a falar só dos que estão aqui, mas também dos seus familiares que estão no país de origem. Isto é uma regra básica que, no acolhimento de refugiados.
As diferentes instituições – Alto Comissariado, Governo, autarquia – não entraram numa espécie de jogo de passa culpa?
Mas isso é o tipo de comportamento que muitas vezes nós vamos assistindo em Portugal e que tem a ver com a dificuldade de se assumir responsabilidades nesta matéria. Eu acho que em primeiro lugar, o Estado tem que assumir as suas responsabilidades e eu creio que devemos ser esclarecidos de forma muito rápida e clara, sobre quem tem responsabilidades na passagem de informação. Se havia do lado dos sistemas de informação e segurança, a investigação feita em torno desta associação e das pessoas que fazem parte dessa associação, devia ter sido transmitida às autoridades municipais e ao Alto Comissariado a Informação de que estas entidades – até por precaução – estas entidades não deviam participar no processo de acolhimento. Deviam ser excluídas do processo de acolhimento, na minha opinião. Como diz o ditado: depois de casa roubado, trancas à porta.
Um pouco antes, estávamos a falar das prioridades, das questões que são precisas aperfeiçoar, neste processo de acolhimento. Que sinais ou marcas têm chamado mais a atenção na forma como as pessoas chegam?
O primeiro aspeto que eu vejo é que há o reconhecimento destas pessoas pelo apoio, o que está a ser feito pelos cidadãos em Portugal, pelo Governo e o Estado, em geral. Depois, há aspetos que, de alguma forma, constituem parte daquilo que encontramos no perfil de muitos outros refugiados, de muitas outras proveniências: há uma história de sofrimento, de muita dificuldade em compreender imediatamente tudo aquilo que está a acontecer, sentem-se confusas, um pouco perdidas, não sabem muito bem como será o amanhã. Expressam o desejo de regressar…
Muitos dos deslocados já se encontram integrados ou em vias disso, mas há informação de que alguns, como dizia, já sentem essa vontade de regressar à Ucrânia. Tem conhecimento desse tipo de situações?
Sim, todas as pessoas – ou diria 90%, 95% – que acolhemos desejam regressar. Por duas razões que vejo, até em cooperação com os afegãos ou com os sírios: as pessoas acham que a Ucrânia e o governo ucraniano vão vencer esta guerra, há a perceção entre os ucranianos com quem vou contactando de que esta é uma questão de tempo, que cedo ou tarde vão conseguir alcançar a paz, vão conseguir regressar e reconstruir o seu país.
Já houve pessoas a regressar?
Já. Tem havido pessoas que regressam, algumas porque não pensavam ficar mais tempo do que aquilo que ficaram, isto é, um mês, dois meses; outras porque, apesar de a paz ainda não estar não ter sido alcançada, o balanço que fazem é que é preferível regressar a permanecer. Aqui há aspetos como a dificuldade na aprendizagem da língua, dificuldades de inserção, sentirem-se sozinhos, sentirem-se culpados por estarem cá e não e não estarem a ajudar os seus familiares. Há pessoas que sentem que aqui estão bem, estão em segurança, mas os seus familiares não estão e, portanto, é uma situação difícil de suportar.
Houve uma questão que levantou ainda pouco que eu gostaria de voltar a falar dela. Teve a ver com a forma como se processou inicialmente um conjunto de movimentações na sociedade civil. Houve muitas pessoas que manifestaram vontade de acolher refugiados em suas casas, por exemplo. Tem conhecimento de pessoas que têm manifestado dificuldade em manter esse compromisso assumido inicialmente e se pensa que houve demasiado voluntarismo?
Temos encontrado situações dessas. É verdade. Pessoas que manifestaram, participaram e têm participado no processo de acolhimento, numa lógica de curta duração. Aconteceu em muitos lados que as pessoas nem sequer pensaram muito, agiram emocionalmente, foram tomadas decisões emocionais. Depois, por outro lado, quer as iniciativas dos cidadãos, que as próprias autarquias, acabaram – ao encaminhar as pessoas para as respostas de acolhimento – por queimar algumas etapas que teriam sido importantes.
Não houve tempo, para fazer a formação necessária para as pessoas que fazem o acolhimento. Tudo isso tem de ser trabalhado, não se sabe à partida. Uma das dimensões que temos vindo a trabalhar é, justamente, dar formação aos voluntários que participam no acolhimento. Nós criamos uma realidade de voluntariado em Portugal, a que chamamos “comunidades de hospitalidade”, que existem em todo o país: são grupos de voluntários organizados, a quem nós demos formação nas áreas de migrações e refugiados.
Desde o início que a Igreja alertou para os riscos associados a este movimento de pessoas, chamando a atenção para o tráfico e para os abusos. À PAR e ao JRS chegaram denuncias deste tipo?
Acompanhamos algumas situações que podem constituir situações de abuso de posição no acolhimento, é verdade. Temos conhecimento de algumas situações em que, quem acolhe, acaba por não conferir à pessoa que foi acolhida condições justas. Dou o exemplo de situações que existem, que têm sido relatadas: pessoas que acolhem alguém numa casa e oferecem também trabalho, mas depois não há pagamento de salário porque a pessoa supostamente está a viver na casa. Isso é absolutamente errado, pode constituir uma situação de exploração de mão de obra. Nós, o que fazemos é ajudar a retirar as pessoas refugiadas destas situações e reportamo-las às autoridades competentes.
Encerramos esta conversa com as mensagens do Papa Francisco, com os seus gestos, as suas viagens, que têm mantido o foco da comunidade internacional não só na Ucrânia, mas também no grande drama do Mediterrâneo. É importante esta chamada de atenção sobre o grande problema continua a existir às portas da Europa?
É extremamente importante. A mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial de Refugiados e Migrantes fala em “construir um futuro com os migrantes e refugiados”. Sublinho aqui a palavra “com” porque não é apenas “para”, o Papa Francisco chama a atenção para a dimensão coletiva. Tal como na ecologia, ninguém está fora do problema.
Não são as sociedades mais ricas e mais poderosas que devem construir muros e afastar-se ou estar isoladas. O problema dos migrantes não é um problema apenas dos migrantes, dos refugiados, dos deslocados, é um problema do mundo, global. Vemos que, em muitas partes do mundo, há movimentos migratórios de populações – aliás, apenas uma parte dos migrantes chega à Europa, grande parte das deslocações fazem-se noutros territórios, sobretudo nos países vizinhos de conflitos.
Depois, também as questões ligadas a crises climáticas – secas, situações de intempéries severas, como vimos em Moçambique, por exemplo – obrigam à deslocação de enormes massas de pessoas. A forma como nós respondermos ao drama daqueles que, por condições adversas, têm de sair dos seus países de origem para procurar proteção e refúgio, como olharmos para essa realidade, determina e determinará também o sucesso das nossas próprias sociedades, a humanidade que queremos ser.
Eu creio que o Papa Francisco tem sido uma voz única no mundo; não é a única voz, felizmente, que fala em defesa dos migrantes e dos refugiados, mas é uma voz que tem falado desde sempre. A primeira ação do Papa Francisco no seu pontificado foi deslocar se a Lampedusa, justamente no Mediterrâneo, assinalando a importância deste Mar ser um espaço de hospitalidade, um espaço de acolhimento e não um cemitério. No contexto em que vivemos, também alertar que não pode haver bons refugiados e maus refugiados.
Estas viagens que o Papa fez a Chipre e à Grécia, com passagem por Lesbos, ou a Malta, já com a guerra em curso, alertam para a possibilidade de a comunidade internacional se esquecer da outra parte, olhando apenas e só para o conflito que agora se situa na Ucrânia e com a Rússia…
Nós temos o dever, como europeus, como concidadãos dos ucranianos, de providenciar tudo aquilo que for necessário para minorar o sofrimento dos nossos irmãos. Mas isso não nos pode fazer ter políticas apenas para essa população e esquecer as outras pessoas que também precisam da nossa proteção, precisam da nossa solidariedade. O Papa Francisco, nessa dimensão, tem sido muito claro: somos todos chamados a construir um futuro com os migrantes e com os refugiados