«Testemunhas de solidariedade e evangelização Hospitaleira»

Nota Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa INTRODUÇÃO A Ordem Hospitaleira tem estado a comemorar o 75º aniversário da restauração da Província Portuguesa. E a Conferência Episcopal, na sequência do que já fez noutras ocasiões (1), associa-se de bom grado ao júbilo e alegria de toda a Família Hospitaleira, a quem saúda com muita estima no Senhor Jesus Cristo, que veio para servir e enviou os seus discípulos a curar os doentes, a purificar os leprosos e a expulsar os demónios (Mt 10,8), aconselhando-os a dar de graça o que de graça tinham recebido. Os Irmãos de S. João de Deus, há mais de quatro séculos, que se esforçam por cumprir, nas suas vidas e nas suas Obras, as palavras de Jesus, sendo testemunhas de solidariedade cristã e de evangelização pela hospitalidade, ao estilo do seu Fundador. A seu lado, surgiram mais tarde as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus, fundadas por S. Bento Menni, a quem estendemos também o sinal do nosso apreço e incentivamos a prosseguir, com ânimo e com fé renovada, a vocação a que Deus as chamou. EVOCAÇÃO HISTÓRICA A presença da Ordem Hospitaleira em Portugal estende-se ao longo de dois períodos. O primeiro, desde 1611, data em que se estabeleceram em Montemor-o-Novo os primeiros Irmãos, para aí recuperar a casa onde nascera o seu Fundador (1495-1550) e, posteriormente, tomar conta do Hospital, que chegou a ter 200 camas, até 1834, data em que foram extintas, entre nós, todas as congregações religiosas masculinas. Nesse período a sua acção não era tão específica como na actualidade. Em Lisboa, os irmãos dedicaram-se a cuidar de clérigos pobres. No período subsequente à Restauração da nacionalidade, tomaram conta de vários hospitais, em localidades próximas da fronteira. O crescimento numérico da Ordem e as circunstâncias históricas do tempo aconselharam a que se criasse a Província de S. João de Deus em Portugal. O que veio a acontecer no ano de 1671, libertando assim os Irmãos portugueses de possíveis tensões de carácter político com os superiores espanhóis de que dependiam, até essa data. O segundo período de permanência em Portugal iniciou-se em 1891 e ainda não terminou. Tudo começou, quando amainada a sanha contra as congregações religiosas, o Superior Geral da Ordem, incentivado pelo Papa Pio IX, enviou o P. Bento Menni para Espanha, com a incumbência de «restaurar a Ordem no seu berço». Foi na sequência dessa arrojada decisão que entraram de novo em Montemor-o-Novo dois irmãos espanhóis que aí restauraram a ermida de S. João de Deus. Em seguida, veio a Portugal o próprio P. Bento Menni que, sendo hóspede do Cardeal Patriarca, em S. Vicente de Fora, colocou três irmãos à frente do hospício de Santa Marta para cuidar dos «clérigos enfermos», mas por pouco tempo. Bento Menni, sacerdote plenamente imbuído do carisma de S. João de Deus, desejava ardentemente que os Irmãos se dedicassem aos mais carenciados e menos protegidos socialmente. Em Portugal identificou, ao tempo, duas categorias de excluídos sociais que decidiu acarinhar e proteger: as crianças e os doentes mentais. Para as crianças, criou em Aldeia da Ponte, na Diocese da Guarda, um asilo (colégio) para meninos pobres, que apenas funcionou de 1892 a 1897. Porém, mais tarde, a assistência às crianças viria a ser retomada tanto no Hospital Infantil de Montemor-o-Novo como noutras instituições criadas pelas Irmãs Hospitaleiras e que ainda continuam a funcionar. Para os doentes mentais, depois de aturadas diligências, adquiriu uma quinta no lugar do Telhal, onde, em 1893, com anuência verbal do Patriarca de Lisboa, como era praxe da época, por razões políticas, se estabeleceu o que viria a ser o centro nevrálgico da Ordem em Portugal. A casa do Telhal, que chegou a ser visitada pelo Doutor Afonso Costa, graças às diligências do P. Menni e à excepcional humanidade com que aí eram tratados os doentes mentais, passou incólume a onda republicana que decretou a extinção de todas as congregações religiosas. Daí irradiou para todo o território português de então o carisma de S. João de Deus que está na origem das múltiplas instituições da Ordem Hospitaleira, inclusive a casa das Irmãs Hospitaleiras da Idanha, aberta em 1894. Em 1928, foi restaurada a Província de S. João de Deus em Portugal da qual, durante muitos anos, estiveram dependentes todas as casas do actual território português e bem assim as de África, da Ásia e da Oceânia. Em Portugal, nunca se poderá escrever nem a história da Igreja nem a história da Psiquiatria sem ter em conta a gesta de amor, de ciência e de humanidade levada a cabo por esses homens e mulheres que, através de S. João de Deus, descobriram o rosto de Cristo nos pobres e nos doentes. CARISMA HOSPITALEIRO A Conferência Episcopal considera sua missão reconhecer o carisma específico da ordem Hospitaleira e promover, pelos meios que lhe são próprios, a sua renovação, na fidelidade ao espírito do Fundador. No interior da Igreja, a Ordem Hospitaleira tem por carisma e missão exprimir o amor misericordioso da hospitalidade, junto dos mais necessitados e dos doentes. Tanto os Irmãos como os seus colaboradores mais directos e generosos devem sentir-se chamados a manter vivo o amor misericordioso do Senhor e a expressá-lo na própria vida e nas instituições de que são responsáveis, obedecendo ao mandato de Jesus: curai os doentes e proclamai que o Reino de Deus está próximo (Cf. Mt 10, 7-8). Para os membros da Ordem Hospitaleira, a pessoa doente e com deficiência, em vez de excluída, passará a ser colocada no centro das atenções para se transformar em meio de aprendizagem qual «universidade hospitaleira». Desta forma o carisma hospitaleiro será chamado a construir, no nosso tempo, um antídoto para os males que têm sido objecto de algumas das nossas últimas intervenções (2). O carisma hospitaleiro dá prioridade aos mais humildes e a todos aqueles a quem não são reconhecidos os inalienáveis direitos de cidadania. Por isso, todo o verdadeiro filho de S. João de Deus se esforça continuamente por minorar a exclusão social, promover a saúde e defender a dignidade das pessoas, particularmente as que são negligenciadas ou marginalizadas, pelo simples facto de serem afectadas pela doença mental ou por outras deficiências. Ao acolher evangelicamente as pessoas afectadas por limitações mentais graves, garantindo-lhes tratamentos técnicos apropriados e dispensando-lhes os cuidados humanos a que têm direito, enquanto membros da grande família humana, a Ordem Hospitaleira apresenta-se como consciência crítica do individualismo egoísta, do consumismo desenfreado, da cultura de morte e da insensibilidade aos valores espirituais, que se vão fazendo sentir na nossa sociedade. E afirma-se como testemunha credível da civilização do amor e da esperança, da plenitude e da vida nova que brotam abundantemente da Ressurreição de Cristo. Assim o propõe o carisma fundacional praticado por S. João de Deus que em relação a toda a espécie de doentes e necessitados seguiu à risca o exemplo de Jesus Cristo, Bom Samaritano da humanidade. Gastou a própria vida em favor dos irmãos pobres e doentes, levando até às últimas consequências o seguimento de Cristo, Caminho, Verdade e Vida e fazendo desse facto o núcleo central do seu carisma martirial. A CARIDADE É CRIATIVA Em Portugal, a Ordem Hospitaleira tem mostrado sensibilidade, dinamismo e competência nas actividades que lhe são próprias. Auguramos que continue a oferecer aos seus utentes um serviço de caridade inovador e criativo, prosseguindo os esforços para humanizar a saúde mental, para reabilitar e reinserir social e familiarmente o maior número possível de assistidos, contrariando assim as conhecidas formas de exclusão, os guetos sociais, intra e extra-institucionais, suprimindo toda a espécie de barreiras arquitectónicas, culturais, sociais e religiosas e concorrendo para a dignificação das pessoas doentes. São louváveis e dignas de nota as inovações metodológicas utilizadas pela Ordem Hospitaleira no âmbito do treino de competências pessoais e sociais, orientadas para a responsabilização e para a autonomia progressivas, em articulação com outras terapêuticas apropriadas, que proporcionam às pessoas, afectadas por doenças mentais e outras limitações, a possibilidade de usufruir melhor qualidade de vida e praticar um estilo de cidadania mais dignificante. Sabendo nós que os apoios dos organismos oficiais ficam muito aquém de uma distribuição equitativa dos recursos nacionais, não podemos deixar de evocar aqui a humildade e a incansável dedicação dos Irmãos que percorriam o país, de norte a sul, angariando fundos para garantir o funcionamento de todas as suas obras. Porém, a magreza dos apoios oficiais nunca impediu que se caminhasse na promoção da dignidade dos utentes, particularmente no que se refere às áreas da inserção social e familiar e à área da prevenção. A esse propósito, apraz-nos referir as residências intra e extra-institucionais bem como as terapêuticas ocupacionais que se inserem nesse esforço de inovação, de promoção da qualidade de vida e de dignificação da pessoa humana. PASTORAL DA SAÚDE No âmbito da Pastoral Especializada, a Pastoral da Saúde é um dos sectores que tem vindo a tomar maior incremento nos últimos tempos. A Ordem Hospitaleira, com o ardor que lhe é próprio e usando um estilo de vanguarda, tem vindo a desenvolver nas suas casas uma Pastoral da Saúde renovada cujos efeitos extravasam para fora dos muros das suas instituições. Com efeito, trata-se de um estilo pastoral que abrange as pessoas e as instituições, os doentes, os profissionais, os voluntários, os hospitais e as paróquias e ultrapassa o âmbito das técnicas e dos cuidados dispensados aos doentes. Engloba também os valores da humanização, da bioética e da defesa da vida. Estende-se aos valores espirituais, inclusive aos valores da fé e da transcendência. Aos Irmãos de S. João de Deus e às Irmãs Hospitaleiras agradecemos o trabalho desenvolvido nesta área e esperamos que continuem a ser sinal e fermento de vida nova, no âmbito da saúde mental. APELO AOS JOVENS A nossa exortação pastoral dirige-se a todos em geral mas queremos endereçá-la de modo particular aos jovens, sentinelas da manhã e aurora de um futuro novo, para que, no seu dia a dia, ponham em prática os nobres ideais de solidariedade que habitam nos seus corações. A todos os jovens das nossas comunidades dirigimos um veemente apelo para que, impulsionados pela generosidade que os caracteriza, se deixem cativar pelo exemplo arrebatador de S. João de Deus, Santo Universal da Hospitalidade Solidária, que a todos propõe um dos mais sublimes ideais, alguma vez sonhado por um jovem. A hospitalidade solidária, a promoção das pessoas excluídas dos direitos de cidadania e dos bens comuns, a luta pela dignidade dos doentes e dos mais pobres e esquecidos é campo privilegiado dos baptizados, dos consagrados, dos profissionais e dos voluntários católicos que se comprometeram ou se querem comprometer com Jesus Cristo. O cuidado dos doentes, com amor e dedicação, constitui o fermento mais genuíno da nova evangelização. AGRADECIMENTO, EXORTAÇÃO E BÊNÇÃO A toda a Ordem Hospitaleira reafirmamos o nosso apreço e o agradecimento da Igreja em Portugal pelo notável exemplo de vida consagrada ao serviço dos mais pequenos e dos mais pobres entre os pobres: os doentes mentais. Permanecei firmes na concretização da vocação a que fostes chamados e no seguimento do vosso carisma fundacional. Nada vos faça desanimar. Permanecei confiantes no Senhor que vos chamou a partilhar com os mais desamparados, por vezes à beira do desespero, os dons da vida, da saúde e da presença misericordiosa de Jesus Cristo que salva, cura e dá a vida. Sede sempre testemunhas da esperança. Convosco damos graças a Deus por este Jubileu Solene de Serviço e de Hospitalidade. E, por intermédio de S. João de Deus – Patrono dos Doentes, Hospitais, Enfermeiros, Bombeiros e Livreiros – a quem a Província ergueu um monumento no centro da Cidade de Lisboa, por ocasião do V Centenário do seu nascimento, imploramos do Senhor, para a Ordem Hospitaleira e para todos aqueles que se acolhem à sua protecção ou com ela colaboram, profissionais, voluntários e benfeitores, as bênçãos do Pai das misericórdias, do Verbo Encarnado, Bom Samaritano da humanidade e do Espírito Santo, Consolador e Sanador de todas as feridas da culpa, do sofrimento e da doença. Fátima, 22 de Abril de 2004 (1) Cf. Conferência Episcopal Portuguesa, Nota sobre o Quíntuplo Jubileu das Ordens Hospitaleiras em Portugal, Lisboa, 11.06.1990; Nota Pastoral sobre S. João de Deus, no 5º Centenário do seu Nascimento, Lisboa, 20.01.1995. (2) Cf. Conferência Episcopal Portuguesa, Nota Pastoral As Pessoas com Deficiência – Cidadãos de Pleno Direito, Fátima, 08.05.2003; Carta Pastoral Responsabilidade Solidária pelo Bem Comum, Lisboa, 01.09.2003.

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