Tributo a Maria Helena da Rocha Pereira

Intervenção de D. Manuel Clemente na entrega do Prémio de Cultura Padre Manuel Antunes 2008 A quarta atribuição do Prémio Padre Manuel Antunes, da Conferência Episcopal Portuguesa, contempla este ano, com toda a justiça e oportunidade, a pessoa e a obra da Professora Doutora Maria Helena da Rocha Pereira. A justiça é devida a quem dedicou e dedica um trabalho de tantos e tão preenchidos anos ao estudo e ensino da Cultura Clássica, com grande excelência internacionalmente reconhecida. “Clássica” se chamou também por ser didacticamente transmitida, tal era a consciência que tínhamos do que lhe devíamos, da literatura à arte, da vida particular à política. E “clássica” era ainda, por nos dar um ponto de partida humanista, suficientemente sólido e global para se tornar numa autêntica “casa comum”. Basta ler os textos do Novo Testamento, para ver como o Cristianismo nascente contou com tal cultura, vivendo nela, mesmo quando a ultrapassava (1). Aliás, caído o Império Romano, foi nas instituições eclesiais que o legado clássico encontrou abrigo e transmissão. Particularmente com os europeus, esta cultura chegou ao mundo inteiro e o actual quadro básico de direitos e deveres em que nos entendemos como “humanidade” é muito subsidiário desse primeiríssimo húmus. Tratando-se de cultura, tem desta o vigor e o perigo. O vigor advém-lhe de ter sido tão propagada e assumida que ainda hoje se subentende, como memória, gosto e comportamento, verdadeiro “caldo cultural” que, à partida, nem se discutiria, tão omnipresente se revela. O perigo advém-lhe disso mesmo: é tão básica e geral, a herança clássica, que corre o risco de não ser advertida, nem sistematicamente transmitida. Isto pode significar tragicamente esquecida. Neste preciso ponto tocamos a oportunidade da presente atribuição do Prémio Padre Manuel Antunes. Verificamos na sociedade portuguesa um maior investimento no ensino tecnológico, compreensível na actual conjuntura social e económica. Em termos de mentalidade, isto vai a par com a força da ciência, no sentido que ela foi ganhando na Europa moderna. Tudo muito certo, tudo insuficiente. De facto, nas mais diversas áreas da sociedade e do trabalho, a modernização e os resultados práticos, vistos apenas do ponto de vista científico e técnico, correm o grande risco de perderem a prevalência humanista. Facilmente, a pessoa humana – cada homem e cada mulher em concreto – pode diluir-se na generalidade dos factores de produção e rendimento. Perigo mais do que evidente, pois é gritante hoje em dia. Ora, se o legado clássico tanta coisa nos traz, é exactamente na imensa profundidade de cada ser humano que ele mais se traduz. E é também aqui que a cultura clássica mais se alia com o “Ecce homo!” que Jesus de Nazaré inteiramente realiza e oferece. Aqui também colhe, hoje como sempre, a advertência evangélica: “ – De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua alma?”. E é por tais razões, de valor e circunstância, que a Conferência Episcopal Portuguesa, através do seu Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, atribui um prémio que transporta o nome doutro grande cultor dos estudos clássicos à Professora Maria Helena da Rocha Pereira, eminente figura deste decisivo campo, cujo trabalho não há-de ser tido por derradeiro, mas sim como elo e garantia de futuro no saber essencial. D. Manuel Clemente, Fátima, 20 de Junho de 2008 NOTA: 1 – Já a própria religião grega ultrapassara outras, mas não a de Israel. Retenha-se este trecho da Autora: “A primeira e mais evidente característica destas divindades [dos Poemas Homéricos] é serem luminosas e antropomórficas, o que, pondo de parte a religião hebraica, que é um caso único e sem paralelo, representa uma superioridade incontestável sobre as demais da Antiguidade. Em vez de potências ocultas e terríveis, temos formas claras, que se comportam e reagem como seres humanos superlativados” (PEREIRA, Maria Helena da Rocha – Estudos de História da Cultura Clássica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª edição, 1967, vol. 1, p. 85).

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