Tesouros de arte do Baixo Alentejo em Lyon

Diocese de Beja organiza exposição «Portugal Eternel»

O património religioso português debate-se com um terrível paradoxo: embora constitua o principal sector do universo patrimonial do país, suscitando o interesse de muitos turistas, nacionais e estrangeiros, é pouco acessível (sobretudo fora dos circuitos mais conhecidos) e debate-se com graves problemas de degradação, sobretudo por falta de recursos financeiros e técnicos. Isto significa algo assim como morrer de forma em cima de uma mina de ouro. Saídas para o problema não são fáceis, mas o aumento de número de visitantes pode dar uma ajuda decisiva.

Recusando-se a cruzar os braços face ao que muitos vêem como uma fatalidade, – o abandono da nossa arte sacra –, a diocese de Beja tem vindo a realizar, com imaginação e também com certa ousadia, um esforço para garantir a sobrevivência dos tesouros de arte e história do seu vasto território. Um dos caminhos que empreendeu é o da internacionalização, através de acções, articuladas com as instâncias locais, em sítios estratégicos da Europa.

Segundo José António Falcão, director do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, “mostrar a identidade da cultura alentejana fora do nosso âmbito é um instrumento fundamental para a afirmação do nosso território”. O objectivo é conseguir uma integração das igrejas e museus da região em circuitos europeus, valorizando percursos de enorme significado cultural, mas ainda pouco conhecidos além-fronteiras. A realização de exposições qualificadas constitui um instrumento decisivo para se alcançar tal meta.

Após Regensburg (1999), Roma (2002) e Saragoça (2008), o Departamento do Património de Beja inaugura a 1 de Outubro, no Musée d’Art Religieux de Fourvière, em Lyon, uma nova exposição, intitulada “Portugal Eternel – Patrimoine de la Région de l’Alentejo”. A iniciativa partiu do director deste museu, Bernard Berthod, consultor pontifício para os bens culturais e vice-presidente de Europæ Thesauri, organismo que integra os principais museus de arte sacra da Europa e tem Lyon e Beja entre os seus fundadores. A sua irradiação em França faz-se em parceria com o Turismo de Portugal, o Município de Beja, a Fundação Calouste Gulbenkian, o Instituto Camões e o Turismo do Alentejo.

Reputado especialista em paramentaria litúrgica, Bernard Berthod faz parte do comité de peritos que assessora o Atlas da Arte Sacra do Baixo Alentejo, um projecto que o Departamento de Beja leva a cabo em parceria com universidades e museus europeus e americanos. A observação “in situ” da relevância internacional da arte sacra alentejana e do seu quase total desconhecimento pelo público francês levou-o a promover uma exposição que reúne cerca de centena e meia de obras, com destaque para a pintura, a escultura e as artes decorativas.

Como indica o título da iniciativa, trata-se de apresentar a um público culto e exigente, mas assaz interessado, aquilo que há de mais eterno na arte sacra alentejana, uma longa conjuntura histórica, desde o fim dos tempos pagãos até à actualidade. Nela se encadeiam, à semelhança de um grande rio, movimentos religiosos e escolas plásticas muito diversas, quase sempre dentro de uma linha de fidelidade ao gosto meridional, pautado pela ideia de que a arte deve tornar presente, no seio das populações rurais e urbanas, o apogeu da obra criadora de Deus.

Trata-se de uma ideia que ajuda a explicar, além da permanência da tradição, o apego à sumptuosidade do ouro, da prata e das “policromias fortes”, ao diálogo do Cristianismo com o Paganismo, o Judaísmo e o Islão, ao exotismo das culturas africanas, asiáticas e ameríndias. Tudo isto se enquadra no desejo de afirmar, em torno da liturgia e da devoção, marcas identitárias extremamente fortes, numa região onde as vivências católicas acabariam por ser vistas sobretudo “coisa de mulheres”, embora seguidas, a respeitosa distância, pela comunidade masculina…

A exposição retoma esta e muitas outras histórias, em clave de assumida fruição estética, ao longo de cinco secções por onde discorrem as origens do território meridional, da Antiguidade à Reconquista cristã, a piedade da era gótica, o tempo do império e das missões, a Reforma católica e o Barroco, o Cristianismo e a Modernidade. De uma “Vénus Anadiómene” (“a que sai das águas”), obra da época romana, em mármore cristalino, a “Jacob e o Anjo”, de António Paizana (1994), o Alentejo mostra-se com as suas melhores galas, eterno e inquietante, em Lyon. É como se um véu caísse e o Norte reencontrasse um Sul há muito preterido.

 

Notre-Dame de Fourvière, no coração de Lyon

O santuário de Fourvière, erguido numa colina verdejante que domina Lyon, é o grande centro religioso da cidade desde a época medieval. Sob a invocação de Nossa Senhora, a sua basílica, misto de igreja e fortaleza, assemelha-se a um “castelo da Virgem”, resultando de uma promessa dos leoneses por terem sido poupados a epidemias e guerras. A existência de um notável tesouro artístico, que data maioritariamente, tal como a basílica, do século XIX, levou à criação do Musée d’Art Religieux. Este encontra-se instalado numa antiga igreja do complexo basilical e é considerado, ao nível internacional, uma instituição de referência no âmbito do património religioso.

Fourvière recebe anualmente cerca de três milhões de visitantes e constitui um dos pontos mais procurados, como destino cultural, da região do Ródano. A proximidade de Lyon em relação à Suíça e à Itália faz desta área um local privilegiado da vida artística, científica e industrial de França, a par de um centro turístico de primeira ordem. Na região leonesa reside uma extensa e influente comunidade portuguesa, também ela associada, desde o primeiro momento, à organização da exposição, já que o santuário de Notre-Dame de Fourvière é uma das suas referências, assinalada por uma peregrinação anual.

 

Entre lendas e narrativas

“Quando contemplamos a arte sacra do Alentejo, o que mais prende a atenção de alguém que está de fora é a sua capacidade para contar uma ou muitas histórias”, explica José António Falcão. Bernard Berthod corrobora esta noção: “Estamos perante uma arte narrativa por excelência”. Histórias é algo que não falta nas peças apresentado em Lyon. Umas falam de milagres de Nossa Senhora e dos santos que deixaram marcas na paisagem alentejana, como a imagem de Santa Maria de Sines, venerada por cristãos e mouros. Outras elogiam a genealogia de uma nação proscrita, supostamente assimilada, os judeus, cujos descendentes cristãos-novos se cotizaram em 1677 para representar os seus reis na “Árvore de Jessé” da igreja de Santa Maria da Feira de Beja. Noutros casos sobreviveram tradições pagãs, como acontece com a cabeça-relicário do papa São Fabião, peça maior da ourivesaria românica, dotada de singulares capacidades terapêuticas: o seu “bafo” (hálito) curava as doenças das pessoas e do gado.

Sob o pano de fundo da religiosidade popular, no entanto, destaca-se a firmeza doutrinária da Igreja, que soube fazer das manifestações artísticas uma sumptuosa e complexa “Bíblia Visual”, deveras apta a traduzir, perante os diferentes sectores da sociedade, os mistérios da fé em Cristo. Uma das obras mais impressionantes, sob esta óptico, é o ostensório que contém os fragmentos do Santo Lenho, a cruz em que Jesus foi crucificado, da igreja de Santiago do Cacém. Reconhecidos oficialmente como autênticos, estes fragmentos devem-se a uma oferta cerimonial da princesa bizantina D. Vataça Lascaris, nos inícios do século XIV, e foram trazidos de Niceia (a actual Iznik). Do Oriente vieram igualmente os frascos de unguentos em cristal-de-rocha do Museu Episcopal de Beja, fabricados na corte do sultão do Cairo no século IX com gemas oriundas do Irão. Um dos cavaleiros bejenses que participaram nas últimas cruzadas tê-los-á trazido da Terra Santa e feito adaptar como relicários.

Ana Santos

 FOTO: Nossa Senhora da Boa Morte, escola portuguesa, séc. XVIII, madeira policromada.

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