Padre Pedro Quintela, Diocese de Setúbal
Nome estranho: “S. Cristovão de Rio Mau”. Bom, “Cristovão” quer dizer portador de Cristo. Por isso, e de algum modo, todos os cristãos deveriam ser “cristovãos”. Há ainda o nome “rio mau”. Não poderão estar aí representados todos os temporais e aflições desta vida? Como, por exemplo, os deste tempo de pandemia? Enfim, o que interessa é que no “rio mau” há um “cristovão” amigo.
Quinta-feira santa! Dia em que Jesus instituiu a Eucaristia e os Sacerdotes para a fazerem em memória d’Ele! “Cristovão”, portadores da vida de Cristo, são sobremodo aqueles a quem o Senhor deu serem seus sacerdotes. Creio que visitar o maravilhoso capitel da pequena igreja românica que está na aldeia minhota que tem este nome, poderá ajudar-nos a percebê-lo!
É um lugar que cheira a casa, nossa, da nossa gente e do nosso povo! É em granito, resistente, portanto. E a lembrar o que diz a Escritura: “resisti firmes na fé!” (1Pe 5.9). Pois atravessar os dias (e as epidemias…), resistindo na fé é receber a graça de viver a fidelidade de não ser diminuído e infectado com a diminuição da caridade e da esperança no correr dos tempos. Aliás, muito difíceis, estes!
E, no entanto, parece que esta escultura, tão antiga, é espantosamente contemporânea! Essencial, sem ocos floreados, parece muito expressionista. Ou seja, com uma tremenda capacidade de manifestar materialmente a veemência interior do artista que a fez.
Uma barca esculpida como se fora o símbolo por demais evidente da própria Igreja.
Jesus viu Tiago e João no seu barco e chamou-os para a ir com Ele (Mt 4.21). Agora a experiência de ir junto d’Ele é a Sua barca: ir com Ele. É nela que Ele ensina (Mc4.1). Mas também nela dorme, até mesmo quando as coisas se complicam quando um temporal se levanta deixando os seus na aflição de sentirem abandonados (Mc 4.38). Doutra vez, ainda, obriga os discípulos a nela embarcar (Mt 14.22 sg). E é junto a ela, nessa longa travessia nocturna, que se apresenta em epifania da Sua santidade invocável pelos seus: “Confiança! sou Eu! Não vos deixeis dominar pelos vossas emoções e medos”. E será, aliás, dentro dessa mesma barca que eles se prostraram para O adorar.
E certa vez será, também, numa barca que Jesus se retirará para um lugar de silêncio (Mt 14.13).
Barca esta, porém, que está na história para se arriscar a navegar.
É nela que Jesus chega à Sua cidade, Cafarnaum (Mt 9.1; Lc 6.17). E a todas as outras cidades, já que é sempre na barca da Igreja que Jesus nos visita.
E é através dessa barca que Ele se arrisca, portanto, a estar presente nas tempestades e tormentas da história. Também nas suas acalmias e nos dias maravilhosos de luz e paz. Avanço: parece-me, ainda, que é evocada na barca do capitel de S. Cristovão, a lua na pronunciada meia-lua que como que abraça quem lá vem dentro. A lua, que vive da luz do Sol, é para os cristãos símbolo da relação que existe entre a santidade de Maria, recebida em atenção aos méritos da luz plena que habita o Verbo!
Parece, portanto, que a barca se torna o colo da Virgem! Eles, os três que ali vêm embarcados, parecem ser sinal de todos os que haveriam de nesta barca conviver, “perseverando em oração com Maria” (Act 1.14).
Os seus três rostos, de olhos bem abertos serão como que uma alusão às três virtudes teologias?
Lá está: ter fé é muito mais do que sentir o quer que seja, ou mesmo não sentir nada ou ir contra o que se sente, como amanhã contemplaremos em Jesus no horto das Oliveiras.
Ter fé é ver: primeiro viu-nos Ele, aos que O seguiam tacteando imprecisões e angústias, mas, humildemente, desejando-O (Jo 1.38). Mas depois permanece para sempre na história o testemunho daqueles que O viram e continuam a ver a Sua glória (Jo 1.14)!
Note-se, ainda, que o rosto do meio é maior e, seguramente, mais proeminente que os outros dois. S. Paulo disse certa vez: “destas três faces a maior é a caridade”. (1Cor13.13) A firme caridade de quem não cessa de se oferecer para ir na frente, em nome de fé, animada dessa certeza que não mente — a esperança.
Há ainda aquela mão bem agarrada, valente, segura porque segura na companhia de Jesus, na Sua barca.
Que mão aquela! Mão de pobre que precisa de se apoiar mais do que na sua própria força. Mas mão de marinheiro que atravessa como qualquer o mar bem certo e confiante em Quem o leva na sua barca.
Mão como as nossas mãos que são mais livres porque agarradas e obedientes à barca do que o triste Judas “e-man-cipando-se” no desenlace individualista de quem saltou fora, em nome de uma qualquer versão do egoísmo….
De qualquer modo, os três que se aventuram nesta travessia dentro deste barco, assim tão chegados e guardados junto uns dos outros, lembram-me, ainda, que os que vivem a Igreja foram convidados a ter parte no mistério da Trindade Santíssima. Isto é, a viverem a sua existência na relação e comunhão íntima com Deus Nosso Senhor: vivendo por perto o bem, afastando-se do isolamento e do individualismo. E do medo inspirador de tantas renuncias à verdade, gerando frágeis confortos, portanto. E estes são os pobres: os marginais, ou os que nunca o foram, mas que aceitam viver a fraternidade que o Evangelho oferece aos que acolhem seguir, face a face, de olhos postos a perscrutar a presença do Senhor.
Talvez seja por isso, e finalmente, que se vê aflorar no rosto do meio um sorriso que parece ser franco e feliz, como quem vive a caridade na Igreja.
Os “padres” (nome onde incluo os três graus do Sacramento da Ordem)! Eis que os lembramos com particular cuidado, eles que foram dados pelo Senhor aos homens para os convidar e oferecer a embarcar nesta barca onde cabe a história de cada um. Barca esta que leva ao leme a misericórdia. Barca, ainda, que foi nos dada pelo Senhor face ao mar das angústias e das crises do mundo, para que o mundo tenha a certeza de que Jesus está na barca. Ele que manda aos seus padres oferecerem-n’O oferecendo-se e dizendo nas fomes e fragilidades de todos: Tomai e Comei!